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Subsídios do dispositivo didático para o desenvolvimento da escrita académica

Parte V Ponto de chegada e futuras viagens

8.1. Subsídios do dispositivo didático para o desenvolvimento da escrita académica

Como referido em capítulos anteriores, decorrente da primeira questão colocada e dos dois primeiros objetivos enunciados, o DD foi construído de modo a estabelecerem-se princípios e estratégias que pudessem promover um ensino explícito da escrita dos géneros académicos, tendo-se considerado, inicialmente, como objeto de estudo o género recensão crítica (cf. cap. 3). Como também foi referido inicialmente, este género foi selecionado, fundamentalmente, por se ter constatado que a recensão era um género requisitado em diversas disciplinas, mas raramente objeto de ensino explícito. No entanto, para além desta razão, as conclusões do estudo permitem acrescentar uma outra, que nos parece fundamental, para os propósitos do ensino explícito de géneros académicos. Ou seja, a aprendizagem das configurações da recensão crítica podem permitir ao estudante não só desenvolver habilidades específicas de escrita do género em causa, mas também competências gerais próprias do discurso académico.

Neste sentido, o primeiro subsídio deste estudo é a constatação de que a recensão crítica pode vir a funcionar como um megainstrumento (Dolz & Schneuwly, 2004), um género académico intermédio entre a produção escrita de resumos e a produção escrita de ensaios e artigos, conduzindo o estudante universitário à lógica da escrita académica (cf. cap. 7.3). Esta constatação, fruto dos resultados do estudo empírico desenvolvido, surge depois de verificada a melhoria e complexificação do discurso produzido no texto final, a que fizemos referência anteriormente, e que terá permitido aos estudantes saírem da lógica do resumo e do “conhecimento recebido” (Bazerman, 2009, p.9), para a lógica de um conhecimento construído, próprio de um discurso mais académico. Veja-se, na citação seguinte, como um dos estudantes que participou no GD tem consciência do contributo do DD para a aquisição de um discurso mais académico:

A recensão crítica permite trabalhar vários aspetos dentro da sala de aula. (...) o aluno precisa investigar sobre o autor, sobre o tema, sobre várias coisas relacionadas com o texto ou com o tema da aula (...) trabalha muito a escrita na parte de resumir o texto, condensar as ideias, ligar e, por fim, o aluno já tem aquela oportunidade de exprimir aquilo que ele sente, qual é o seu parecer, a sua ideia em relação ao texto. (BLFPtg316GD)

Veja-se agora apenas uma ilustração desta constatação num dos textos finais do grupo em estudo:

O artigo o livro académico em Moçambique entre o prazer de edição e a incerteza de leitura é de autoria do académico, professor, crítico literário e escritor Almiro Lobo. Este artigo tem cerca de 3 páginas e está integrado na obra Leituras Ensaiadas, publicado em Maputo, pela Imprensa Universitária, em 2013. Almiro Lobo já publicou cerca de 3 obras, nomeadamente, A escrita real (1999), Leituras ensaiadas (2013) e Moçambique em textos portugueses do século XVIII (2014). Note-se que muitas vezes, procura abordar assuntos que tangem ao seu país, neste caso, Moçambique. (EPCPtg316TF)

Ainda relativamente aos dois primeiros objetivos, e tendo em conta também a primeira e terceira questão de partida (Que subsídios para o desenvolvimento da escrita da recensão crítica advêm da aplicação de um DD que explicite as características deste género? e Que alterações linguísticas e discursivas se verificam na escrita dos estudantes, relativamente à recensão crítica, depois da aplicação do DD?), verifica-se que o DD construído produziu alterações discursivas e linguísticas visíveis na escrita da recensão crítica por parte dos estudantes a quem foi aplicado o DD.

A grande maioria dos estudantes, na produção de uma recensão crítica sobre um novo texto-fonte, utilizou as configurações da recensão crítica (selecionadas para o DD), nomeadamente, os seus movimentos retóricos, os seus mecanismos enunciativos e alguns mecanismos textuais de coesão, o que resultou na produção de um discurso mais estruturado, mais claro e mais coeso (cf. cap.7). Daqui resulta que o segundo subsídio deste estudo é que o DD sobre a recensão produziu resultados concretos na produção escrita da recensão crítica, por parte do público alvo, no sentido em que solucionou alguns dos problemas verificados na expressão escrita dos estudantes universitários moçambicanos, relativamente à escrita, em geral, e à EA, em particular. Ou seja, para além dos contributos ao nível das transformações linguísticas propriamente ditas, e sobre as quais falaremos a seguir, este estudo mostrou que o DD contribuiu para que os estudantes apreendessem e manipulassem os diversos mecanismos enunciativos. Esta aprendizagem permitiu não só a concretização de diferentes vozes no texto, mas também despoletou a criação de uma voz própria, como referido por um estudante que participou no grupo de

discussão: “Sabia distinguir que agora é a minha voz, agora é a voz do autor” (BLFPtg316GD). Vejamos algumas ilustrações deste segundo subsídio do DD nos textos dos próprios estudantes:

(...) em relação a situação literária de Moçambique, Lobo poderia ter

associado neste artigo propostas ou estratégias que podem contornar os problemas da pouca qualidade nos livros publicados, a escassa edição de livros e a fraca aderência do público, tanto na compra como na leitura dos livros. Contudo, a importância que o artigo representa para a comunidade académica e não só recompensa. (BLFPtg316TF)

Em fim, o facto de Lobo, na sua abordagem, não se limitar em abordar o tema em questão numa perspectiva superficial, leva-nos a lembrar de Noa, que também, nos seus artigos, não se limita em falar de assuntos à superficialidade, levando-nos a acreditar que ambos são “detalhistas” ou têm essa semelhança pelo facto de se terem formado na mesma área.

(CASPtg316TF)

O terceiro subsídio que este estudo também permitiu obter foi o de que a aplicação

do DD, nas condições em que foi desenvolvido, utilizando a aplicação de RCE a produções intermédias da recensão crítica produz alterações linguísticas e uma maior complexificação do discurso escrito produzido por estes estudantes. Esta complexificação surge nos resultados do estudo não só pela habilidade demonstrada na manipulação dos mecanismos enunciativos, como referido anteriormente, mas também dos mecanismos textuais ao nível da coesão lexical e gramatical e de uma maior correção linguística do discurso produzido. Esta correção surge nos resultados obtidos, através das alterações linguísticas na produção de frases mais longas e complexas, com menor número de incorreções. Ou seja, para além dos resultados já referidos e das constatações já feitas, a construção frásica dos últimos textos reflete uma maior correção linguística, que surge ao nível de aspetos gramaticais, ortográficos e de pontuação que, no entanto, não foram objeto de ensino explícito por parte do professor, nem durante a SE, nem em SE anteriores naquele ano letivo. O trabalho desenvolvido com estes aspetos consistiu na aplicação de RCE indireto (cf. cap.5), fornecido pelo professor às produções intermédias da recensão crítica, propondo-se, em

seguida, que os estudantes trabalhassem individualmente sobre esse retorno na produção de versões melhoradas da recensão produzida39. Estes resultados apontam, por um lado, para a importância da produção de versões intermédias, produzidas depois de um processo de revisão e integração de melhorias no texto produzido. Por outro lado, estes mesmos resultados permitem, por isso, recomendar que na modelização didática da recensão crítica (e de outros géneros académicos), sobretudo para uma população que adquiriu o português como L2 como a moçambicana, ou para uma população com reduzidas experiências de escrita, se considere o RCE como uma estratégia importante na aplicação do DD ao desenvolvimento da escrita de recensões críticas e, por isso, deva constituir uma orientação específica na aplicação do DD.

Ainda relativamente a este ponto, e embora não possa ser considerado um subsídio do estudo, não se pode ignorar a constatação de que a fase de contacto para leitura e desconstrução de múltiplos textos académicos poderá ter funcionado como reforço da exposição a uma língua mais formal e académica (input enhancement) que poderá ter despoletado não só a (re)aquisição de vocabulário específico e de estruturas mais complexas da língua, mas também a fixação de algumas correspondências fonema-grafema ou regras de pontuação (Ellis, 1997; Wingate, 2012).

Ellis and Wells (1980) demonstrated that a substantial portion of the variance in speed of acquisition of children can be accounted for by the amount and the quality of input they receive. The same is undoubtedly true of L2 acquisition. If learners do not receive exposure to the target language they cannot acquire it. In general, the more exposure they receive, the more and the faster they will learn. (Ellis, 2008)

Em síntese, o que este estudo nos permite evidenciar é, por um lado, o poder da PGT e da modelização didática da recensão crítica na aprendizagem e produção de um discurso mais académico, na sua complexidade e correção, funcionando este género como uma porta de entrada para o edifício da produção escrita na academia. Por outro lado, a recensão crítica e a sua aprendizagem, permite que o estudante encontre meios de distinguir e manipular os diversos mecanismos enunciativos, interiorizando, simultaneamente, práticas

de referenciação direta e indireta e a construção do seu próprio posicionamento académico. Por fim, não será menos importante referir ainda que a escrita académica se pode aprender e desenvolver na academia, através de estratégias que qualquer professor pode usar e cujos resultados concretos são visíveis e sentidos pelos próprios estudantes (Carvalho, 2012a; Pereira & Cardoso, 2013).

8.2. Orientações didáticas, pré-requisitos e conteúdos para a definição do