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Em termos etimológicos, a palavra identidade tal como é conhecida em português, provém do latim identitas que significa qualidade do idêntico e que, por sua vez, deriva do adjectivo latino idem que significa idêntico (Dicionário Editora, 2000: Col. II, 318). Para além do latim, de onde descende o português, encontram-se noutras línguas antigas, palavras com o mesmo significado de identidade, a exemplo de xaútóxriç em grego, o que sugere uma aplicação antiga da palavra.

A categoria de identidade possui uma “pré-história,” que é reconstituída no estudo de Marcel Mauss datado originalmente de 1936 e reconsiderado em seus estudos posteriores. Nesse estudo, o autor mostra que “um imenso conjunto de sociedades chegou à noção de personagem, de papel cumprido pelo indivíduo em dramas sagrados, assim como ele desempenha um papel na vida familiar” (Mauss, 1936: 381-382). Desta forma a personificação do indivíduo estava imbuída de um conteúdo identitário socialmente construído, denotando-se aqui a importância da interação simbólica no processo da construção da identidade social. O autor analisou várias instituições sociais das sociedades primitivas em que fazem parte os Índios Pueblos do Zuñis do México; os Kwakiutl do noroeste americano, e os Arunta, os Loritja e os Kakadu da Austrália, antes de passar para as sociedades da Antiguidade (India, China, Grécia e Roma); cristã medieval, até ao período contemporâneo. O autor tinha como intenção, caracterizar a pessoa como definição social da personagem nas sociedades primitivas para, posteriormente, construir uma história social da noção, no Ocidente.

Em busca das origens no individualismo moderno, Dumont (1981) fez uma análise comparativa da instituição da Índia antiga, tendo considerado que, há mais de dois mil anos a sociedade indiana caracterizava-se por dois traços complementares:

“a sociedade impõe a cada um, uma interdependência estrita que substitui ao indivíduo tal como o conhecemos, um conjunto de relações obrigatórias, mas por outro lado a instituição da renúncia ao mundo permite a plena independência a quem quer que escolha essa via. (…) o homem que procura a verdade última abandona a vida social e as suas imposições para se consagrar ao seu progresso e ao seu destino próprio. O renunciante basta-se a si próprio, não se preocupa senão consigo. O seu pensamento é semelhante ao do indivíduo moderno, mas com uma diferença apesar de tudo essencial: nós vivemos no mundo social, ele vive fora desse mundo”.

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É por isso que o autor chama ao renunciante indiano de “indivíduo-fora-do-mundo” diferente do moderno que é para ele “indivíduo-no-mundo”.

De uma fase “pré-histórica,” a categoria de identidade passa para uma fase histórica propriamente dita mediante interpretações variadas, porém, interdependentes. Para Mauss (1936: 394),

“A noção de pessoa havia ainda de sofrer uma outra transformação para tornar-se o que ela se tornou há menos de um século e meio [considere-se que o texto original foi escrito em 1938, calculando um século e meio para trás está-se mais ou menos na época das revoluções burguesas: industrial e liberais], a categoria do Eu”. Longe de ser a ideia primordial, inata, claramente inscrita desde Adão no mais fundo do nosso ser, eis que ela continua, até quase o nosso tempo, lentamente a edificar-se, a clarificar-se, a especificar-se, a identificar-se com o conhecimento de si, com a consciência psicológica”.

Na sua abordagem, Mauss esclarece que não foi a revolução cartesiana com o Cogito ergo

sum (Eu penso, logo existo) que o problema da pessoa, que é apenas consciência, encontrou a

sua solução, mas nos movimentos sectários, durante os séculos XVII e XVIII, sobre a formação do pensamento político e filosófico. Foi neles que se colocaram as questões da liberdade individual, do direito de comunicar-se directamente com Deus, de ser um sacerdote para si mesmo, de ter um Deus interior. Aqui se estabeleceu a noção: pessoa correspondente ao Eu; e o Eu igual a consciência, sua categoria primordial. Na interpretação de Mauss, isso é obra recente de Hume, que revolucionou tudo por afirmar que na alma havia, apenas estados

de consciência, ‘percepções’; mas ele hesitava diante da noção do “Eu” como categoria

fundamental da consciência. É com Kant (que fez da consciência individual, do carácter sagrado da condição humana, a condição da razão prática), e, sobretudo com Fichte (que fez dela, e, também a categoria do “Eu”, condição da consciência e da ciência, da Razão Pura), que a categoria do “Eu” tornou-se condição da consciência e da ciência.

A visão “pré-histórica” da categoria de identidade ora apresentada, é resultado da interpretação que a antropologia, sujeita a opções epistemológicas e metodológicas construídas desde o século XIX, quando se tornou ciência autónoma da reflexões romântico- filosóficas elaborou, tendo continuado a influenciar gerações até ao início do século XX. Para além da antropologia, que de forma mais restrita pode ser definida como ciência “que procura esclarecer o que são os homens, estudando quem eles são” (Sperber, 1992 citado por Lopes, 2002: 13); surgiu ao mesmo tempo (século XIX), a Psicologia, para estudar “as capacidades mentais humanas através das suas manifestações individuais” (Ibid.).

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Segundo Lopes (2002: 13),

“A rigor, esta divisão visava estabelecer modelos e limites mais consistentes ao estudo empírico dos registos teóricos que a Filosofia elaborou a respeito da condição do homem, quando optou por conhecê-lo nos parâmetros culturais em que sua origem humana se assenta. Ao procurar conhecer o homem na história, a reflexão filosófica operou um movimento com dois pressupostos: o sujeito e o tempo. Essa reflexão permitiu três registos da consciência humana: pela identidade consigo mesma, surgiu a figura psicológica do “eu”, o ego – nesse sentido o ego é uma entidade: id-entidade. A figura moral ou ética, que se pensa em responsabilidade e liberdade, produziu a consciência da pessoa. Já pela faculdade de síntese ou conhecimento, cultural ou histórico, surgiu o sujeito consciente da sua acção”.

Foi dentro do contexto antes considerado que a Psicologia e a Antropologia terão surgido. A Psicologia centrou-se na figura psicológica do indivíduo para buscar no ‘comportamento,’ as explicações que orientam as acções humanas, enquanto que a Antropologia buscou as mesmas explicações no estudo da noção de pessoa que para Lopes (2002), é devido ao facto de ater-se ao conhecimento das sociedades ditas ‘primitivas’ ou tradicionais, onde acreditava-se que as noções de indivíduo e de sujeito (histórico) estavam ausentes ou, quando muito, diluíam-se nas manifestações colectivas. No entender do mesmo autor,

“os termos que definem a contribuição antropológica para o entendimento da categoria identidade são obscurecidos, primeiramente, porque os estudos sobre a noção de pessoa, em Antropologia, dedicaram-se quase exclusivamente, até bem pouco tempo, à análise das sociedades ditas primitivas”.

No campo da sociologia o conceito de identidade, na sua vertente social, foi sendo historicamente construído, desde os clássicos com os seus conceitos operativos tais como “consciência colectiva” ou “comum” em Durkheim definida como “conjunto das crenças e sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade que forma um sistema determinado com vida própria” (Durkheim, 1893: 50); “consciência de classe” em Marx; “verestehen (entender-se)” e de “grupo de status” em Weber; e, “gemeinschaft (comunidade)” em F. Toennies, lançaram as bases que influenciaram as futuras gerações de cientistas sociais no entendimento do conceito de identidade.

As duas guerras mundiais despontaram um conjunto de questionamento sobre a pessoa humana, conduzindo a um novo repensar de conceitos antigos e novos em torno do sujeito humano, tais como consciência, personalidade, identidade, discutidos agora em vários domínios das ciências sociais e humanas tais como Psicologia, Antropologia, Sociologia, Filosofia, História, Ciência Política. Foi dentro desse contexto que o estudo da categoria de

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identidade começou a interessar várias ciências sociais, tendo ganhado nesse processo novos contornos em termos da sua abordagem.

Erick Erickson partindo de seus estudos no campo da psicanálise infantil, inspirando-se nas teorias psicanalíticas freudianas, mais concretamente a partir da experiência de trabalho com Anna Freud, tornou-se a figura chave que colocou a noção moderna de identidade em circulação. Foi quem introduziu o termo “crise de identidade” e, mais do que qualquer outro autor, tornou o conceito de identidade mais popularizado. Encontramos o conceito na sua obra primeira Childhood and Society publicado em 1950 e que é considerado o seu principal legado.

Os seus trabalhos sobre identidade foram formulados nos fins da década de 1930 e durante a Segunda Guerra Mundial, são ainda hoje importantes para explicar como se adquire ou se constrói a identidade pessoal.

Para Erickson (1976), os eventos que ocorrem ao longo da vida de uma pessoa, produzem nela uma imagem de si mesma, através das relações estabelecidas com os outros (família, comunidade e outros contextos sociais). Portanto, a identidade pessoal na óptica de Erickson (1967: 61) “representa mais que o nome ou a posição que a pessoa ocupa na comunidade, inclui um senso subjectivo de existência contínua e memória coerente que se estrutura e se restrutura no percurso da vida da pessoa”. O activo do processo é, por um lado, o desenvolvimento biológico e, por outro, as interacções sociais do sujeito ao longo da sua vida. Identidade é também para Erickson, a sensação que a pessoa tem de permanecer a mesma ao longo do tempo, o que será também reconhecido pelos outros. É desta forma que, o autor considera também que o desenvolvimento gradual de uma identidade psicossocial pressupõe uma comunidade de pessoas cujos valores tradicionais tornam-se significativos para a pessoa que se desenvolve, na mesma medida que, o seu crescimento e desenvolvimento vão adquirindo importância para a comunidade. Portanto, a identidade constrói-se num contexto de interseção de factores de natureza individual e de natureza cultural em que o indivíduo se insere. Seguindo a tradição freudiana, Erickson considera que a identidade localiza-se no âmago da estrutura psíquica profunda do indivíduo, mas sofre modificações e adapta-se através do processo de interacção entre o indivíduo e o meio social.

Os fundamentos da teoria de Erickson baseados nos conflitos e na noção de crise de identidade por ele cunhada, que partem do pressuposto de que, o estudo de identidade

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psicossocial que se assenta sobre a hierarquia dos elementos positivos e negativos presentes nos estágios de indivíduo, são importantes na percepção do processo de transformação social em curso no continente africano bem como na interpretação da situação de ambivalência cultural que caracteriza a sociedade moçambicana, já registada por alguns estudos citados ao longo desta pesquisa. Sabe-se que, Erickson situa a crise de identidade ao nível da pessoa psicológica, mas na situação ora referida terá que ser estudada ao nível social (étnico e nacional).

A partir da longa trajetória, descrevendo o processo da construção da noção de identidade, desde as sociedades primitivas ao surgimento da ciência, com destaque para o surgimento das ciências sociais, chegou-se ao entendimento de que a identidade é uma categoria psicossocial, atrelada aos contextos tempo-espaço. De todo o desenvolvimento feito, é preciso frisar que os vários significados resultantes da evolução do conceito e da variedade das ciências que dele fazem uso, demonstram que está se perante um conceito polissémico e com fronteiras bastante ténues. Não se distingue apenas pela falta de unanimidade na sua definição, como também pela diversidade dos aspectos que as várias definições engendram.

Para ser mais breve, importa frisar que o conceito de identidade tem, no contexto restrito, dois sentidos fundamentais: a identidade pessoal que reflecte o sentido da personalidade particular, mais debatido no campo da psicanalise; e a identidade social, reflectindo o sentido social discutido em várias áreas das ciências sociais. É este último sentido que se segue nesta pesquisa, embora sabe-se que no sentido mais abrangente identidade é sempre uma categoria social.

Na verdade, nas ciências sociais, ainda não há consenso sobre como definir identidade; nem há consistência nos procedimentos usados na determinação do conteúdo e esfera de identidade; nem existe acordo sobre onde procurar evidências de que a identidade na verdade afecta o pensamento, interpretações, crenças, preferências e estratégias; nem existe acordo sobre como a identidade afecta essas componentes de acções. De uma forma simples, o problema reside no facto de que nas ciências sociais não há consenso sobre como tratar a identidade como uma variável. Isto não implica que se apregoa aqui consensos, mas esta ausência, reflecte a profundidade do trabalho necessário em algumas questões básicas sobre como conceptualizar e estudar a identidade.

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Pela descrição feita do percurso de construção social do conceito de identidade, e os debates travados em diferentes escolas sobre o conceito no transcorrer do tempo, tornam ainda válida a constatação de Gleason (1983) segundo a qual o significado de identidade tal como se usa correntemente na actualidade não é totalmente alcançado pelas definições dos dicionários, os quais reflectem o sentido mais antigo do conceito. A ideia presente de identidade é claramente uma construção social e, por isso um pouco mais complexa.

Existe um número muito elevado de académicos que definiram o conceito de identidade, é o caso de Erickson (1967; 1976), Tajfel (1972; 1985), Turner (1985), Mead (1925), Cooley (1968), Luckmann, Goffman (1954), Gleason (1983), Fearon (1999), Hasting (1997), Smith (1988; 1991), só para indicar alguns, procurando cada qual a sua fórmula. O que se constata é que em parte, as diferenças reflectem as múltiplas linhagens nas quais o conceito de identidade foi tratado academicamente. As diferentes tradições são resultado das influências diversas provenientes do interacionismo simbólico, teoria de papeis, Psicologia ericksoniana,

Social Identity Theory (SIT), e o chamado pós-modernismo, cada qual ajusta a definição aos

propósitos da sua pesquisa e da sua tradição teórica.

Para efeitos operacionais, aqui adopta-se a definição de Fearon (1999: 10) segundo a qual “identidade é, portanto, uma categoria social, um grupo de pessoas distinguidas por um rótulo (ou rótulos) que é comumente usado seja pelas referidas pessoas, pelos outros ou ambos”. Desta forma, assume-se a concepção segundo a qual a identidade é uma categorial social dependente que se constrói no transcorrer do tempo mediante processo interactivos complexos entre pessoas envolvidas num jogo de semelhanças e diferenças.