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As relações consigo na constituição das subjetividades

No documento rosalindacarneirodeoliveiraritti (páginas 97-102)

Não nos ocupamos conosco para viver melhor, para viver mais racionalmente, para governar os outros como convém; [...] Deve-se viver de modo que se tenha consigo a melhor relação possível.

(FOUCAULT, 2011, p.403)

Durante algum tempo, enquanto concentrava seus esforços no estudo dos séculos XVIII e XIX, Foucault pensava o sujeito como mero produto dos saberes construídos e dos poderes exercidos sobre ele, mas a partir dos anos 1980, estudando a Antiguidade grega e romana, Foucault nos traz um sujeito não só constituído, mas também constituindo-se a partir de algumas técnicas regradas (GROS, 2011, p.462). “O estudo do Ocidente moderno lhe ocultara por muito tempo a existência dessas técnicas, obscurecidas que estavam no interior do arquivo pelos sistemas de saber e os dispositivos de poder” (GROS, 2011, p.462-463). Foucault se abre, então, para uma noção de sujeito constituído pelo entrelaçamento de discursos e relações de poder, mas também das relações que estabelece consigo mesmo na sua autoconstituição, o que vai chamar de “ética”. Isso não implica em momentos estanques, numa sequência causal ou hierárquica, mas forma uma composição em que tudo concorre, simultaneamente, para a constituição subjetiva. Assim, “o sujeito é produto, ao mesmo tempo, dos saberes, dos poderes e da ética” (VEIGA NETO, 2007, p.82).

Essa viagem aos textos gregos e romanos, Foucault a faz para entender o presente, a partir de uma questão presente, que, no seu caso específico era a sexualidade. Dessa forma, Foucault não se propõe a fazer uma história da filosofia, mas uma genealogia (GROS, 2011, p.470); sua proposta é entender “de que maneira, por que e sob que forma a atividade sexual foi constituída como campo moral? Por que esse cuidado ético tão insistente, apesar de variável em suas formas e em sua intensidade? Por que essa „problematização‟?” (FOUCAULT, 2007, p.14). Entendendo que um sistema de interdições não seja suficiente para promover esse cuidado ético com as condutas sexuais, Foucault buscou naquelas sociedades – grega e greco-romana – formadas por homens30 livres, as formas como o indivíduo se constituía como sujeito moral de suas ações. Ora, aqueles homens não se inseriam em um sistema moral universal e nem se vinculavam a nenhuma religião como fonte de preceitos a serem rigorosamente seguidos, mas, mesmo assim, eram portadores de grande austeridade no seu comportamento sexual.

Por mais opressiva que seja a cidade, por mais importante que seja a ideia de

nómos, por mais amplamente difundida que seja a religião no pensamento

grego, nunca será a estrutura política, ou a forma da lei, ou o imperativo religioso que poderão, para um grego ou para um romano, mas sobretudo para um grego, dizer o que se deve concretamente fazer ao longo de sua vida. E, principalmente, não poderão dizer o que fazer da própria vida. (FOUCAULT, 2011, p.402)

Mas, então, como se dava esse cuidado, essa austeridade? Foucault suspeitava que, se isso não se dava a partir de obrigações ou interdições, se daria, então, pela problematização do que se é e do mundo em que se vive (FOUCAULT, 2007, p.14).

[...] ao colocar essa questão muito geral, e ao colocá-la à cultura grega e greco-latina, pareceu-me que essa problematização estava relacionada a um conjunto de práticas que, certamente, tiveram uma importância considerável em nossas sociedades: é o que se poderia chamar „artes da existência‟. Deve- se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo (FOUCAULT, 2007, p.14-15)

Na leitura das obras de Foucault (2005, 2007, 2011) percebemos que mesmo não existindo uma moral rígida, universal e imposta, não havia ausência de regras que o

30 Aqui, entende-se “homem” como o indivíduo do sexo masculino. Mulheres, assim como crianças e escravos, não eram consideradas livres naquelas sociedades.

indivíduo seguisse. A diferença era que essas regras eram mais da ordem da proposição do que da imposição. Eram aceitas pelo indivíduo que a elas se sujeitava porque este tinha alguns objetivos livremente escolhidos para sua existência, objetivos que só poderiam ser atingidos pela transformação de si mesmo, através dessas “artes da existência”, que comumente se denomina também, na linguagem foucaultiana de “práticas de si”, “técnicas de si”, “tecnologias do eu”, entre outras variações semelhantes. São elas que

permitem aos indivíduos efetuar, por conta própria ou com a ajuda de outros, certo número de operações sobre seu corpo e sua alma, pensamentos, conduta, ou qualquer forma de ser, obtendo assim uma transformação de si mesmos com o fim de alcançar certo estado de felicidade, pureza, sabedoria ou imortalidade. (FOUCAULT, 1990, p. 48 – tradução minha)

Foucault (2007, 2011) entende que, na Grécia Clássica, os fins para a aplicação das práticas de si voltavam-se para as questões políticas e estéticas. O indivíduo deveria aprender a governar a si mesmo para governar os outros. A problematização em torno de suas atividades sexuais seguia os critérios de uma “estética da existência”, buscava uma vida bela. Essa beleza estava no domínio de seus desejos e, para isso, tinha que se esforçar, através de práticas de transformação de si e de cuidados consigo mesmo, na conquista da temperança, virtude de saber vivenciar esses desejos com moderação. Assim, não se escravizava a eles. Era livre, forte, belo. Conquistava glória, poder e honra. Tinha sua vida admirada.

As práticas de si se faziam na preservação da saúde de seu corpo (na dietética), no cultivo de um relacionamento conjugal em que buscava manter a hierarquia e o controle na organização da própria casa (na econômica) e na atenção à liberdade do outro na relação amorosa firmada com os rapazes, futuros homens livres e que, portanto, não poderiam ser aviltados em sua virilidade (na erótica). Essas eram questões apreciadas pela sociedade para definir o status de cada um. Tudo isso, no entanto, não era imposto como regras que deveriam ser seguidas por todos, mas como critérios que deveriam ser assumidos a partir de atos voluntários. Cabia a cada um decidir que tipo de homem queria ser, embora a escolha feita tivesse como consequência o reconhecimento ou não da sociedade. (RITTI, 2010, p. 42- 43)

Nos textos greco-romanos, Foucault (2005, 2011) observou algumas diferenças no exercício das práticas de si. Embora ainda buscando uma estética da existência, o homem dos séculos I e II da era cristã não buscava o domínio de si e dos outros, não visava a prestígio social ou político. Suas práticas se dirigiam a si com fim em si mesmo. Almejava a plenitude da própria vida, a transformação do seu eu em busca de aperfeiçoamento. Para isso, buscava

nos mestres, amigos e diretores, conselhos do que deveria fazer consigo mesmo. Lia cartas, escrevia diários, memorizava regras, fazia exame de consciência, se preparando para qualquer acontecimento que a vida pudesse lhe proporcionar. A vida, em toda sua duração, é vivida como prova. Ao homem, cabia um constante cuidado de si, mantendo a saúde do corpo e da alma, evitando qualquer excesso que pudesse lhe perturbar ou fazê-lo sucumbir àquilo que tinha que provar.

Vemos que, enquanto na época clássica o problema estava em definir uma arte de viver que tinha em seu interior um ocupar-se consigo mesmo, na

época helenística e seguramente a época do Alto Império [...] assistimos a uma espécie de inversão, de reversão entre técnica de vida e cuidado de si. [...] Doravante, parece-me que não somente o cuidado de si atravessa, comanda, sustenta de ponta a ponta toda a arte de viver – para saber existir não basta cuidar de si –, mas é a tékhne toû biou (a técnica de vida) que se inscreve por inteiro no quadro doravante autonomizado em relação ao cuidado de si. (FOUCAULT, 2011, p.402-403)

Nesse sentido, a arte de viver é toda articulada em relação ao cuidado de si mesmo. É a própria vida, o próprio eu que deve ser almejado no interior da arte de viver. Nada importava mais, no âmbito do cuidado de si, do que a melhor relação possível consigo mesmo. E a vida vivida como prova tinha como sentido e objetivo

precisamente formar o eu. Devemos viver a vida de maneira tal que a cada instante cuidemos de nós mesmos e que o que encontrarmos ao termo, por certo enigmático, da vida – velhice, instante da morte, imortalidade [...], enfim, o que deve ser obtido por meio de toda tékhne que se aplica à própria vida, é precisamente uma certa relação de si para consigo, relação ao que é o coroamento, a completude e a recompensa de uma vida vivida como prova. (FOUCAULT, 2011, p.403)

Foucault, nesse caminho, pensa ontologicamente a relação consigo no mundo helenístico e vê nela um acontecimento significativo para a história da subjetividade ocidental.

Como projeto fundamental da existência, vive-se com o suporte ontológico que deve justificar, fundar e comandar todas as técnicas da existência: a relação consigo. Entre o Deus racional que, na ordem do mundo, dispôs em torno de mim todos os elementos, toda a longa cadeia de perigos e infortúnios, e eu mesmo, que decifrarei esses infortúnios como provas e exercícios de aperfeiçoamento, entre esse Deus e eu, só se trata doravante de mim mesmo. Parece que este é um acontecimento relativamente importante, penso eu, na história da subjetividade ocidental. (FOUCAULT, 2011,p.403)

A palavra “acontecimento” tem um sentido importante no pensamento foucaultiano. Como acontecimento, Foucault entende uma novidade ou uma diferença que irrompe na história (acontecimento no sentido arqueológico) e que pode instaurar novas formas de regularidade histórica (novos acontecimentos no sentido discursivo) (CASTRO, 2009, p.24). A inversão entre arte de existência e cuidado de si ocorrida no período greco- romano foi a novidade assumida como regularidade nesse período, mas colocada “entre parênteses por aqueles dois grandes modelos, o anterior [platonismo] e o posterior [cristianismo] que em seguida o dominaram e recobriram” (FOUCAULT, 2011, p.230). Na concepção de Foucault (2011, p.230-231), esses três foram os modelos de práticas de si que se sucederam na história do ocidente.

É grande o esforço de Foucault no estudo desses três modelos, algo no qual não me cabe alongar muito neste momento. Mas penso ser interessante trazer, muito resumidamente, aquilo que ele nos apresentou. No platonismo existe uma relação entre cuidado de si e conhecimento de si estabelecida, em primeiro lugar, pela ignorância e pelo desconhecimento da própria ignorância: “a ignorância e a descoberta da ignorância da ignorância é que suscitam o imperativo do cuidado de si” (FOUCAULT, 2011, p.227). Em segundo lugar, o cuidado de si vai implicar no conhecimento de si mesmo, conhecimento como “apreensão pela alma de seu ser próprio, apreensão que ela opera ao olhar-se no espelho do inteligível, onde, precisamente deve reconhecer-se” (FOUCAULT, 2011, p.228). Em terceiro lugar está a reminiscência, “no ponto de junção entre cuidado de si e conhecimento de si”. (FOUCAULT, 2011, p.228). Na lembrança do que viu, a alma se conhece e a partir daí tem acesso ao que viu, à verdade. “Podemos dizer que na reminiscência platônica acham-se reunidos e aglutinados, em um único movimento da alma, conhecimento de si e conhecimento da verdade, cuidado de si e retorno ao ser” (FOUCAULT, 2011, p.228). Ou seja, há um eu verdadeiro, o qual não conhecemos, ignoramos que não conhecemos, mas ao descobrir tal ignorância – o que se dá através de um encontro ou provocação, por exemplo –, podemos, enfim, conhecê-lo.

No movimento filosófico empreendido principalmente pelos epicuristas, estoicos e cínicos, no período helenístico e romano, o cuidado de si está nessas práticas de transformação do ser sem, no entanto, a preocupação com a verdade do ser, mas com seu aperfeiçoamento.

Já o modelo cristão ou “ascético monástico” que se forma a partir dos séculos III e IV se dá numa circularidade entre conhecimento de si, conhecimento da verdade – dada no Texto e pela Revelação – e cuidado de si.

Se quisermos promover nossa própria salvação, devemos acolher a verdade: a que nos é dada no Texto e a que se manifesta na Revelação. Mas não podemos conhecer esta verdade se não nos ocuparmos com nós mesmos na forma do conhecimento purificador do coração. Em troca, esse conhecimento purificador de si por si mesmo só é possível sob a condição de que já tenhamos uma relação fundamental com a verdade, a do Texto e a da Revelação. (FOUCAULT, 2011, p.228)

No cristianismo, para conhecer a si mesmo, é preciso fazer uma exegese de si; o indivíduo precisa decifrar aquilo que guarda em sua alma, seus movimentos interiores, dissipando ilusões, reconhecendo as tentações e frustrando as seduções que dela se acercam. Por fim, no cristianismo, o conhecimento de si objetiva a renúncia de si.

Foucault (2011, p.230) entende que esses dois modelos – reminiscência e exegese – dominaram ao mesmo tempo o cristianismo e por ele foram transmitidos a toda a cultura ocidental, abafando o modelo helenístico que no lugar de encontrar a verdade de si ou de buscar uma exegese da alma para renúncia de si, tinha como objetivo a constituição do eu. Foucault, porém, considera que no cristianismo encontra-se uma herança do modelo helenístico. “A moral austera do modelo helenístico foi retomada e trabalhada pelas técnicas de si definidas pela exegese e pela renúncia a si próprias do modelo cristão” (FOUCAULT, 2011, p.231). O cristianismo fez daquilo tudo outra coisa e, assim, temos que “da antiguidade ao cristianismo, passa-se de uma moral que era essencialmente a busca de uma ética pessoal para uma moral como obediência a um sistema de regras” (FOUCAULT, 2012c, p.283). Considerando, porém, que uma moral como obediência a um código de regras desapareceu em nossa sociedade, Foucault (2012c, p.283) pensa que nosso recurso “deve corresponder uma busca que é aquela de uma estética da existência”.

Mas, como pode ser possível isso nos dias de hoje? Como buscar uma estética da existência, uma vida bela, uma moral que privilegia a ética, a escolha livre? Como se dão as relações consigo em se tratando das mulheres naquela periferia? Como escolhem as regras do seu viver? Escolhem regras para si próprias ou simplesmente seguem o que lhes é imposto?

Com essas questões em mente, entro em diálogo com o campo, buscando identificar discursos e práticas que se fazem presentes nos processos de subjetivação das mulheres com quem pesquiso.

No documento rosalindacarneirodeoliveiraritti (páginas 97-102)