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Osucesso inicial da acção missionária protestante na educação da população tsonga, em parte deveu-se aos conflitos que haviam minado as relações entre a Igreja Católica e o Estado português. O conflito iniciou no período pombalino, com a expulsão dos jesuítas em Portugal e seus domínios (1759), seguido do decreto de Joaquim António de Aguiar, de 1838, que extinguiu as ordens religiosas, colocando o Estado a substituir a Igreja na Missão educativa. Na Primeira República também legislou-se no sentido de secularização do Estado.

No artigo 6º do “Acto Geral” da Conferência de Berlim de 1884/85 referia-se à proteção dos indígenas, dos viajantes e dos missionários, e é também mencionada no mesmo artigo a liberdade religiosa, de pregação dos missionários em todos os territórios sem restrição de ordem confessional. Portanto, à luz dessa cláusula, as potências coloniais utilizavam as missões para fim de ocupação efectiva, transformando-as em instrumentos políticos e imperialista. Portugal sendo signatário do “Acto Geral” não tinha qualquer possibilidade legal de impedir a cristianização de Moçambique por missões provenientes de nações coloniais concorrentes.

O liberalismo português que segundo Ngoenha (2000: 72) era “mais maçónico do que crente”, não olhava as missões católicas como instrumentos estatais a serem usados para a ocupação efectiva e nacionalização do seu Ultramar. Mas, o governo estava dividido, há quem acreditava na possível instrumentalização da Igreja, mas temia-se também o que na altura chama-se a acção desnacionalizadora das missões protestantes.

A experiência que António Enes adquiriu em Moçambique como governador-geral, permitiu- lhe que tomasse uma posição um pouco diferente da linha principal do governo de Lisboa quanto a relação entre a missionação e a colonização. De facto, a intransigência do governo da metrópole em estabelecer aliança com a Igreja na obra da colonização favorecia as missões protestantes ao serviço da Grã-Bretanha.

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A partir de um estudo feito por Luciano Cordeiro, foi emergindo pouco a pouco a necessidade de restaurar as missões portuguesas. Para António Enes, a congregação das missões portuguesas deveria estar subordinada ao governo português e usada para preparar o pessoal missionário e habilitá-lo para a propagação religiosa e para o professorado primário na colónia de Moçambique. Na concepção de Enes, os missionários portugueses deveriam instruir os indígenas não só para questões religiosas, mas também para a portugalidade e para a subordinação (Ngoenha, 2000: 69).

Em 1894 o Bispo Barroso escreveu um relatório intitulado “O Padroado de Portugal em África” no qual deixava clara a sua posição nacionalista e paternalista sobre a população africana. Considerou que Portugal era chamado e tinha a vocação de ser uma nação missionaria “em todos os territórios descobertos ou por descobrir” e finalmente afirma no seu relatório que “Portugal não vai renunciar os seus gloriosos privilégios de ser a nação que primeiro levou o progresso para esses párias chamados pretos com os seus corações” (Helgesson, 1994: 99).

Depois de apresentar a longa história da evolução da Igreja no território, elaborou no seu relatório, o seu ponto de vista e planos, enfatizando dois elementos básicos e inter- realicionados: primeiro, a Igreja precisa de missionários, especialmente bem treinados para o seu trabalho em Moçambique e bem aceites aos olhos da nação portuguesa e, segundo, a necessidade de um plano estratégico e realístico para novas missões (Ibid.).

O ponto de vista do Bispo reflectia a necessidade de alinhar a actividade da Igreja nas colónias com os propósitos da política colonial portuguesa. Para isso havia a necessidade de mais missionários, mas não deviam ser quaisquer, deviam ser portugueses, especialmente bem treinados para o seu serviço em Moçambique. Neste aspecto, o Bispo situava-se na mesma linha com Enes. Ele sugeria que a preparação dos missionários tivesse lugar em Portugal, num seminário específico, mas pertencente à diocese de Moçambique e que seria o núcleo da congregação, a semelhança por exemplo com a dos “Padres Brancos”.

Bispo Barroso olhava para Moçambique de forma genérica delineando uma batalha espiritual em que uma boa estratégia afigurava-se de maior importância. O objectivo principal era ganhar a população da colónia para a Igreja Católica e Portugal. Assim ele apontou três inimigos por combater: o islamismo, protestantismo e a influencia imperialista britânica.

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É preciso se referir que desde 27 de Abril de 1893 já tinha sido oficialmente criado por uma lei eclesiástica uma missão católica no reino de Gaza. Isso significa que se a intenção tivesse sido concretizada, a missão católica teria se estabelecido no reino com um ligeiro atraso em relação a Missão Suíça, pois esta estava já estabelecida em Magude (Missão de Antioka) em 1889 e em 1892 obteve a autorização do rei Ngungunhane para o envio do seu missionário Geoges Liengme para se estabelecer em Mandlakazi, junto ao rei (Helgesson, 1994: 100). Mas o que se verificou é que o estabelecimento de uma missão católica no reino de Gaza teve que esperar doze anos. A primeira missão haveria de ser estabelecida em 1906, trata-se da Missão de Chongoene, nos arredores de Xai-Xai e, em 1911 foi criada S. Benedito dos Muchopes em Chidenguele, no actua Distrito de Mandlakazi (Sousa & Correia, 1998: 62, 72). Isto significa que o protestantismo teve precedência no reino de Gaza antes do catolicismo. Nos anos que se seguiram, as Missões Católicas tiveram que ser convertidas como parte integrante da Administração Portuguesa em Moçambique. Em parte, isso foi graça a amizade pessoal entre o Bispo Barroso e o Comissário-Régio de Moçambique António Enes. Este novo estatuto foi oficialmente confirmado pelo Ministro da Marinha e Assuntos Ultramarinos ao Bispo em 1896 instituindo o seguinte:

“As Missões devem assumir o carácter de instituições nacionais, e é sempre obrigatória: • a sua subordinação ao Bispo de Moçambique;

• o uso e ensino em língua portuguesa;

• hastear sempre a bandeira portuguesa no centro da Missão;

• a defesa dos direitos da soberania portuguesa, na sua propaganda e no exercício das suas funções missionárias;

• requerer toda a assistência às autoridades portuguesas, para as quais devem a sua subordinação em termos gerais” (Helgesson, 1994: 101).

A partir deste facto a Igreja Católica Portuguesa submeteu-se ao poder secular e transformou- se num instrumento ao serviço da colonização portuguesa que seria cada vez mais aperfeiçoado para transferir o móbil da identidade do africano da etnia ainda em processo de consolidação para uma identidade nacional portuguesa bastante virtual e distante da sua vida quotidiana. Desta forma, a Igreja Católica portuguesa operava num sentido diametralmente oposto ao das missões protestantes.

A obrigatoriedade do uso e do ensino em português realçava a vontade do governo em conferir a educação um carácter nacional português oposto ao modelo desenvolvido pelas missões protestantes que procuravam valorizar as línguas africanas através do ensino da sua

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escrita o que contribuía para desenvolver no africano a consciência de pertença a uma comunidade étnica tangível.

Houve nuances ao longo da evolução da história, mas as duas lógicas (a étnica protestante e a católica portuguesa e nacionalista), tinham já configurado as suas bases e iriam confrontar-se continuamente na disputa pelos africanos. Mas a Igreja Católica iria passar por uma outra fase de mão relacionamento com o Estado devido as mudanças que acompanharam a implantação da República.

No período em que a 1ª República portuguesa foi proclamada, a educação em Moçambique era administrada por diferentes religiões pertencentes a diferentes nações. Em 1911, a Igreja é separada do Estado e, pelo Decreto 233 de 1913, o Estado cria as “Missões Laicas” ou “Missões Civilizadoras”, que excluíam qualquer ensino religioso, resgatando dessa forma o espírito da Conferência de Berlim. Isto supunha que as missões protestantes deveriam ser autorizadas a exercer as suas actividades religiosas e, inclusive a ter escolas. No momento da implantação da república portuguesa existiam, além das missões católicas portuguesas, as missões protestantes e escolas islâmicas, cada uma com um tipo de ensino próprio. O decreto de 22 de Novembro de 1913 oficializava apenas a situação existente e criava “Missões Civilizadoras”, imprimindo ao ensino o pensamento laico. Na Constituição de 1911 havia uma nítida separação entre a igreja e o Estado e o governo republicano era mesmo hostil à Igreja (Gomez, 1999: 40).

Para a formação dos missionários laicos, o Seminário de Cernache do Bonjerdim que formava padres seculares desde 1856 foi transformado em 1917 em Instituto de Missões Coloniais (Sousa & Correia, 1998: 70; Ngoenha, 2000: 71).

A partir de 1919 a situação começou a mudar, com a promulgação pelo governo, nesse ano, das primeiras medidas legislativas para a fiscalização das missões estrangeiras, sendo a partir daí obrigadas a submeter os seus estatutos para serem aprovados pelo governo ultramarino. A aproximação entre o governo e a Igreja Católica começa a se verificar em 1922 com a emissão de um decreto de Rodrigues Gaspar pelo qual as missões católicas passam a ser consideradas Missões civilizadoras, título até aí pertencente apenas a missões laicas (Ngoenha, 2000: 72).

No ano de 1926 foram promulgados dispositivos legais que marcaram uma nova fase na relação entre a Igreja Católica e o Estado. Pelo Decreto 8351 de 26 de Agosto de 1926

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declaram-se nacionais todas as Missões subsidiadas pelo Estado e criaram-se dotações para assegurar os vencimentos dos missionários. Ainda no mesmo ano, pelo Decreto 12485 de 13 de Outubro, de João Belo, institui-se o “Estatuto Orgânico das Missões Católicas Portuguesas da África e Timor” que substitui as “Missões Civilizadoras”, ou “Missões laicas” e revigorou a intervenção das missões católicas. Por meio do Decreto era reconhecida a personalidade jurídica das missões católicas e previa-se a concessão de terrenos e algumas isenções (Sousa & Correia, 1998: 70-71).

O favoritismo às missões católicas já tinha sido iniciado pelas disposições de 1922 de Rodrigues Gaspar, portanto, a grande importância do diploma de 1926 para a Igreja Católica, reside na extinção das missões laicas e na confiança depositada nas Missões Católicas para a obra de educação no Ultramar português. Portanto, volta-se à situação anterior a crise do período do liberalismo, isto é, anterior a 1834. Para Ngoenha (2000: 73), o Acordo Missionário de 1940 (documento anexo à Concordata), bem como o respectivo Estatuto Missionário de 1941, não passam de simples resolução de detalhes que dependiam do entendimento entre o governo e as autoridades eclesiásticas, cujo fundamento jurídico já tinha sido anunciado pelo Decreto de João Belo e a nova relação entre a Igreja e o Estado começou a se verificar a partir de 1922 com as disposições de Rodrigues Gaspar.

Na verdade, a Igreja Católica capitulou perante o Estado colonial, pois em troca de um prosélito condicionado, assente em subvenções e prerrogativas sobre o ensino indígena, devia obediência à orientação doutrinária estabelecida pela constituição política de feição nacionalista. Cristianizar devia passar a ser sinónimo de nacionalizar, de portugalizar. Assim, o português torna-se a língua obrigatória do ensino, somente a religião podia ser ensinada em línguas indígenas. O ensino foi uniformizado em todos as colónias portuguesas para responder as necessidades de nacionalização e a possibilidade de os portugueses vivendo nas colónias não perderem o contacto com a metrópole.

Na pregação da Igreja e nos discursos da elite política, “ser português” era sinónimo de ser católico. Como desígnio de Deus, Portugal devia tomar conta do destino dos moçambicanos, uma vez que Deus teria escolhido Portugal para “essa missão”. Desenvolveu-se, assim, na Igreja Católica portuguesa, uma concepção “teleológica” que identificava a fé cristã e a pertença à mãe-pátria, Portugal (Souto, 2007). Depois de um período extremamente conturbado e de violência contra a Igreja e o clero, com a instalação da República a 5 de

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Outubro de 1910, o novo regime repôs a liberdade da igreja, estabeleceu a sua personalidade jurídica e instituiu a doutrina de Deus, Pátria e Família como valores essenciais

O instrumental legislativo foi sendo aperfeiçoado por forma a limitar a acção missionária protestante e das outras nacionalidades consideradas concorrentes na educação dos indígenas. É dentro deste contexto que se aprovam os “Regulamento do Exercício das Missões Religiosas de Diversas Confissões e Nacionalidades” e o “Regulamento das Escolas do Ensino Primário” através dos Diplomas Legislativos nº 167 e 168, respectivamente, de 3 de Agosto de 1929 nos termos dos quais se proibia o uso de línguas vernaculares para o ensino, impondo a língua portuguesa, ao mesmo tempo que restringia a sua utilização para a propaganda religiosa; regulamentava a construção de escolas e seus anexos, formação de professores para escolas indígenas e, limitava a idade de acesso dos indígenas às escolas primárias e internatos (Cruz e Silva, 1998: 400-401). Pelo mesmo diploma limitava-se a acção e mobilidade do pessoal missionário nativo considerando no seu artigo 3º que

“As missões não poderão constituir sucursais entregues a nativos ou encarregar nativos da obra de catequese de propaganda religiosa, sem que estes nativos tenham sido aprovados no exame de instrução primária e tenham com as missões um contrato de prestação de serviços aprovado pela autoridade administrativa” (Direcção dos Serviços de Administração Civil, 1955).

A aliança entre o Igreja Católica e o Estado colonial foi formalmente institucionalizada com a assinatura da Concordata em 1940, do Acordo Missionário e do Estatuto Missionário já em 1941. Nessa altura o Estado transfere para a Igreja Católica a responsabilidade do Ensino Rudimentar, passando a controlar toda a actividade da Igreja (Silva, 2007: 55). Assim voltava-se a situação de 1896.

O artigo nº 1 do Acordo Missionário estabelece que “a divisão eclesiástica das colónias portuguesas será feita em dioceses e circunscrições missionárias autónomas” (O Jornal, 1991: 17). Em relação ao pessoal missionário, estipulava-se que devia ser de nacionalidade portuguesa, podendo contudo ser chamados missionários ou pessoal missionário feminino de nacionalidade estrangeira quando fosse necessário por falta daqueles, mas estavam sujeitos a algumas determinações: deviam ser chamados pelo bispo com prévio acordo entre o Governo e a Santa Sé; ficavam integrados nas missões de organizações missionárias portuguesas; deviam declarar expressamente que renunciavam às leis e tribunais da sua nacionalidade e submetiam às leis e tribunais portugueses e deviam dar prova de falar e escrever

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correctamente o português. Eram as disposições necessárias para que fosse garantida a soberania portuguesa (Souto, 2007: 387).

O art. 66o do Estatuto Missionário dava o monopólio do ensino indígena às missões católicas portuguesas. O seu art. 68o ia mais longe na clarificação da função da Igreja no aspecto educativo:

“o ensino indígena obedecerá a orientação doutrinária estabelecida pela Constituição política e regular-se-á pelos planos e programas adoptados pelos governos das colónias que deve ter em vista a perfeita nacionalização e moralização dos indígenas e a aquisição de hábitos e aptidões de trabalho compreendendo na moralização o abandono da ociosidade e a preparação de futuros trabalhadores rurais e artífices que produzam o suficiente para as suas necessidades e encargos sociais” (Ibid.).

Desde 1845 a educação nas colónias encontrava-se organizada de forma diferente com a da metrópole. Nas colónias o ensino primário estava dividido em ensino rudimentar destinada para os indígenas e a cargo da Igreja Católica, podendo ser ministrado também por Igrejas protestantes, mas sob forte supervisão do Estado, e o ensino oficial para europeus e outro pessoal não indígena (asiáticos, mistos e assimilados), os chamados civilizados. Este último tipo de ensino dependia directamente das estruturas governamentais.

Ao longo do tempo o sistema foi sendo aperfeiçoado por dispositivos legais, respondendo as necessidades de cada momento, até 1960, depois de Portugal proclamar todas as suas possessões ultramarinas como “Províncias Ultramarinas” o que exigia a harmonização de toda a sua máquina administrativa. A partir de 1957 o ensino rudimentar foi convertido em ensino de adaptação (Cruz e Silva, 1998: 401). Tudo isto é ilustrativo do papel jogado pela educação como um aparato ideológico ao serviço da política do Estado colonial de assimilação de uma ordem social que através da qual se estabeleceram categorizações e se naturalizou a diferença, numa clara contradição com o princípio universalista do homem supostamente norteador da política colonial portuguesa.

No período subsequente à assinatura da Concordata, as atitudes da Igreja Católica e do próprio administração do Estado colonial no concernente à aplicação da legislação para o ensino, tornaram a orientação ideológica para a educação mais agressiva e deram origem a métodos repressivos contra os indígenas, crentes protestantes e Igrejas não católicas (Cruz e Silva, 1998: 401). A autora cita exemplos de baptismos compulsivos feitos a crianças das igrejas protestantes, detenções de pastores protestantes e seu recrutamento para tropa ou mesmo para o trabalho forçado.

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Este período conhecido na história política portuguesa por Estado Novo, em Moçambique foi marcado na área social pela produção de um articulado dispositivo legal, administrativo e ideológico que proporcionou um ambiente muito hostil às Igrejas protestantes e aos próprios africanos. Constituiu o momento mais alto e rigoroso da colonização portuguesa em Moçambique. A noção de identidade agora devia passar da esfera étnica concebida pela antropologia missionária para outras esferas superiores de categoria nacional e até “supranacional37”