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A terra natal dos tsongas é morfologicamente constituída por uma extensa planície costeira que se eleva gradualmente ao ocidente até à cordilheira dos Libombos. Aí correm alguns dos

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importantes rios de Moçambique, resvalando a planície no sentido Oeste-Este, com excepção do rio Changane, um dos afluentes do Limpopo e do Govuro, que correm na direcção Norte- Sul e Sul-Norte, respectivamente. Quanto mais os rios se aproximam da costa oceânica onde desaguam, tendem a aumentar os seus leitos devido aos acréscimos das águas recebidas da vasta rede dos seus afluentes e também à configuração mais rasa do terreno. Assim, do Sul ao Norte constituem importantes rios, o Maputo, Inkomati, Tembe, Limpopo, Inharrime, Govuro e Save, sem contar com os afluentes e outros tantos de pequenas dimensões.

A ocidente dos montes Libombos encontram-se planaltos resvalados. Os Libombos até ao século XIX, ainda constituíam a divisão entre a costa e a zona escarpada ao ocidente. Estes rios constituíram por longos períodos, o caminho que conduziu caçadores, comerciantes e ondas de emigrantes de e para o interior.

Mas, esta rede hidrográfiaca não está distribuída uniformemente, existem zonas mais irrigadas e outras quase desertas, principalmente a parte ocidental da Província de Inhambane e a parte Norte da Província de Gaza. Onde os rios são escaços ou quase inexistentes, as lagoas é que asseguram o abastecimento da água necessária à existência da vida vegetal e animal.

Nos vales dos rios formaram-se solos aluvionares conhecidos localmente por nyaka com grande potencial para a prática da agricultura e criação do gado. Nas proximidades da foz os vales tendem a ser mais abertos devido a ocorrência de extensas planícies irrigadas pelas cheias dos rios na estação chuvosa, permitindo a deposição de detritos orgânicos arrastados à montante, que ao se decomporem tornam os solos escuros e mais férteis. Os vales dos rios Limpopo e Inkomati são os mais extensos ao nível da região Sul de Moçambique. Nas áreas distantes dos cursos dos rios, a planície costeira comporta solos arenosos bastantes lixiviados e com baixa produtividade agropecuária. É esta combinação morfohidropedológica, a que se acrescenta características zoo-botânicas, que forma a paisagem físico-natural onde o grupo tsonga-changana habita.

A pobreza dos solos, a natureza do clima quente e seco e a falta de água em muitas áreas condicionaram a concentração da população em determinadas áreas privilegiadas pela disponibilidade da água dos rios, fertilidade dos solos e salubridade do ambiente. É neste contexto que os vales do Limpopo e Inkomati constituíam as áreas mais densamente povoadas nas planícies costeiras do Sul de Moçambique, com uma densidade estimada em 350 habitantes por quilómetro quadrado em 1880 (Harries, 1994: 8).

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Esta paisagem natural, ao albergar grupos humanos passa a obedecer a dinâmica social dos respectivos grupos, isto é, humaniza-se. Esta humanização ajusta-se aos valores que a sociedade que ocupa esse espaço interioriza na sua prática de relações com o território físico que ocupa. Durante o século XIX e princípios do século XX, a definição mais corrente era decorrente do determinismo geográfico da escola ratzeliana, onde a noção do espaço se limitava às características físico-geográficas, sem contar com as características e a dinâmica dos grupos que ocupavam esse espaço. Durante a primeira metade do século XX, desenvolveu-se, notavelmente, a escola regional de Vidal de La Blache, defendendo a necessidade de definir regiões como espaço de características físicas e socio-económicas mais ou menos homogéneas. Desta forma, a região passou a constituir uma noção de espaço em que as características sócio-económicas e culturais são já consideradas como elementos relevantes na definição do espaço. Seguindo essa perspectiva, Araújo (1998: 163), conclui que “a noção de espaço é dinâmica e é produto de uma serie de relações e inter-relações económicas, sociais, políticas e culturais que um determinado grupo humano estabelece num determinado território”.

Atendendo que o espaço ou paisagem é também um produto da actividade humana, a sua escolha é feita em função da actividade que o grupo exerce, da sua capacidade técnico- económico e de aspectos fundamentais da sua cultura. Ngungunhane escolheu Mandlakazi para a edificação da capital do seu reino porque reunia as condições adequadas para albergar a alta classe nguni e guerreira residente na capital e arredores. Uma casta que tinha desprezo pela agricultura, vivendo simplesmente da caça, criação de gado e razias orquestradas sobre a população submetida ou recalcitrante tal como eram os machopi. Portanto, a questão de desprezo pela agricultura e também a crença nguni de que a sua combatividade reduzia em meios aquáticos, pode ajudar explicar a razão da escolha de Mandlakazi, um local afastado dos principais cursos de água, com poucas potencialidades agrícolas, mas com uma cadeia de lagoas (Sule, Nhaurongolo, Coolela antigamente) e um riacho não navegável (Mangoenhane), mas com a capacidade de garantir o abeberamento do gado do curral real e água para o uso quotidiana dos habitantes da capital.

A relação que o homem estabelece com a paisagem ou espaço, bem como os significados que ele atribui aos diferentes elementos paisagísticos contribuem para moldar a sua identidade. O homem liga-se intimamente aos diferentes elementos paisagísticos por meio de práticas ou

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crenças que o tornam um elemento constitutivo dessa paisagem levando-o a se identificar com ela.

Antes das grandes transformações dos finais do século XIX e início do século XX, a classificação dos solos segundo a sua utilidade entre os tsongas permitia que os seus habitantes fossem associados às actividades potencialmente praticadas em cada espaço. Assim a identidade dos habitantes de cada espaço encontrava-se ligada às actividades aí praticadas. Os que habitavam nas planícies irrigadas pelos rios ou nas margens dos lagos, com solos aluvionares e férteis, o chamado nyaka, eram assim designados vale nyakeni (os dos aluviões), logo ficava claro de que se tratava de agricultores e pastores locais. Havia em contrapartida as terras arenosas, inférteis e baldios designados nhoba onde viviam os bahloti (caçadores locais) que até eram figuradamente designadas “terra dos macacos”. Portanto aqui a identidade era associada ao espaço e a actividade potencialmente praticada nesse espaço. A ligação entre a paisagem e a identidade tsonga assentava também na maneira como eles interpretavam, recriavam ou comportavam-se perante os diferentes elementos paisagísticos locais. Assim a crença de que nas árvores ou rochas grandes habitavam psikwembu (espíritos), constituía uma forma de humanização da sua paisagem. Na concepção da paisagem entre os tsongas integrava-se também os lugares de memória, tais como a floresta sagrada onde habitavam os espíritos dos antepassados da família politicamente dominante, ou simples “santuários” ao longo do caminho em que os viajantes eram obrigados a acrescentar uma pedra quando passavam para amainar os ânimos dos espíritos (Vilhena, 1996: 95).

Entre os Khambanes de Mandlakazi por exemplo, é obrigação de todos os membros da linhagem real dos Khambanes que herdam o poder, preservar num dos cantos do seu terreno uma mata sagrada para o repouso dos espíritos dos Khambanes, pois eles são os donos da terra20. Pode se ver ainda hoje, uma mata sagrada em redor do túmulo do Mwadjahane21 e dos

da sua família nuclear, preservada desde o tempo em que ele se instalou naquele local e atribuído algum poder sobre uma parcela territorial pelo seu irmão mais velho. Como prova de que a paisagem segue a dinâmica social do grupo que a habita, a mata Mwadjahane agora

20 Informação concedida por Palmira Tamele, guia do Museu Aberto de Mwadjahane no Distrito de Mandlakazi,

gentilmente concedida no âmbito das entrevistas para a realização deste trabalho, no dia 06 de Agosto de 2019, cp.

21 Mwadjahane Mussengane Mondlane é pai de Eduardo Chivambo Mondlane, cofundador e primeiro presidente

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deixou de ser sagrada para constituir um monumento histórico, porque a concepção da sociedade sobre os elementos físico geográfico que a compõem transformou-se.

Antes a concepção dos tsongas, era de que os espíritos habitavam lugares perigosos como as florestas, rios e áreas de terra sem água. Estes constituíam as sombras de pessoas mortas em batalhas ou por animais, ou que se tenham afogados ou suicidado, isto é, os espíritos daqueles que tinham morrido propositadamente. “Perto do lago Sule (Mandlakazi), um barrulhento ‘mostro marinho semelhante a um dragão’, o ntsanda-bahloti, atacava banhistas incautos” (Harries, 2007: 116). O autor refere que naquela área, por conta disso, os viajantes propiciavam aos espíritos e procuravam proteger-se com poções e talismãs.

Os factos apresentados mostram uma concepção tsonga de uma paisagem caótica, dominada pelo sobrenatural e bastante localista, interpretada na base de um sistema de conhecimentos locais que permitia que apenas os membros de uma comunidade restrita fizessem a sua exploração, dando-lhe história e significado. Havia especialistas, os nyanga (curandeiro) e os

ngoma (mágicos) que conheciam os poderes de determinadas plantas, animais e minerais.

Desta forma a identificação com elementos paisagísticos locais cujo significado não era descodificado pelos intrusos dividia os tsongas em pequenos círculos fechados.

Os problemas ambientais, a concentração da população em certas áreas restritas e a instabilidade da produção agrícola, provocaram uma grande insegurança política ao nível regional. O desequilíbrio ecológico fez com que certos grupos procurassem organizar o seu

stock alimentar roubando aos seus vizinhos, isto repetido muitas vezes, acabou tornando a

guerra uma tradição de resposta às adversidades entre os diferentes grupos da região, dando origem a ondas migratórias orientados da costa para o interior, e pela constituição de reinos socialmente heterogéneos. A partir de 1850, as migrações tomaram uma nova direcção, quando os primeiros trabalhadores migrantes orientaram-se para Sul (Harries, 1994: 8).

Mas a migração não foi a única resposta ao frágil equilíbrio ecológico. A flexibilidade na introdução de novas culturas também ajudou no melhoramento dos níveis de nutrição da população estabelecendo, dessa forma, algum equilíbrio. Até aos meados do século XIX, as variedades de sorgo, com destaque para o milhete, constituíam a principal dieta da população local. Por volata de 1770, introduziu-se a cultura de mandioca em Moçambique vindo do Brasil, e um século depois começou a ser cultivada ao longo de toda a costa Sul moçambicana. O milho americano entrou na área também provavelmente no mesmo período,

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mas, inicialmente produzia-se apenas em solos férteis e irrigados. A mandioca, batata doce, amendoim eram particularmente importantes para combater a fome por serem culturas que crescem mesmo nos solos arenosos, com pouca fertilidade e humidade.

Durante o século XIX o milho americano deixou de ser cultivado apenas nos vales, estendendo-se a sua cultura também para as terras afastadas dos locais de concentração de água, praticando-se nas estações chuvosas. De acordo com Harries (1994: 86), a adoção do milho americano e mandioca como culturas alimentares básicas, em substituição dos sorgos, culturas menos exigentes em termos de condições de água e fertilidade dos solos, libertou a força de trabalho masculina da economia doméstica, o que permitiu aos homens permanecer por longo período de trabalho na África do Sul, deixando seguramente as mulheres com as famílias, e isso aumentou a importância das mulheres na economia doméstica.

Outras culturas também cultivadas localmente como o arroz, cana doce, nos solos aluvionares dos vales dos rios, abóboras, melancias, nozes bambarra e ervilhas tornaram-se populares. A cultura do feijão era bastante importante por causa da sua resistência a seca e também porque a sua colheita tardia, em Maio, fazia com que fosse a última cultura a ser colhida (Harries, 1994: 8).

A introdução de novas culturas, algumas das quais adaptadas aos solos menos férteis e arenosos, resistentes a seca, associada a diversificação de culturas colhidas em épocas diferentes, garantiu o equilíbrio alimentar mesmo nas áreas ciclicamente assoladas pela seca e o estabelecimento das populações mesmo em solos arenosos com pouca fertilidade onde a preparação do solo consistia no corte e queimada das árvores, uma técnica típica de agricultura itinerante. Na estação seca moviam-se para locais com condições de água para a prática de agricultura.

Os meses de Novembro e Dezembro eram normalmente de fome e, era igualmente o período em que se gastava muita energia por cultivo da terra. Durante este período, caracterizado por seca e fome, as frutas é que constituíam o principal recurso alimentar, é neste período que se consome a mafura, fruta da mafurreira (Trichilia emética), nkuhlu em tsonga-changana, outras frutas como makwakwa colhidas do kwakwa (Strychnos innocua), massala (Strychnos

spinosa), localmente chamada nhlala, eram igualmente colhidas. É nesse período que se

colhia também a marula (Herpethyllum caffrum), localmente chamado nkanye para preparar bebida nutritiva bukanye. Muitas frutas silvestres eram colhidas para preparar bebidas que se

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servia como refeição. Durante este período seco consumia-se muito a cerveja de sorgos e milho devido a facilidade de conservação desses cereais para serem consumidos durante todo o ano.

O consumo de bebidas em conjunto constituía uma forma de expressar a identidade colectiva, uma forma de venerar os ancestrais, ligando as gerações passadas das presentes. O consumo de cerveja era um sinal de renovação, marcando a passagem das estações, veneração dos ancestrais, acompanhava os ritos de passagem, como nascimento, casamento, morte. A bebida era um elemento essencial para a diversão e também constituía um elemento central nos rituais da criação das fronteiras comunitárias.

Para além da agricultura e colheita de frutas silvestres, a caça desportiva, aquela destinada a prover alimentos à família dos caçadores localmente chamados bahloti, distintos dos caçadores profissionais localmente chamados amapisi, a pesca ao longo dos rios, lagoas e no mar, e a criação de animais, constituíam as principais actividades localmente praticadas. Mas o gado bovino apesar de constituir um importante sinal de riqueza e distinção social do seu proprietário entre os tsongas, a sua criação acabou sendo prejudicada, reduzida devido a propagação da mosca tsé-tsé que tornou endémica a trypansomiasis na região e pelo facto de constituir um dos principais elementos de saque nos raides ngunis de Gaza e swazis. Assim, a cabra resistente aos ataques da mosca tsé-tsé, mas também os porcos e galinhas evitados pelos raides dos grupos vizinhos acabaram constituindo os animais mais criados.

Para além da introdução de novas culturas, caça desportiva e criação de animais que constituem actividades que garantiam a subsistência das famílias, desenvolvia-se no espaço ocupado pelos tsongas uma intensa actividade de caça grossa, de onde se extraia o marfim, bastante abundante no vale do Limpopo e seus afluentes Changane e rio dos Elefantes, peles de leopardo, macacos, e de outros animais para fins comérciais. O comercio de marfim fez-se acompanhar pelo comércio de armas de fogo proveniente do Natal e Cabo, destinadas a caça, mas que eram também usadas nos conflitos locais. Quando o comércio do marfim entrou em crise na segunda metade do século XIX, começou a vigorar o comércio de oleaginosas, com destaque para o amendoim, mafura e pequenas quantidades do sésamo pelo porto de Inhambane. O comércio de oleaginosas foi impulsionado pelo estabelecimento de duas sucursais da firma Fabre et Fils, uma das maiores companhias comerciais da Marselha na época, uma em Inhambane estabelecida em 1867 e a outra em Lourenço Marques, estabelecida em 1869 (Zonta, 2011). Em Lourenço Marques, a firma explorou o padrão local

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de acumulação, trocando enxadas por oleaginosas (Harries, 1994: 85). Na região, a enxada mais do que um instrumento de trabalho, funcionava localmente como um meio de pagamento de lobolo (preço da noiva).

A agricultura, a caça, o comércio e o trabalho migratório, constituíram esquemas de adaptação dos tsongas ao seu meio ambiente para a sobrevivência e reprodução do seu sistema de vida criando uma identidade própria. As duas últimas actividades foram muito importantes na monetarização da região integrando a região no circuito económico mais alargado.

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CAPÍTULO III.NOVAS MIGRAÇÕES, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADE ÉTNICA TSONGA- CHANGANA