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O cristianismo introduzido desde os finais do século XIX, numa primeira fase através das missões protestantes com destaque para a Missão Suíça estabelecida primeiro em Magude (1889), envio de um missionário, Georges Liengme junto ao rei Ngungunhane na sua capital em Mandlakazi (1892), tendo depois fundando as Missões de Chicumbane (1908) e Maússe (1921), onde Mondlane iniciou os seus estudos. Depois estabeleceu-se a missão anglicana em Maciene. Mais tarde, com a destruição do reino de Gaza começaram a se estabelecerem as missões católicas, primeiro a Missão de Chongoene (1906), em seguida a Missão Benedito dos Muchopes (1911), em Chidenguele, a Missão de Malehiça (1940) e tantas outras seguiram-se depois.

Quando o Estado colonial português converteu, por meio de acordos e leis, a Igreja Católica num dos principais instrumentos ideológicos ao serviço da sua política colonial, foi obrigado a conceder-lhe vantagens comparativas em relação as Igrejas protestantes. O Estado transferiu uma parcela importante da sua responsabilidade social para com o povo colonizado para a Igreja Católica e concedendo ao pessoal missionário apoio logístico e isenções de muitas das suas responsabilidades tributárias.

Por causa desta posição vantajosa, a Igreja Católica pôde estender a sua obra social para as populações africanas de forma muito acelerada enquanto as Igrejas protestantes enfrentavam uma série de dificultadas pela ilegalização de muitas das suas actividades, principalmente as ligadas a educação dos ditos indígenas.

Com este facto, entre os tsonga-changanas iniciava-se a outra fase de construção de uma nova categoria de identidade para além da dimensão étnica. Aqui actuaram novos elementos catalisadores assentes no ensino de uma língua escrita para a administração pública e

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comunicação ao nível de toda a colónia, e até, de todos os domínios portugueses, ultrapassando os limites étnicos nos quais se circunscrevia a educação e a missionação protestante. Assim, o debate transferiu-se do nível “micro-nacional” para o “supranacional”. Este momento marcou a passagem da antropologia missionária para a antropologia administrativa no território dos tsonga-changanas. O proselitismo promovido pelo Estado colonial conseguiu reduzir o catolicismo numa Igreja nacional engajada em promover uma espécie de “nacionalismo missionário”. Com este pacto a Igreja comprometida com o Estado levou a cabo, na sua obra de educação, a missão de ensinar a língua escrita portuguesa para a totalidade da colónia e uniformizou os programas do ensino dos indígenas.

Na área tsonga-changana, o reino de Gaza já derrotado, tinha antes promovido uma política de integração étnica, mas falhou na promoção de uma cultura nacional exactamente por não ter desenvolvido uma política linguística que cobrisse a totalidade do seu território. Apesar de ter mantido o xingunu como língua da corte, não se preocupou em estender o seu conhecimento e uso por meio de um sistema de educação que garantisse a unidade nacional. As várias chefaturas ou autoridades linhageiras submetidas continuavam a administrar os seus territórios nas suas próprias línguas locais.

No reino de Gaza falava-se cerca de seis línguas e dialectos. As mulheres, mesmo as que de alguma forma estivessem ligadas a corte por meio de casamento ou qualquer outra via, sempre falavam as suas línguas de origem e, naturalmente as crianças eram educadas nas línguas de origem das suas mães, ficando o xingunu restringido a corte e, especialmente para o estrato social masculino, por isso extinguiu e a nação nguni não emergiu.

Então, quando o poder colonial derrotou militarmente o reino de Gaza, lançou-se na obra de implantação da administração colonial centralizada, promoveu a língua e cultura nacional portuguesas procurando ultrapassar os limites locais de chefaturas ou autoridades linhageiras e étnicas por meio de educação, cristianismo e política laboral.

A evolução da política colonial e o aperfeiçoamento do aparelho do Estado permitiu o desenvolvimento efectivo dos sistemas de educação e saúde sob controlo do Estado, embora a responsabilidade tivesse sido conferida à Igreja Católica. Isso permitiu reduzir o protagonismo e a fama que as Igrejas protestantes tinham sobre a população nativa, por serem as únicas produtoras e difusoras de visões do mundo modernas através do evangelho, educação, saúde, regras de higiene, agricultura, no período anterior a queda da 1ª República.

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As Igrejas protestantes ao serem limitadas no desenvolvimento da sua obra de promoção social dos africanos através do evangelho, educação e saúde usando as línguas nativas dos africanos reagiram de formas e ritmos diferentes.

A Missão Suíça, profundamente enraizada na área povoada pelos tsonga-changanas adoptou novas estratégias para poder resistir a pressão do Estado e a concorrência da Igreja Católica. Introduziu um método de educação informal da juventude denominado genericamente

mintlawa38. Era um método de formação de equipas juvenis introduzido por André Clerc

inspirando-se no modelo das equipas de eclereus suíços. Os mintlawas masculinos eram designados valavi va ndlela (procuradores de caminho), as equipas femininas tinham a designação de “zeladoras do lar” e as de crianças eram designadas “estrelas” (Helgesson, 1994: 277). Cada uma das equipas tinha o seu aprendizado. Mas aparentemente a prioridade recaia mais nas equipas masculinas. Estas faziam retiros que duravam uma semana no mato onde aprendiam a construir abrigos com material local, lições de catecismo, canções, organizavam actividades culturais como teatro em equipa para serem apresentados no domingo, aprendiam a trabalhar em equipa, organização e liderança de grupos, cooperação, solidariedade, resiliência, resistência, entre outros aspectos de responsabilidade grupal e individual.

Ngonha (2000: 184) considera que Clerc não tinha uma boa opinião sobre os eclereus da Suíça, sua terra natal, por isso não quis copiar minuciosamente o modelo para os mintlawa, mas sim adaptar o modelo ao espírito, mentalidade e necessidades locais. Partindo desta consideração de Ngoenha e analisando as características das equipas masculinas, e tendo em conta que Clerc antes de viajar para Moçambique leu muito os escritos de Liengme, Junod e outros missionários suíços que o antecederam e que conviveram com a monarquia nguni, não se descarta a hipótese de ele ter associado também elementos dos mabuthos (regimentos) do

impi (exército) nguni na concepção dos mintlawa.

Ngoenha analisa a obra educativa da Missão Suíça na sua globalidade e destaca o ensino da escrita do tsonga, obra dos pioneiros (irmãos Berthoud, Junod), e a instituição dos mintlawa de Clerc como os aspectos que mais se destacam. Porém, ele lança uma série de

38 A palavra mintlawa é plural da palavra ntlawa, é da origem tsonga, pronuncia-se da mesma maneira e tem o

mesmo significado de grupo nas três línguas tsongas (changana, tswa e ronga). Portanto, eram grupos, ou melhor, são grupos porque este método ainda continua, formados por jovens presbiterianos ou metodistas que faziam retiros onde aprendiam técnicas de trabalho em equipas, coordenação, sincronia, liderança, adaptação ao meio, resistência, destreza, auto-defesa, solidariedade. Na literatura das duas igrejas este método é também designado patrulhas.

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questionamentos quanto ao ensino da escrita do tsonga, considerando que os missionários suíços não foram os únicos, nem pioneiros nessa obra (os metodistas foram os primeiros e continuaram esse trabalho com os tswa e bitongas de Inhambane), portanto, a evangelização- educação nas línguas dos neófitos, é um clássico nas Missões protestantes, não foi invenção dos suíços.

Continua ainda Ngoenha considerando mesmo de problemático e controverso o ensino em tsonga que não pode ser comparado com a originalidade dos mintlawa pois, diferentemente do ensino em línguas locais, a instituição dos mintlawa não encontrou oposição a não ser no assimilacionismo português. Mas o ensino em línguas locais enfrentava a concorrência das outras Igrejas prtestantes. Mesmo dentro da própria Missão não era consensual, alguns missionários como o próprio Clerc teriam preferido o ensino em português. E muitos alunos, movidos pela ambição de melhorar a sua situação social preferiam estudar nas escolas avançadas em português, a língua que lhes permitia uma maior inserção social. Então, a educação em tsonga atendia apenas os interesses da Missão, através da conservação dos seus neófitos tsongas dentro da missão. Isto constituía um dos pontos fracos da Missão no tempo da concorrência católica-protestante em que a educação orientou-se para integrar a sociedade global.

Perante a concorrência e a crise do protestantismo, os mintlawa vão permitir a Missão Suíça resistir contra o assalto do governo colonial e também da Igreja Católica. É desta forma que Clerc pode ser considerado como o pioneiro da segunda parte da obra da Missão Suíça em Moçambique. E é com os mintlawa que a Missão concretizou a sua obra prima e a principal de todo o seu trabalho em Moçambique. Se na primeira fase o ensino da escrita da língua tsonga-changana contribuiu para a formação da consciência identitária do nível étnico, os

mintlawa constituíram uma renovação metódica na actuação da Missão que contribuiu para a

formação “vinetana” de individualidades como Mondlane, Mateus Sansão Muthemba, Manganhela, Sidumu, Milagre Mabote, Josina Machel, Guebuza, Orias Simango, entre outros, capazes de arrastar as massas para objectivos como a Independência nacional e da própria Missão. Trata-se de uma nova geração de juventude educada para cultivar de forma eclética valores modernos e tradicionais da sua cultura como a responsabilidade, solidariedade, coordenação, resistência, resiliência, determinação.

Os africanos surpreendidos por disputas religiosas e imperialistas europeias transferidas para o seu terreno, agora convertidos em disputa entre a tsonganidade e a portugalidade, isto é,

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identidade étnica difundida pela acção missionária protestante e a identidade “supranacional” difundida pelo catolicismo nacionalista português encontraram, através dos mintlawa, uma opção mediana, a moçambicanidade, uma identidade por definir e lutar por ela.

Os tsonga-changanas já conheciam a importância de uma língua escrita na construção de uma comunidade tangível, porque já haviam adquirido a experiência com os missionários suíços e metodistas, por isso olharam para a aprendizagem da língua escrita portuguesa não como um castigo colonial, mas sim como uma oportunidade de ampliar o seu horizonte identitário, para erguer a nação cooperando com os diferentes grupos étnicos no espaço colonial abrangida pela língua escrita portuguesa. E, para a superação desta crise de identidade Clerc foi uma peça-chave.

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CAPÍTULO V. A IDEOLOGIA COLONIAL PORTUGUESA E A QUESTÃO DAS IDENTIDADES