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A etimologia dos etnónimos tsonga e changana e a convenção das suas fronteiras

O etnónimo tsonga tem a sua origem na palavra thonga do idioma zulu. Trata-se de uma designação locativa zulu que em português significa Oriente ou Levante. Como etnónimo, foi empregue inicialmente pelos zulus para designar os seus vizinhos ao Leste, que habitavam as planícies costeiras sul-moçambicanas.

Da palavra thonga surgiram nuances linguísticos resultantes da variação espacial da língua, mas com o mesmo significado tal como é o caso da palavra rhonga ou ronga empregue pelos habitantes da cidade de Maputo e arredores para designar a língua por eles falada e ao grupo étnico a que pertenciam. Segundo Junod (1912b: 35), esta diferença fonológica ocorre porque segundo as regras fonéticas das duas línguas, o R em ronga passa para T+H aspirado quando pronunciado pelos zulus.

O termo tsonga, tal como aqui se emprega, é produto de uma política mais vasta de engenharia social que acabou dando origem a consequências políticas importantes na geografia social do Sul de Moçambique. Tudo começou com o debate travado entre os missionários suíços das estações de Spelonken, no Transvaal e das de Lourenço Marques (actual Maputo) sobre a necessidade ou não de se criar literaturas diferentes, atendendo as variações dialectais thonga e ronga.

O debate linguístico em torno das línguas tsongas dividiu os irmãos Berthoud. Enquanto Paul Berthoud, o coordenador do “Buku”, o primeiro livro escrito em gwamba/thonga, juntamente com Henri-Alexandre Junod, instalados na estação de Lourenço Marques, que tendo se apercebido da diferença entre o gwamba/thonga falado no Transvaal com o rhonga falado em Lourenço Marques e arredores, eram pelo desenvolvimento de uma literatura missionária que atendesse essa diferença, isto é, uma literatura missionária em língua local rhonga separada do gwamba/thonga do Transvaal.

Contrariamente a pretensão de Paul e Junod, Henri Berthoud, o irmão mais novo do Paul, estabelecido em Spelonken, a Missão mãe, onde se falava o então designado gwamba/thonga, não estava a favor de se desenvolver uma literatura missionária separada entre as estações da costa e as do interior. Henri considerava que uma literatura dupla iria levar a uma “cisma” na

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Missão, formando uma barreira entre as congregações africanas de Spelonken e as da costa. Henri não via nenhuma conexão primordial entre língua e identidade e, como nativo do catão francófono do Vaud, a sua compreensão sobre esta matéria, seguia os fundamentos estabelecidos por Ernest Renan, para quem a nação era menos o produto natural de uma língua comum do que um acto voluntário, portanto, “um plebiscito diário” pelo meio do qual o povo expressa a sua vontade de formar uma nação. A partir deste pressuposto, o povo construía a sua língua da mesma forma que gravava a história e inventava a tradição a suportar a sua identidade (Harries, 2007: 195).

Para Henri os indivíduos eram livres de escolher e mudar tanto a língua assim como o grupo a que pertenciam. Se soubesse Henri, teria ainda fortalecido a sua posição mostrando que a decisão tomada pelos missionários da Amercan Board (que estabeleceram a Igreja Metodista Episcopal em Moçambique), de distinguir o tswa (substrato do tsonga falado na Província de Inhambane), do gwamba/thonga, como línguas escritas, era muito mais uma questão política, assumida por razões pragmáticas, tal como era a pretensão de Junod e Paul de separar o ronga do gwamba/thonga.

Diferentemente de Henri, a lógica que guiava a razão de Junod e Paul nesse debate linguístico, tinha pouca preocupação com a finesa teórica, mas orientado objectivamente para o problema específico com que se enfrentava a Missão da costa, onde estava bem claro que sem usarem a forma de discurso local, o seu trabalho de envangelização não podia avançar ou competir com o dos metodistas, nem sequer poderia igualar aos avanços alcançados com os seus colegas de Spelonken.

A Missão da costa, isto é, a de Lourenço Marques (Xilungwini), e arredores estava em competição com a Igreja Metodista Episcopal estabelecida em 1885 por Robert Ndevu Mashaba. O sucesso alcançado por Mashaba residia na pregação do evangelho em língua local, o Ronga ao invés do Gwamba usado pelos missionários suíços, língua do Norte, desprezível em Lourenço Marques e arredores. Mashaba era fluente no inglês e lia o Buku com facilidade. Em 1888 fundou uma escola e, três anos depois, já tinha estabelecido uma missão em Nkasana e nove estações ao longo do rio Tembe, quatro das quais incluíam escolas, tudo com economias próprias. Durante esse período conseguiu também produzir dois livros para ensinar a ler, uma colecção de hinos e ajudou na preparação de um dicionário de ronga com 31 páginas. A literatura de Mashaba em língua ronga apelava aos sentimentos locais, o que lhe possibilitou obter muita aceitação, tendo ganho muitos convertidos (Harries,

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2007: 101). Junod apercebeu-se que o gwamba/thonga colocava a Missão Suíça em desvantagem na área de Lourenço Marques pois essa língua era mais usada na área entre o rio Inkomati e Limpopo, por isso a literatura ronga de Mashaba era recebida mais favoravelmente do que o material escrito no Spelonken em gwamba/thonga. Os suíços procuraram opor-se a esta intromissão no que consideravam o “seu” linguisticamente definido como território da missão (Ibid.).

Para além desta motivação óbvia, é possível que tenha existido outra subjectiva. Em 1861, na sequência de guerra de sucessão no reino de Gaza entre Muzila e o seu irmão Mawewe, foi assinado um acordo de fronteira entre o Governador das terras da coroa de Lourenço Marques e Muzila. Desejando o apoio português contra o seu irmão, Muzila aceitou fixar a fronteira Sul do seu reino no rio Inkomati, cedendo a parte Sul do reino aos portugueses para ser integrado na jurisdição das terras da coroa de Lourenço Marques. É possível que os missionários suíços tenham pretendido respeitar as fronteiras políticas já estabelecidas na sua actividade missionária e ajudar as autoridades políticas na constituição de dois grupos etnicamente distintos, separados por uma fronteira artificial, sendo um tributário de Gaza e outro tributário de Lourenço Marques.

O debate dos missionários suíços sobre a questão linguística terminou na primeira década do século XX com a convecção do termo tsonga como um grupo de línguas que integra o ronga, thonga/changana e tswa. O termo gwamba foi completamente abandonado e substituído por changana. Cada uma das línguas foi estabelecida com base numa gramática e uma ortografia diferente das outras. Mas esta subdivisão foi acima de tudo motivada por questões de natureza política do que precisamente por distinções étnicas. Posteriormente, a actuação de vários factores de acordo com estas fronteiras artificiais foi diferenciando cada vez mais estes três grupos que antes constituíam um único grupo.

O ronga já estabelecido como língua independente, deixou de competir com o thonga/changana graças a atenção dos linguistas da Missão Suíça. Ao mesmo tempo que a separação das línguas amainou o conflito de uma alegada colonização linguística thonga aos rongas, reduzia igualmente a competição entre as estações missionárias do interior (Transvaal e Magude, na curva do Inkomati) e as do litoral sul-moçambicano (Lourenço Marques) pela proeminência na obra missionária entre os tsongas. Isto permite concluir que a divisão das fronteiras linguística por meio do trabalho missionário entre o ronga, thonga/changana e tswa entre os finais do século XIX e início do século XX, basearam-se em critérios inteiramente

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pragmáticos que dariam consequências sociais e políticas inesperadas e indesejadas, tais como o tribalismo, xenofobia, e mais tarde, a segregação e o apartheid.

O termo changana é miticamente explicado como tendo sido derivado do nome do chefe nguni, o fundador do reino de Gaza, Sochangana que depois passou a chamar-se Manikusse (Vilhena, 1996: 24). Surgiu para designar a população submetida pelos monarcas de Gaza entre os rios Inkomati e Save com excepção dos chopis, bitongas e tswa de Inhambane que preservaram a sua independência ou eram tributários das terras da coroa de Inhambane. Portanto, os changanas eram segundo Vilhena (1996: 24), “os homens conquistados, os obreiros utilizados por Sochangana, indispensáveis para a manutenção dos hábitos do povo vencedor, soberbo e avesso ao trabalho”.

Durante o período em que o poderio de Gaza vigorou (1820-1895), os changanas eram chamados mabulundlela pelos seus senhores ngunis. Mabulundlela significa os que abrem o caminho, ou falando figuradamente, os que “batiam o capim alto de manhã para evitar que o orvalho molhasse o senhor nguni quando passasse” (Liesegang, 1996: 35). Mas isso referia-se não só ao orvalho, mas também à resistência militar dos grupos a serem integrados no reino ou tudo quanto pudesse impedir os monarcas ngunis de efectivar quaisquer que fossem os seus desígnios. O termo mabulundlela não designava simplesmente a condição laboral dos tsongas no reino de Gaza, pois as populações situadas ao Norte do Save, igualmente submetidas e integradas no reino de Gaza e com funções idênticas aos tsongas não eram designadas mabulundlela, mantiveram o seu etnónimo ndau.

O termo changana não teve origem nas diferenças etnolinguísticas tsongas anteriormente referidas, mas sim num pacto social estabelecido ou recusado pelos habitantes de uma certa zona no contexto da formação do reino de Gaza entre 1820 a 1845 (Liesegang, 1998: 132). O termo changana ou machangana surgiu para designar a fracção social tsonga integrada no reino de Gaza e que, em certa medida, assimilou a cultura dos conquistadores ngunis através do processo de “angunização”.

O termo parece ter surgido com os portugueses em simultâneo com o termo vatswa para designar os subtidos de Sochangana. Inicialmente o termo abrangia todos os súbditos do reino de Gaza incluindo os ndaus de acordo com MacGonagle (2008), aos poucos sobrou para os súbditos tsongas de Gaza, o autor considera que é a partir da década de 1960 que o termo changana passou a designar apenas os habitantes tsongas da actual Província de Gaza. Os

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ngunis chamavam amatonga ou mabulundlela aos changanas de acordo com o seu estatuto social e, os suíços designavam-nos, inicialmente gwambas e depois thongas, esta última designação emprestaram dos zulus.

Pela força das convenções, actualmente assume-se que o tsonga abrange três sub-grupos marcadamente diferenciados pelas línguas aí faladas: o ronga no Sul, na Província de Maputo e áreas circunvizinhas, o changana no Noroeste, na Província de Gaza e áreas próximas e o tswa no Nordeste, na Província de Inhambane. Porém, estas línguas são mutuamente inteligíveis nas três províncias e na zona meridional das províncias de Manica e Sofala (Ngunga & Faquir, 2011: 225). Para muitos, a língua autóctone que a pessoa fala ou afirma falar, à qual se refere como sua língua, é o maior indicador da sua origem étnica, é a ela que em muitas vezes recorre para reivindicar a sua identidade étnica. Devido a esta questão de associação da língua autóctone à filiação étnica a língua autóctone é socialmente entendida como um forte indicador da sua identidade étnica, ou ao menos como um ponto de partida do qual a reclamação identitária social, étnica ou nacional pode ser feita (Firmino, 2005: 67). O baixo estágio de pesquisa sobre as línguas moçambicanas, associado à multiplicidade de critérios tomados para a determinação de grupos étnicos, em que a questão linguística por vezes assume-se como prioritária faz com que o grupo tsonga seja apresentado como constituindo um mesmo grupo étnico e, noutros casos, como um complexo heterogéneo constituído por três unidades étnicas distintas que correspondem as três principais línguas faladas pelo grupo. A situação fica ainda mais complexas quando não se faz distinção entre o dialecto e a língua.

Por vezes os dialectos de uma língua são tomados como línguas autónomas. Tudo isso faz com que não haja consenso em Moçambique, nem sobre o número de línguas faladas, nem sobre o número de grupos étnicos existentes, há sempre informações divergentes. A isto se associa ao problema de natureza terminológico em que uma língua pode ter vários nomes, por exemplo, na classificação de Guthrie (1967/71) usa-se o termo tswa-ronga para designar o grupo e o termo tsonga, substitui o tsonga-changana como sub-grupo na mesma categoria que o gwamba, um termo já abandonado, que inicialmente também designava o tsonga. Tudo isto cria uma confusão na percepção da realidade linguística e étnica em Moçambique.

O mais importante para esta questão da territorialização da língua apesar da mútua inteligibilidade entre os diferentes segmentos nos quais o grupo tsonga é retalhado, é perceber

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quais os factores que animaram tal sectarização. Partindo do pressuposto de que a língua enquanto uma das principais formas de comunicação constitui um dos instrumentos de controlo e de manutenção de autoridade tal como o são vários outros aparatos do poder como a escola, a Igreja, o direito, facilmente chega-se à conclusão de que tal divisão imana da correlação de forças de poderes actuantes que podem ser de natureza política, religiosa, económica, cultural, moral que recorrem à língua como meio de delimitação de fronteiras identitárias.

Não se deve pensar o tsonga apenas como uma questão de código gramatical, nem se deve procurar compreendê-lo apenas dentro da linguística do sinal, mas acima de tudo, na linguística do sentido assente na prática discursiva. É na prática discursiva onde as diferentes forças atuantes na territorialização da língua tsonga actuaram ou actuam, não é na palavra. A língua tem uma função instrumental enquanto meio de comunicação, e também um papel simbólico que permite o desenvolvimento da identidade cultural. É, portanto, no discurso onde a função simbólica da linguagem se realiza (Ngoenha, 2000: 157).