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Acabei me sentindo uma aprendiz de feira Elas, as minhas professoras Dominavam o espaço, conheciam tudo De vez em quando paravam com alguém para conversar Iam

No documento rosalindacarneirodeoliveiraritti (páginas 75-78)

buscando os bons preços somados à boa qualidade dos produtos.

Da mesma forma, elas foram ocupando outros lugares, mostrando-se a mim de outras formas, desconstruindo um lugar de carência, outrora tão aceito, e configurando um lugar de muita potência. Assim, íamos construindo, juntas, nossos lugares e, enquanto isso, nossas histórias iam se constituindo. A tese constitui a história das mulheres naquele bairro na periferia, mas constitui a minha própria história. A pesquisa deu a pensar que somos muitas de nós mesmas.

Que companhias, então, poderiam se acercar de mim enquanto caminhava na pesquisa? Desnecessário é dizer que Foucault é a minha grande inspiração, com seu pensamento instigador e potente a respeito do sujeito “como um artifício da linguagem, uma produção discursiva, um efeito das relações de poder-saber” (PARAÍSO, 2012, p.29). Aproximo-me também dos Estudos Culturais e dos Estudos de Gênero. Mesmo que cada uma dessas perspectivas tenha suas peculiaridades, seus efeitos combinados ajudam a compor “o que chamamos teorias, abordagens ou pesquisas pós-críticas” (MEYER;PARAÍSO, 2012, p.17)24. Sem ocuparem-se com a recomendação de um método, tais abordagens nos incitam a construir nossas próprias metodologias, que vão depender “dos questionamentos que fazemos, das interrogações que nos movem e dos problemas que formulamos” (PARAÍSO, 2012, p. 24).

Apoiada nos Estudos Culturais, assumo “a cultura como campo de luta em torno da significação social, [...] campo de produção de significados no qual os diferentes grupos sociais, situados em posições diferenciais de poder, lutam pela imposição de seus significados à sociedade mais ampla” (SILVA, 2007, p.133-134). Sendo assim, a cultura não é privilégio de uns poucos considerados cultos por terem acesso a um conhecimento erudito, científico, acadêmico ou artístico. Ela está presente na organização da vida de qualquer agrupamento humano, na criação e manutenção de costumes e regras sociais. Trata-se de um processo arbitrário, tendo em vista que grupos sociais diferentes atribuem diferentes

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As teorias, abordagens ou pesquisas pós-críticas “se inspiram em uma ou mais abordagens teóricas que conhecemos sob o rótulo de „pós‟ – pós-estruturalismo, pós-modernismo, pós-colonialismo, pós-gênero, pós- feminismo – e em outras abordagens que mesmo não usando em seus nomes o prefixo „pós‟, fizeram deslocamentos importantes em relação às teorias críticas – Multiculturalismo, Pensamento da Diferença, Estudos Culturais, Estudos de Gênero, Estudos Étnicos e Raciais e Estudos Queer, entre outros” (MEYER;PARAÍSO, 2012, p.16-17).

significados aos mesmos objetos (MEYER, 2012, p.52); a cultura manifesta-se por vários meios, meios nos quais a linguagem se faz central, como, por exemplo, livros, músicas, festas populares e pela mídia em geral. Tudo está em jogo e

O que está centralmente envolvido nesse jogo é a definição da identidade cultural e social dos diferentes grupos. A cultura é um campo onde se define não apenas a forma que o mundo deve ter, mas também a forma como as pessoas e os grupos devem ser. A cultura é um jogo de poder. [...] Numa definição sintética, poder-se-ia dizer que os Estudos Culturais estão preocupados com questões que se situam na conexão entre cultura, significação, identidade e poder. (SILVA, 2007, p.134)

O conceito de identidade é muito discutido no âmbito dos Estudos Culturais. Hall (2006) nos alerta sobre a complexidade desse termo e sustenta que “dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (HALL, 2006, p.13). Não existe, assim, um sujeito dono de uma identidade unificada desde o nascimento até a morte. É ainda a partir dos Estudos Culturais que podemos ampliar a noção de educação, pois eles defendem que há pedagogia em todo lugar e existem “modos de ensinar e aprender nos mais diferentes artefatos culturais, que se multiplicam em nossa sociedade” (PARAÍSO, 2012, p.24).

Muito intimamente ligados aos Estudos Culturais estão os Estudos de Gênero que concebem o gênero como construção social e constituinte das identidades dos sujeitos, possuindo representações que se transformam conforme o tempo e o lugar. Então, se consideramos os sujeitos com “identidades plurais, múltiplas; identidades que se transformam, que não são fixas ou permanentes, que podem, até mesmo, ser contraditórias, [...] a ideia é perceber o gênero fazendo parte do sujeito, constituindo-o” (LOURO, 2011, p.28-29). Se o gênero constitui o sujeito, no meu entender, é nesse sentido que, buscando uma compreensão das relações de gênero, consegue-se lançar um olhar sobre o processo de subjetivação das mulheres naquela periferia, entendendo ainda que “as concepções de gênero diferem não apenas entre as sociedades ou momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerar os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem” (LOURO, 2011, p.27).

O gênero funciona como organizador do social e da cultura (o que inclui políticas e programas sociais) e, assim, engloba todos os processos pelos quais a cultura constrói e distingue corpos e sujeitos femininos e masculinos. Entre outras coisas, isso se operacionaliza pela articulação de gênero com outras marcas sociais, como, por exemplo, classe, sexualidade, e raça/etnia. (MEYER, 2012, p.51)

Tanto os Estudos Culturais quanto os Estudos de Gênero são tomados no seu viés pós-estruturalista, pois sabemos que são campos com tendências epistemológicas heterogêneas (SILVA, 2007; LOURO, 2011). Por esse viés, encharcado das teorizações foucaultianas, ambos os Estudos nos ajudam a dar conta de que desigualdades sociais não se produzem apenas na dimensão das diferenças de classe social, como enfatizam as teorias críticas. Nesse sentido, esses estudos me conduzem a atenção para os entornos das mulheres, suas diversas relações; me provocam a escapar da construção da verdade verdadeira, das grandes revoluções, das totalizações, da objetividade do real e partir para as pequenas e subjetivas verdades, buscando a desnaturalização daquilo que nada tem de natural, visto que foi inventado culturalmente, e analisando os processos pelos quais se deu a naturalização.

Com esse apoio téorico-metodológico ouvi vozes anônimas que vivem às margens das margens. Vivem às margens, pois são vozes femininas num contexto onde o machismo se faz muito presente, onde o homem ainda fala muito alto e se coloca no centro, contando com a submissão feminina, mesmo diante de resistências que já aconteçam: “[...]

mas você pode ver, você, com certeza você conhece um caso por aqui mesmo em que o marido bate, a mulher é submissa, o marido anda com outra mulher e traz pra dentro de casa, e continua submissa!”. Às margens das margens porque são mulheres negras e pobres,

que moram em um bairro na periferia e que sabem que “os outros estigmatizam muito o

morro. Acha que a mulher do morro, ela parou naquilo... cê não consegue nada!”. Essa é a

voz de Ana, uma das mulheres que me fizeram companhia nesta minha travessia e que acredita que “tendo um estudo desse, vai mostrar que a gente trabalha, que tudo que a gente

tem é com muita luta.”. É da voz de Ana que ainda podemos ouvir que

“todo mundo fala muito de política, mas não vive o que a gente vive de verdade. Muito fácil passar na televisão „ah, hoje melhorou de um aspecto e piorou de outro‟. Não é assim. Pra mim não é assim. Se você para pra conversar meia hora aqui embaixo você vai ver que a realidade é totalmente diferente do que você escuta. E essa é a verdade. Então eu acho assim, que se você sobe e conversa com a pessoa que vive, você aprende mais que se você ler livro. Eu, assim, eu penso assim!”. (Ana)

É a voz querendo ser ouvida e dizendo: Eu quero falar por mim! Essas vozes, que poucas pessoas se dispõem a ouvir, são as vozes das protagonistas da minha pesquisa. Subjetividades particulares que com suas vidas, suas vozes e “memórias individuais chegam a compor uma „memória emblemática‟, coletiva, que permite o reconhecimento e a identificação de muitas outras mulheres” (RAGO, 2013, p. 59) que lhes fazem coro. Ao mesmo tempo em que queriam falar me deixavam o convite para falar com elas.

Essas mulheres, minhas companheiras, junto aos autores e autoras dos/as quais me aproximo, ao meu orientador, aos professores e professoras e aos amigos e amigas, todos/as juntos/as provocadores/as do meu pensar, estiveram comigo nesta caminhada e assinam comigo esta tese.

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