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4. FATZER: PREPARATIVOS PARA A PRÁTICA

4.4 Procedimentos práticos

- Imitação e crítica: relatos pessoais

O relato pessoal é uma atividade para produção de texto e seleção de gestos e expressões, a partir de uma questão (ou motivo) retirada de um determinado modelo de ação. Os atores são convocados a lembrarem de episódios da sua vida que se conectam ao tema ou pergunta proposto. Fazem seu relato, enquanto são observados pelos demais. A observação detém-se sobre a história, mas também sobre a forma de contar a história. Os observadores depois escolhem um dos relatos para recontar, como se fosse seu, em primeira pessoa, fazendo uso dos gestos e expressões utilizadas pelo primeiro relator.

Nessa atividade, são utilizados os procedimentos de observação, imitação e crítica. Ao imitar modelos os atores confrontam-se como indivíduo com esses modelos, em busca de uma atuação livre. O que entendo por atuação livre é ilustrado nessa passagem de O narrador, quando Benjamin (1994, p.204-205), trata da naturalidade e do estado de distensão:

Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia. Esse processo de assimilação se dá em camadas muito profundas e exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro. Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos - as atividades intimamente associadas ao tédio - já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes. Com os relatos, o grupo reúne e acumula material textual e gestual para a inserção de trechos de invenção própria, durante os jogos de improvisação. O repertório de histórias é registrado, além de ter sido recontado, e cria uma espécie de acervo comum, onde essas experiências relatadas podem ser re-configuradas, alteradas, editadas e ganhar novo uso na improvisação.

Ingrid Koudela (1991, p.18), comentando os procedimentos de imitação e crítica na prática das peças didática, esclarece:

[...] a imitação também se dirige necessariamente a objetos (eventos, gestos, tons de voz, atitudes de comportamento) que foram experimentados fora do texto, na realidade de cada participante. Esse é um pressuposto para o efeito pedagógico da peça didática. A atualização do texto só pode realizar-se através do vínculo que o atuante estabelece com sua própria experiência (com o seu cotidiano). A aparente contradição entre imitação e crítica se dissolve, se for admitido que toda imitação pressupõe também uma modificação do modelo. Nesse sentido, a imitação já contém a crítica.

O trabalho com o relato, à medida que é recriado na imitação, sofre uma operação crítica, porque sofre uma modificação. A experiência pessoal torna-se então experiência ficcional, quando é repetida e imitada. Os relatos orientam a construção de uma experiência coletiva, na medida em que são experimentadas novas formas de narrar.

- Improvisação

As peças didáticas são textos escritos como convocação à autoria. O espaço aberto pelo texto como modelo de ação não apenas espera ser ocupado por seus leitores e intérpretes, mas, muito diretamente, só ganha sentido quando se torna material para a improvisação.

A improvisação é um procedimento comum aos mais variados processos criativos em teatro. No caso do trabalho do texto como modelo de ação, a improvisação é o procedimento basilar, é o que instaura o campo para a experimentação. Pela aridez da escrita das peças didáticas, posso afirmar que elas são uma tipologia dramatúrgica onde Brecht desenvolve uma idéia de autoria que convoca, necessariamente, à co-autoria.

Tomo a improvisação como princípio de trabalho para a criação de procedimentos criativos com o Fatzer. Os jogos desenvolvidos têm a improvisação como base criativa, seguindo variações para o aprofundamento do tema em foco. As improvisações exploraram, a cada encontro: a) determinada situação escolhida como objeto de investigação daquele encontro; b) ações pré-definidas para cada papel; c) ações dirigidas a cada ator; c) troca de papéis; d) inserção de trechos de relatos pessoais dentro dos papéis.

Com as variações dos jogos improvisacionais durante o plano operativo das quatro etapas de trabalho, o grupo pôde se dedicar ao desenvolvimento da criação através: da fragmentação de ações complexas, trazendo o detalhe realista; da

observação e da imitação de gestos; de pequenas ações; de formas de falar; e de composições gestuais.

- Troca de papéis: repetição e experiência

A troca de papéis é um procedimento que torna os jogos objeto de análise para os jogadores. É o lugar por excelência para a compreensão e o exercício do estranhamento dentro do jogo. No plano operativo desenvolvido para essa prática, a troca de papéis está prevista durante a improvisação, com o objetivo de promover a crítica, através da imitação e do comentário transformado em ação.

A solicitação da repetição da situação em improvisação, através da troca de papéis, dinamiza a relação entre os atores e dá aos encontros a qualidade de experiência. A troca de papéis, como fase programada dentro das etapas de trabalho, possibilita aos atores refletir sobre a própria atividade enquanto a realizam. Esse procedimento é um dos espaços onde é operacionalizada de forma concreta a orientação de transformar o comentário em ação. Quando um ator, na improvisação seguinte, assume o papel desempenhado por outro, deve tentar propor criativamente, ao assumir esse papel, uma síntese entre o que viu e o que imagina poder fazer naquela situação específica.

Na atividade prática, os atores foram solicitados a trocar de papel entre si e também a retornar ao papel já representado, o que os fez experimentar, no próprio jogo, a citação e o comentário como elementos processuais do estranhamento. Wirth (1999) lembra que a troca de papéis acontece sem o apelo à identificação, seu mecanismo é o de produzir a crítica pela repetição. Fazer a mesma situação outra vez, promove, pela troca de papéis, outra situação, que em parte é a mesma, em parte é a mesma renovada e em parte é uma nova situação. O procedimento da troca de papéis, quando inclui criticamente a repetição, se torna um modo de narrar. Benjamin (1994), tratando da relação entre brinquedo e brincadeira, alerta para a dialeticidade do jogo de repetir como jogo de habituar, mas também como jogo de prazer:

O adulto alivia seu coração do medo e goza duplamente sua felicidade quando narra sua experiência. A criança recria essa experiência, começa sempre tudo de novo, desde o início. Talvez seja esta a raiz mais profunda do duplo sentido da palavra alemã Spielen (brincar e representar): repetir o mesmo seria seu elemento comum. A essência da representação, como da brincadeira, não é “fazer como se”, mas “fazer sempre de novo”, é a

transformação em hábito de uma experiência devastadora. (BENJAMIN, 1994, p.253).

A troca de papéis, como procedimento da improvisação, promove a observação atenta e comprometida entre os jogadores. Brecht (2005, p.153-154), no Pequeno Organon, alerta que “A aprendizagem de cada ator deve se processar em conjunto com a dos outros atores, e, da mesma forma, a estruturação de cada personagem tem de ser conjugada com a das restantes.” Aqui ele não trata propriamente da troca de papéis, mas indica para a criação e o desenvolvimento da personagem o que chama de “unidade social mínima”, o mínimo necessário para a situação de jogo e troca. Para Brecht, a troca de papéis auxilia o ator a consolidar seu desempenho a partir de uma perspectiva social.

- Produção textual: protocolo, fábula, biografia

Em teatro, especialmente nas práticas relativas aos processos de criação, utiliza-se muito comumente dos relatos por escrito como forma para registrar o encontro, descrever os exercícios, tratar das descobertas de cada artista, trazer as possíveis relações entre os jogos e a proposição criativa, etc. Esse material se configura como uma espécie de diário de bordo que tem valor de memória, de avaliação e de prática refletida.

Na prática com as peças didáticas, esse tipo de registro é uma ferramenta fundamental na condução dos jogos e demais exercícios criativos. Chama-se protocolo, o que o distingue dos demais registros de encontros criativos, porque contém um conceito para dar conta de sua forma e objetivo e se configura como uma etapa do dia de trabalho.

O protocolo é um tipo de registro que reúne dois aspectos importantes do trabalho com o Lehrstück: o relato e a crítica. A forma do relato é livre, a orientação é que a forma apresentada esteja em diálogo com o que o relato traz como assunto, para que a forma ganhe certa materialidade poética. É muito importante que a produção do protocolo considere a forma escolhida para exposição do relato. O exercício crítico se dá como produção estética. O autor do protocolo deve preocupar-se em aliar a descrição do encontro à reflexão sobre ele. Essa descrição deve conter sua posição crítica diante desse material. Essa posição reflete-se na escolha estética para a apresentação do protocolo.

Na prática com o Fatzer a produção dos protocolos foi diária durante a primeira e a segunda etapas de trabalho. O material produzido a partir do encontro do dia anterior era lido no dia seguinte. A produção diária foi importante pelo exercício continuado de refletir sobre a prática através da elaboração de um registro como material poético, o que dá à produção desse material uma nova qualidade de experiência. Entendo que não há necessidade de solicitar protocolos nas duas últimas etapas, porque a prática é refletida durante o próprio encontro, já que essas etapas finais têm foco na elaboração de jogos pelos atores e na produção textual de forma mais intensa, nos próprios encontros.

Outra das formas textuais em que exploro o problema-Fatzer se materializa no exercício da fábula. O grupo está diante de um material de trabalho no qual a estrutura fragmentária e os diversos estilos de escritura de Brecht são, por si, fábulas do Fatzer. O exercício com a fábula – com a produção textual em forma de fábula – aproxima os atores da questão experimentada em cada encontro pelo viés da escrita e da síntese. A forma de contar, já explorada no relato pessoal, é nessa atividade novamente valorizada, como estímulo para que cada um produza a fábula daquele encontro, afirme-se como autor, desenvolva seu ponto de vista sobre a história e se descubra como co-produtor.

O exercício com a fábula é também um dos instrumentos que promove a apropriação do texto poético da peça didática, pela reescritura do modelo de ação, já aberto e experimentado como moldura para o jogo. Produzir uma fábula durante os encontros práticos é uma estratégia para reconstruir a história, ao modo de cada um, respeitando o tratamento brechtiano dado a esse assunto. Como já discuti, Brecht não considera a fábula como matéria evidente, ela é um objeto de reconstituição, a ser modificado por todos que sobre ela se detém.

Como mais um espaço para materializar a aprendizagem, escolhi também a biografia, justo por se enquadrar formalmente como texto não-ficcional. Nas duas primeiras etapas da pesquisa prática com o Fatzer, a produção textual se concentra nos formatos protocolo e fábula. A biografia surge como procedimento textual na terceira etapa de trabalho, quando acredito poder explorar de forma mais sofisticada as tensões entre a escrita ficcional e a escrita documental, movida pela questão da forma de documento, colocada no trabalho com o Fatzer.

Com o exercício da escrita biográfica, posso estabelecer formas de relacionamento entre realidade e ficção extremamente potentes para a discussão

sobre uma nova narratividade e a própria noção de teatralidade, a partir de formas de criação não-ficcionais. A experiência pessoal é integrada, não como no relato, nem como no protocolo, mas na qualidade de elemento prévio à criação ficcional. A biografia é apenas um ponto de partida, como forma de escrita, mas seu corpo deve poder constituir-se de elementos ficcionais. Nesse exercício de produção de texto, imagino poder tensionar o espaço do teatro como produtor de ficção e a inserção de elementos reais, através da forma biográfica de escrita.

Assim como com os relatos, com os demais textos produzidos ao longo dos encontros planejo também sua realocação nas situações de improvisação, na perspectiva de operar um corte critico e historicizar a situação improvisada. Koudela (2001, p.33) sintetiza a potência dessa operação:

O gesto crítico do Historisierung (historicização) do Teatro Épico/Dialético constitui uma intervenção eficaz, até brutal, que interrompe a história da história. Essa intervenção não significa no entanto a oferta apressada de uma narrativa substituta. O conhecimento do passado não é um fim em si. Ao contrário, a interrupção da história visa inscrever nessa narrativa silêncios e fraturas eficazes por meio da Verfremdung (estranhamento) dos acontecimentos do passado.

O material poético dos registros (protocolos, fábulas, biografias) tem grande potencial dramatúrgico e prevejo a sua incorporação como matérias textuais na criação coletiva do texto. Os três tipos de texto, associados aos fragmentos do Fatzer, recebem um tratamento dramatúrgico na etapa final dessa pesquisa.

- Criação de jogos

O jogo no teatro, como Pavis (1999) frisa, é sinônimo da própria atividade teatral. Se não há jogo no teatro, não há teatro. Nessa prática, com um grupo de teatro profissional, o jogo é compreendido a partir do encontro de um grupo de pessoas em relação, que faz dessa relação matéria para o trabalho com o texto e com a cena. Para tanto, precisei estabelecer convenções e regras, para que o jogo teatral58 se organizasse em torno de um espaço de ficção.

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58 Uso o termo jogo teatral para definir o jogo realizado no teatro, com seus elementos fundamentais.

O termo jogo teatral é usado aqui a partir do que é sugerido por Brecht (1967b) em Teoria da

Pedagogia (Theorie de Pädagogien) como Theaterspielen. Os jogos teatrais sistematizados por Viola

Spolin (1979, 2001) e Koudela (2006) prevêem uma série de procedimentos e aplicações que não faço uso aqui, embora algumas aproximações sejam possíveis, pela base improvisacional.

O jogo é compreendido como um lugar de exploração, de brincadeira, de compreensão pela fisicalização. As personagens do texto não são experimentadas antes do jogo ser jogado. O encontro com as personagens só se dá depois que os atores se assenhoram das instruções do jogo.

A criação de jogos segue duas orientações, previstas no plano operativo desta prática:

1. Nas primeiras duas etapas de trabalho os jogos são criados e preparados por mim, estando previstos, pela participação dos atores e pela dinâmica dos jogos, ajustes e reformas ao longo dos encontros. Nessas etapas são criados, prioritariamente, jogos de improvisação;

2. Nas duas etapas finais de trabalho, a criação dos jogos passa a ser, gradativamente, uma atividade de criação de todos, onde eu auxilio os atores no desenvolvimento dos jogos a partir da proposição inicial, cabendo aos atores a autoria, a preparação, a contra-proposição, a brincadeira. Aqui desenvolvo com o grupo, pela especificidade do material, o que chamo de jogos de leitura.

O jogo teatral, quando orientado com base nos textos das peças didáticas, como Koudela (1991) ajuda a compreender, possibilita a elaboração de experiências e acontecimentos sociais, permite aprofundar concepções sobre o mundo e a sociedade, que só são possíveis no teatro. No jogo teatral é possível realizar uma combinação original entre o texto, como modelo de ação, e a improvisação, com foco na criação e inserção de trechos de invenção própria, a fim de conhecer determinado problema, promovendo um encontro com o texto através de sua fisicalização. Na nossa pratica, todos os jogos contém ou prevêem a dimensão da cena, são jogos para a cena.

O propósito da criação de jogos é também o de refletir durante a prática sobre o papel dos jogos na descoberta de novas formas de narrar.

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