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Assim que o conceito de identidade foi já antes definido, importa começar aqui por trazer um pouco da etimologia do conceito de etnia antes de considera-lo como qualificativo da identidade.

O uso do conceito de etnia é antigo, na Antiguidade já era empregue, embora o seu significado tenha mudado com o tempo. Os gregos empregavam-no para uma enorme variedade de usos: encontram-se na Ilíada expressões como ethnos etairn, designando um grupo de camaradas, ou ethnos laõn para designar uma hoste; ainda em Odisseia de Homero, o mesmo autor de Ilíada, encontra-se ethnos Achaiõn ou Lukiõn, referindo-se a tribos de

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hostes gloriosas de cadáveres mortos; os ethnea melissõn ou ornithõn, referindo-se a um enxame de abelhas ou bando de pássaros. Novamente na Ilíada; ethnos anerõn ou gunaikõn, referindo-se a uma raça de homens ou mulheres, em Pindar; e a Mēdikon ethnos, referindo-se aos medos ou a própria nação, em Heródoto, assim como nos oradores áticos. O termo aplica- se ainda para referir uma casta particular ou tribo, como a casta dos arautos (ethnos

kērukikõn) em Platão, ou por sexo, como thēlu ethnos, para designar mulheres, em Xenofonte.

Finalmente, veio a ser aplicado para os pagãos (ta ethnē) pelos autores do Novo Testamento e padres, como sendo, todos os grupos nacionais excepto cristãos e judeus (Smith, 1988: 21). Em todos os usos anteriormente apresentados, o denominador comum parece dar significado a um número de pessoas ou animais vivendo juntos e agindo juntos, embora não necessariamente pertencentes ao mesmo clã ou a mesma tribo. Com os gregos o termo ethnos parece ter uma inclinação mais cultural do que biológica ou diferenças de parentesco; são as similaridades dos atributos culturais em um grupo que atraem o termo ethnos. O uso mais próximo ao uso grego com significado de denominador comum encontrado nas línguas ocidentais modernas é o termo francês de ‘ethnie’, que põe ênfase na unidade sobre diferenças culturais, com o sentido de uma comunidade histórica (Smith, 1988: 21).

A concepção de que a identidade étnica ou etnicidade é uma categoria socialmente construída é comumente partilhada por muitos cientistas sociais. Mas, no seu estudo subsistem várias discussões, polarizados essencialmente pela forma como o conceito é assumido pelas diferentes perspectivas como variável.

O debate mais comum em torno do entendimento da categoria da identidade étnica ou etnicidade, decorre entre os primordialistas ou essencialistas e os construtivistas ou social construtivistas conforme as respectivas posições explicadas em seguida. Entre os dois polos, o debate assume a forma de paradigmas de investigação, escolas de pensamento ou áreas sub- disciplinares diversas.

Entre as duas posições situa-se uma terceira perspectiva desenvolvida em Ethnic Groups and

Boundaries de Frederick Barth (1969) conhecida por boundary approach theory, também

chamada situacionismo. Segundo esta linha de pensamento, a pertença do indivíduo a um determinado grupo étnico depende dos seus objectivos ou projecto, sendo por isso contextual. Segundo esta perspectiva, apesar de não defender de forma clara que os grupos étnicos sejam

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associações premeditadas, difunde a ideia de confronto entre os grupos como mecanismos de definir as fronteiras sociais activas ou reativas.

Entre os primordialistas está subjacente a ideia de que a identidade étnica é uma variável independente, conceptualizando-a como estática, essencial e unidimensional, portanto, eles comparam-na com a própria natureza humana. Enquanto que os construtivistas sociais consideram-na dependente, fluida, socialmente construída e multidimensional. Como variável independente, a identidade étnica é muitas vezes utilizada para explicar conflitos, secessões, agressões, guerras.

Reflectindo sobre o contexto social moçambicano, no qual se encontram os tsonga-changanas que é o grupo étnico em estudo, logo uma realidade torna-se imediatamente evidente, uma sociedade bastante heterogénea constituída por várias comunidades de língua, historicamente constituídas por “fluxos e refluxos” de grupos populacionais de origens diversas condicionados por factores naturais (secas, insalubridade), de correlação de poder político, económico, religiosa e de forças imperialistas actuantes.

A situação antes apresentada, torna imediatamente inadequada qualquer consideração primordialista pura no estudo da realidade étnica moçambicana. Considerando a etnia como “um grupo social cuja identidade se define pela comunidade de língua, cultura, tradições, monumentos históricos e território” (Gozzi, 1998: Col. II, 449), fica claro que ela não se define apenas por elementos estáticos pois, o social sempre contempla uma dimensão dinâmica. A categoria tsonga-changana não é uma realidade museológica, ela foi construída por um processo histórico social e interactivo. Sendo razoável por isso admitir identidades étnicas como realidades “definidas pelas regras provenientes do grupo da pertença e conteúdos tipicamente compostos de atributos culturais, tais como religião, língua, costumes, e mitos historicamente partilhados” (Fearon & Latin, 2000: 848). E, de uma forma mais detalhada é,

“cultura comum, pela qual um grupo de pessoas partilha o básico para a vida – seus panos e roupas, o estilo de casas, a maneira como se relacionam com os animais domésticos e a terra agricultável, o trabalho essencial que permite o funcionamento da sociedade e como estão divididos os papeis entre homens e mulheres, de como a caça é organizada, como os assassinos e ladrões são julgados, de como a defesa é organizada contra as ameaças dos intrusos, de como a propriedade e autoridade é assegurada, os ritos de nascimento, casamento e morte, os costumes de namoro, os provérbios, canções, histórias e mitos partilhados, crenças seguidas sobre a morte, deuses ou outros espíritos. Tudo isto partilhado por uma língua falada” (Hastings, 1997: 167).

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Embora não seja possível identificar todos os elementos que o conceito da etnia comporta na realidade tsonga-changana, há elementos suficientes para que ele seja aplicado. É uma comunidade de falantes de uma língua comum, o changana ou xi-changana, com sistema de parentesco, regras que prescreviam o matrimónio, regras de sucessão do trono e dos bens comuns. A invasão e ocupação pelas forças nguni, edificadores do reino de Gaza, constitui uma parcela da história comum, embora sofrida em ritmos diferentes atendendo a distância ou proximidade com a sede da monarquia hegemónica nguni. Todo o território por eles ocupado tinha sido economicamente integrado nos complexos mineiro e agro-industrial sul-africanos como reserva de mão-de-obra. E, finalmente, todos sofreram como parte da história comum o impacto do imperialismo português, da acção missionária Católica e Protestante, com destaque para a Missão Suíça Romande e Metodista. Tudo isto jogou para criar uma identidade colectiva tsonga-changana, mas a actuação em ritmo e intensidade diferentes ocasionou também a delimitação de fronteiras fictícias que foram se consolidando, para dar origem à diferenciações internas do grupo maior tsonga subdividido em ronga, changana e tswa10.