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Do romantismo ao pragmatismo na ideologia colonial portuguesa

Retomando a metáfora da enxertia, o segundo passo no processo da enxertia é a escolha do melhor nódulo, o mais vigoroso e saudável para servir de garfo. Neste caso concreto havia a necessidade de escolher o modelo ideal de administração, que como garfo de enxertia fosse implantado em Moçambique. Mas isso foi antecedido por um amplo debate público interno, era preciso decidir se Portugal necessita ou não de manter colónias africanas ou não.

Os acontecimentos da década de 1890 em que se destaca o Ultimatum britânico que aumentou o descredito da monarquia a favor das forças republicanas de aspiração autonomista do império colonial, haviam dado origem a fortes exigências de descentralização administrativa e autonomia colonial. O resultado prático disso foi o conteúdo dos diplomas legislativos dos últimos anos da monarquia e as reformas administrativas coloniais de 1907 que espelham uma tendência de se alcançar algum equilíbrio entre as duas correntes de opinião.

Tudo começa no debate português em volta da Sociedade de Geografia, depois do Ultmatum britânico de 1890, quando homens como Eça de Queirós avançavam a ideia de que Portugal deveria desinteressar-se dos ‘selvagens’ das colónias. Argumentavam que Portugal tinha se mostrado na sua trajetória mau colonizador o que só lhe tinha valido frustrações e humilhações, desde a perda do Congo a favor dos belgas até ao já referido Ultmatum britânico. Mas contra as teses dos que apregoavam a desistência de Portugal no jogo colonial, surge uma plêiade de jovens como António Enes e, depois, Mouzinho de Albuquerque que

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defendiam a manutenção de Portugal jogando por elementos de natureza estratégica e, fundamentalmente económicos. Aos seus olhos,

“[…] era necessário ter colónias rentáveis como moeda de troca para melhor integrar a Europa. Para isso, Portugal teria primeiro que pacificar as sua terras, controlá-las com militares e, sobretudo, pretos para trabalhá-las” (Ngoenha, 2004: 103).

Assim que Portugal decidiu pela sua manutenção nas colónias africanas o passo seguinte foi de selecção do melhor modelo da administração que devia ser adoptado pela colonização portuguesa. Esta constitui a fase crucial de gestação teórica de um modelo colonial tipicamente português a ser aplicado na África o que implicava o domínio efectivo e tentativas de concretização do referido modelo.

As mudanças, pelo menos na concepção teórica começaram a serem efectuadas nas duas últimas décadas do século XIX, esse é até certo ponto, um momento de distorções graves através de conquistas militares, exercício do poder e da introdução de uma nova política de assimilação tendencial. Depois da ocupação militar efectiva, ao não considerar e ao relegar para um plano inferior os outros sistemas de conhecimento, a administração colonial portuguesa em Moçambique impôs progressivamente uma visão singular da história, onde a ciência e a burocracia tiveram um carácter exclusivo na explicação e organização do mundo. “Esta intervenção colonial trouxe consigo novos conflitos que marcaram a relação entre diferentes experiências, saberes e culturas” (Meneses, 2009: 11-12).

O passo seguinte da metáfora de enxertia, consiste em preparar o “cavalo” para alojar o “garfo”. Esta operação consiste em cortar a gema terminal e as ramificações laterais caso existam para permitir que o caule do “cavalo” sustente apenas o novo ramo enxertado sem competição com as outras zonas de crescimento. Sempre as histórias que acompanharam a edificação do Estado-nacional moderno, mesmo na sua génese na Europa nunca foram passificas. São momentos conflituosos, caracterizados por guerras e até revoluções, este foi o caso da França, em que houve uma grande revolução seguida de guerras que se alastraram e afectaram quase toda a Europa. Em todo esse processo há sempre sacrificados porque morrem na guerra ou na revolução ou porque a nova ordem lhes tira o poder, para no fim se estabelecer uma “nova ordem”.

Na implantação do Estado colonial, o enxerto (garfo), que mais tarde se instalaria no “cavalo” vernacular africano da matriz cultural étnica e pré-moderna no seu aspecto político, para dar origem a uma nova árvore melhorada através da enxertia que é o Estado moderno

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moçambicano e a nação em definição como o seu fruto em maturação teve que passar por um período de guerras para a destruição do poder e estruturas da velha ordem política e cultural de matriz tradicional africana. Na lógica da metáfora que se segue, estes seriam ramos laterais e gema terminal do cavalo que para não competirem com o ramo enxertado tiveram que ser sacrificados.

Este foi o caso do reino de Gaza. Tal como foi explicado nos capítulos anteriores, o reino de Gaza embora tivesse dado alguns passos para frente em relação as formações políticas locais de chefaturas e autoridades linhageiras, não estava configurado de acordo com os modelos de um Estado moderno, não havia um aparelho estatal propriamente dito, independente do aparelho administrativo e estrutura militar. O reino não desenvolveu políticas tendentes a formação de uma cultura de carácter nacional. Incorporou várias chefaturas e autoridades linhageiras sem se preocupar em criar um aparelho estatal coerente, cada uma das formações políticas incorporada governava a seu bel-prazer desde que pagasse tributo e enviasse reforços militares em caso de necessidade para o rei.

A diplomacia de Ngungunhane mostrou-se ambígua na fase derradeira do seu reinado. Mesmo jurando ser súbdito de Portugal aceitava presentes da British South Africa Company (BSAC), e enviou embaixadas para Pretória e Londres, mostrando ao governo britânico uma certa vulnerabilidade que dava esperança de um certo dia poder aceitar se converter em protetorado. Tudo isto levantava desconfiança dos portugueses sobre a fidelidade do monarca, e perante o espetro cada vez mais crescente do avanço do imperialismo britânico na região, Portugal achou como melhor caminho para afastar a ameaça britânica o afastamento do incomodo Ngungunhane.

A “Escola de Enes” ou de Centuriões, ou ainda “Geração de 1895” acabou por constituir um instrumento para pôr em prática o modelo concebido aniquilando militarmente as unidades políticas moçambicanas pelas chamadas “campanhas de pacificação” em que a destruição do Estado de Gaza e a prisão e deportação do respectivo rei Ngungunhane constituiu o grande sucesso das campanhas.

A resistência desencadeada no Norte e Centro de Moçambique conquanto fosse intensa do que o que inesperadamente aconteceu com Gaza no Sul, na altura um dos maiores Estados da África Subsahariana, era secundária na geopolítica da ocupação colonial portuguesa pelo facto dessas regiões localizarem-se longe dos eixos de conflitos com o imperialismo britânico

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que se propagava do Sul ao Norte e de Oeste a Este da África Austral pressionando as respectivas franjas de Moçambique. A vitória sobre Gaza revitalizou também as glorias imperiais portuguesas e a confiança na heroicidade e no vigor militar portugueses que haviam sido abafados pelo humilhante Ultimatum britânico de 1890. Este ponto é igualmente corroborado pelo estudo de Fernandes (2011: 84) que defende a ideia de que “para além das pressões externas decorrentes da abertura da ‘scramble for Africa’, a estrutura do moderno império português se ficou a dever ao impacto ‘positivo’ do ponto de vista metropolitano, dos sucessos militares alcançados em Moçambique pela chamada ‘geração de 1895’”. Mas é preciso observar que este sucesso enquadra-se no quadro geral da política colonial portuguesa que começou a ser configurada nos finais da década de 1870, tendo reformulado o método da sua implementação depois do Ultimatum britânico de 1890.

De extrema relevância para o caso de Moçambique foi, a cima de tudo, a elaboração de um profuso aparato legal e administrativo para o enquadramento especial da multiplicidade dos actores segundo premissas marcadamente raciais que por sua vez produziu reacções anti- raciais pelos atingidos. Tendo sido o espaço urbano o palco privilegiado para esses embates.

“Antes mesmo de ter conquistado militarmente todo o território de Moçambique, o Estado colonial português, foi implantando, não sem tropeços e dificuldades, a sua máquina administrativa. Diante da insignificante presença da população de origem europeia e da diversidade cultural existente no terreno, que incluía africanos, chineses e indianos de múltiplas origens, uma das preocupações do novo poder foi a criação de identidades subordinadas para os outros, particularmente para a esmagadora população africana e, ao mesmo tempo, o traçado de fronteiras identitárias entre esta massa de africanos e os outros poucos africanos que delas estariam isentos, além de regular a vida destas e de outras categorias sociais e culturais diante do colonialismo” (Zamparoni, 2012b: 150).

Desta forma, os vários grupos sociais submetidos à dominação colonial em Moçambique viram as suas identidades sociais ignoradas para a constituição da categoria “indígena” que por sua vez iria conhecer metamorfoses conceptuais à luz da legislação jogando pelos interesses coloniais principalmente os de natureza económica e política.

Não sendo considerados cidadãos, quem seriam esses africanos acabados de serem conquistados e qual era o seu lugar no imaginário e na legislação colonial? Na verdade, a definição das características necessárias à criação da identidade indígena foi feita por meio de códigos e regulamentos. O primeiro acto legislativo a definir as características do indígena foi o Decreto de 27 de Setembro de 1894 referente à penas de trabalhos públicos, aplicável às terras portuguesas da África, dispunha no seu artigo 1º que “somente são considerados

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indígenas os nascidos no Ultramar, de pai e mãe indígenas e que não se distinguem pela sua ilustração e costumes do comum de sua raça” (Zamparoni, 2012b: 153).

Embora ainda avultassem ideias de antropologia física e do darwinismo social, nesta definição não estão presentes atributos físicos dos indivíduos. Já em 1909, pelo Decreto de 09 de Julho referente ao Regime Provisório para a Concessão de Terrenos do Estado na Província de Moçambique, define-se indígena como sendo “o indivíduo de cor, natural da Província e nela residente que, pelo seu desenvolvimento moral e intelectual, se não afaste do comum da sua raça” (Boletim Oficial. 35/1909). Daqui já surge um atributo físico na definição, a cor, naturalmente de todos os que não são brancos e daqui em diante passará a ser o critério preliminar da classificação.

No Regulamento para Importação, Venda, Uso e Porte de Armas de Fogo publicado pela Portaria nº 2292 de 07 de Dezembro de 1914, ficaram mais claros os atributos biológico de natureza física e de descendência ao definir indígena como sendo o “filho de pai e mãe pertencentes às raças nativas da África” como também para quem “tendo os caracteres físicos dessas raças não possa provar descendência diferente” (Boletim Oficial. 51/1914).

A definição final foi publicada pela Portaria Provincial nº 317 de 1917, definindo o indígena como sendo “o indivíduo da raça negra ou dela descendente que pela sua ilustração e costumes se não distingue do comum daquela raça” (Boletim Oficial. 02/1917). Significa que com esta portaria mesmo os mulatos (mestiços), que haviam escapado de serem integrado nessa categoria à luz das antigas definições, agora já estavam inclusos. Isto provocou grandes protestos por parte dos mistiços. Mas o facto é que, em plena crise de emprego provocado pela I Guerra Mundial era preciso diminuir a concorrência do estrato mestiço nos poucos postos de emprego disponíveis.

Entre 1894 a 1899 foram nomeadas pelo governo da metrópole comissões encarregadas de realizar estudos sobre os problemas administrativos e económicos das colónias e dar uma solução eventual e imediata, devendo posteriormente serem aprovadas pelo Governo da metrópole (Martins, 1975: 63).

Foi dentro da sequência das comissões de estudo que António Enes presidiu uma comissão nomeada pelo governo da metrópole para rever a legislação laboral. Do trabalho realizado pela comissão resultou na promulgação da lei laboral de 1899, a primeira orientada especificamente para o trabalho indígena considerando que

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O aspecto mais importante desta lei é a descriminação do trabalho indígena no contexto geral da lei laboral portuguesa a quem era imputado a “obrigação moral e legal” de trabalhar e de outro modo a obrigação só podia ser cumprida com o trabalho remunerado e as autoridades locais dispunham de poderes para contratar à força aqueles que por sua iniciativa não procurassem trabalho” o que significa que o trabalho podia ser forçado caso os indígenas não o anuíssem de forma livre.

Foi este o início da subjugação da força do trabalho dos africanos numa versão moderna da escravatura e, sobretudo o início de exploração colonial. A lei laboral de Enes de 1899 especialmente para os “indígenas” dava já uma consagração jurídica a esse princípio que contemplava a obrigatoriedade do trabalho aos africanos. E, com ela iniciou-se a legislação especificamente colonial que tinha uma base segregacionista. Em última análise, esta constituiu a base tanto do modelo administrativo adoptado nas colónias portuguesas de África assim como da própria estrutura económica estabelecida em consonância com o estágio do capitalismo atrasado da burguesia portuguesa, pese embora o modelo tenha conhecido nuances na sua evolução, a estrutura básica sobreviveu pelos diferentes regimes e governos de Portugal colonial.

O outro aspecto mais importante no plano administrativo da já referida comissão foi o projecto da ‘Reorganização Administrativa Colonial’ que iniciou com a publicação de um decreto a 23 de Maio de 1907 (Martins, 1975: 65). Este decreto deu início, de facto, à prática da colonização portuguesa. Uma das características principais deste diploma seria o conteúdo das leis do decreto compiladas em função de dois grupos: os brancos e os indígenas.

Durante o período em que a comissão esteve activa, foram muitos os administradores e oficiais portugueses que trabalhando em Moçambique deram a sua contribuição para o alcance dos objectivos traçados. Destacaram-se mais figuras como António Enes, Mouzinho de Albuquerque, Paiva de Andrade e Paiva Couceiro (Ibid.).

Na legislação sobre a administração da população africana destaca-se a questão da “divisão do território em circunscrições e capitanias-mores, sempre que se tratasse de regiões predominantemente habitadas pelos indígenas” (Ibid.). Em 1904 foi formalmente instituída a Secretaria dos Negócios Indígenas (SNI) com a finalidade de “organizar um sistema judicial

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indígena, regulamentar as obrigações dos chefes, codificar as leis africanas, organizar um registo civil dos indígenas, delinear reservas, controlar a emigração e assumir a responsabilidade pela assistência” (Newitt, 1997: 345). As circunscrições podiam ser substituídas pelos comandos militares, no caso em que uma área não fosse considerada pacífica e se rebelasse contra as autoridades portuguesas, mais ainda:

“tanto o administrador da circunscrição como o capitão-mor poderiam dispor de amplos poderes para a administração e governação das populações indígenas, aos quais se exigiam largos conhecimentos acerca dos costumes indígenas, assim como prática de serviços no interior […]. A estes cabiam a direcção da política indígena na área, isto é, da jurisdição, embora devesse acatar as directrizes dos governadores do distrito, com os quais deviam manter relações estreitas. Este por sua vez dependeria do governador-geral a quem competia dirigir a política indígena em todo o território” (Martins, 1975: 65).

Com este modelo administrativo os regimes sucederam-se cada um deixando a sua marca com reformas que não chegavam de mudar significativamente a estrutura básica do modelo, foi se oscilando entre a moderação e o extremo na centralização sem, no entanto, se alcançar uma democracia local efectiva, fora das poucas cidades com conselhos municipais activos – na realidade, apenas Lourenço Marques (Newitt, 1997: 346). Não há formas possíveis de comparação entre Moçambique colonial e a Rodésia de Sul muito embora a população de colonos acabasse por atingir uma dimensão comparável, as duas comunidades eram polos opostos no seu desenvolvimento político.

“Mesmo quando Lisboa devolveu a autonomia das colónias na década de 1920, Moçambique continuou a ser governado não pelos colonos locais, mas por uma elite de funcionários coloniais que eram Portugueses na sua orientação e lealdade e pediam apoio de Lisboa. O governo, e por consequência, a política governamental, em Moçambique não eram animados pela opinião local de qualquer forma consistente e, conquanto os grupos de pressão locais pudessem por vezes fazer-se sentir, não conseguiram, por um longo período, ditar a política do governo ou sequer influenciá-la em qualquer direcção congruente” (Newitt, 1997: 346).

A situação agravou-se ainda mais com o golpe militar de 28 de Maio de 1926 que derrubou a 1ª República portuguesa. Esse facto, viria a desencadear profundas alterações nas colónias ao se inaugurar uma época de racionalização na política colonial portuguesa. Seguiu-se um período historicamente conhecido como Estado Novo (1926-1959), durante o qual, as linhas de orientação da política colonial portuguesa, diversamente assumidas na sua evolução, incitaram discursos e práticas consentâneas com as solicitudes e os interesses económicos, sociais e políticos procedentes desse modelo colonial.

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O Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas da Guiné, Angola e Moçambique promulgado em 1929 e a Reforma Administrativa Ultramarina (RAU) de 1933 constituem outros instrumentos que nesse momento contribuíram bastante nas mudanças em curso no terreno colonial. Com eles “a colonização portuguesa adopta formalmente o sistema de

indirect rule, mesmo sem o nomear” (Florêncio, 2008: 372), segregando a população indígena

das colónias sem, no entanto, descentralizar a administração dos territórios coloniais. Com este modelo ficou claramente assumida a duplicidade política e jurídica da sociedade colonial em que a população “indígena” foi oficialmente vedada de integrar plenamente a sociedade portuguesa, devendo esta continuar a reproduzir-se segundo os seus modelos tradicionais de organização social. É neste sentido que segundo Florêncio (2008: 372), as instituições políticas locais, nomeadamente as suas autoridades tradicionais assumem especial relevo. O RAU definiu a divisão administrativa das colónias portuguesas e as funções de cada categoria de funcionários administrativos e assumiu igualmente uma maior importência, na medida em que integrou as autoridades tradicionais no aparelho administrativo e definiu o modelo da sua subordinação ao Estado colonial.

A dependência da administração colonial ao poder central da metrópole colonial distante numa clara incapacidade de criar quaisquer órgãos de democracia dos colonos ou indígenas iria revestir primordial importância na fase derradeira da colonização portuguesa em Moçambique. Isto tem sinais que ainda ecoa na opinião pública portuguesa: “nós descolonizamos mal as nossas antigas colónias africanas”. Os Afro-portugueses, que tinham sido a mola real nas fases iniciais da história da colonização portuguesa em Moçambique, se viam completamente excluídos do poder e não iriam surgir em nenhum dos sectores da população moçambicana.