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Construções múltiplas na História

No documento rosalindacarneirodeoliveiraritti (páginas 142-145)

Um olhar sobre a História pode nos mostrar que a maternidade, no decorrer dos séculos, foi vivida de diferentes formas, dependendo da época e do lugar. “Nas sociedades primitivas encontra-se o caráter sagrado da geração de um filho” inspirado na figura da Deusa-Mãe (GUARISO, 2013, p.36).

Motivo da primeira adoração, porque ligada ao mistério da vida que era do domínio do sagrado, a poderosa Grande Mãe, representada em ícones de pedra, marfim dos mamutes ou moldada em terracota, foi motivo de adoração desde as montanhas aos altares domésticos. (FIDALGO, 2003, p.86)

A vida das mulheres primitivas se dava em igualdade com os homens, mas chega o momento em que o poder masculino começa a definir os seus papéis iniciando “o tempo da subordinação; o tempo da exclusão e da procriação como destino. A ascenção do patriarcado induziu a queda do estatuto da mãe primitiva” (FIDALGO, 2003, p. 87).

Durante toda a Antiguidade, quase não apresentando alterações, a condição da mulher era de insignificância e total submissão ao pai e, posteriormente, ao marido. Este, por sua vez, era detentor de um “direito absoluto de julgar e punir” (BADINTER, 1985, p.29) tanto os/as filhos/as, quanto ela própria, esposa e mãe, numa igualdade de tratamento e consideração que a colocava quase que no mesmo grau hierárquico em que se encontravam as crianças. Essa condição de inferioridade limitava em muito o exercício da maternidade, muitas vezes reduzido ao cumprimento de ordens do marido.

Foi preciso esperar a palavra de Cristo para que as coisas se modificassem, pelo menos em teoria. Guiado por esse princípio revolucionário que é o amor, Jesus proclamou que a autoridade paterna não se estabelecera no interesse do pai, mas no do filho, e que a esposa-mãe não era sua escrava, mas sua companheira. [...] A mensagem de Cristo era clara: marido e mulher eram iguais e partilhavam dos mesmos direitos e deveres em relação ao filho. (BADINTER, 1985, p.30)

Isso fez com que na alta Idade Média houvesse uma atenuação com relação aos direitos paternos e, com isso, uma maior atuação das mães junto às/aos filhas/os. Mas essa autoridade novamente ganha força a partir do século XVI até o XVIII “graças não só ao

direito romano, como também o absolutismo político” (BADINTER, 1985, p.31). O pai é, então, o centro e o senhor das relações familiares, sua vontade é soberana, por mais dor e sofrimento que possa provocar. Os casamentos por conveniência, principalmente nas classes mais abastadas, produziam uma convivência em que o amor se ausentava, não era desejado ou tido como valor, só acontecendo, acidentalmente, em alguns casos. Essa ausência era estendida para as relações com os demais membros da família. “O interesse e a sacrossanta autoridade do pai e do marido relegam a segundo plano o sentimento que hoje apreciamos. Em lugar da ternura, é o medo que domina no âmago de todas as relações familiares” (BADINTER, 1985, p.51). O castigo físico era impetrado tanto para as desobediências filiais quanto para as esposas que desagradassem seus cônjuges. Por tudo isso, a maternidade era muito limitada e submissa, além de ser constantemente responsabilizada e culpabilizada pelos deslizes que os/as filhos/as viessem a cometer. Às mães era impedido dispensar às crianças um tratamento mais terno e tolerante. Não podiam demonstrar prazer ao amamentar e nem usar de carícias na educação, pois, segundo os pedagogos/teólogos da época, tudo isso agravava, na criança, seu “vício natural” fazendo com que a mesma se perdesse. Assim, as crianças deveriam ser educadas severamente. Essas imposições postas na condução das crianças eram fundamentadas, principalmente, em postulados trazidos por Santo Agostinho57 que orientaram famílias e escolas até o final do século XVII. Em seu pensamento, a criança era “o símbolo da força do mal, um ser imperfeito esmagado pelo peso do pecado original [...], o mais forte testemunho de uma condenação lançada contra a totalidade dos homens, pois ela evidencia como a natureza humana corrompida se precipita para o mal” (BADINTER, 1985, p.55). Reforçando uma imagem negativa da criança, as concepções cartesianas trazem a infância como “fraqueza do espírito” lugar do erro, do não uso da razão, da supremacia das impressões suscitadas pelo corpo (BADINTER, 1985).

Tudo isso, somado a uma ideia de que a criança atrapalhava, roubando as esposas dos maridos, pesando na economia doméstica e acarretando diversos afazeres que exigiam sacrifícios por parte dos pais e mães, fez com que os cuidados com ela não fossem encarados como uma atividade nobre, mas como um fardo.

Existia e ainda existe uma gama de soluções para esse problema, que vai do abandono físico ao abandono moral da criança. Do infanticídio à indiferença.

57 Aurélio Agostinho viveu entre 354 e 430. Conhecido como Bispo de Hipona (na África), foi um dos Padres ou Pais da Igreja no período filosófico cristão dos primeiros sete séculos, conhecido como Patrística.

Entre os dois extremos, possibilidades diversas e bastardas, cujos critérios de adoção são especialmente econômicos. (BADINTER, 1985, p.64)

Uma das formas mais corriqueiras de se livrar das crianças, apontadas por Badinter (1985), era a contratação de amas-de-leite. As mães se recusavam a amamentar dando, para isso, algumas explicações que passavam pela estética e pela moral, como por exemplo, a falta de pudor ao tirar o seio para fora ou o nojo do marido que o fazia procurar outras mulheres para satisfazer seus desejos sexuais. Além disso, essa função era uma forma de afastar as mães do convívio social, o que elas não estavam dispostas a fazer. Na França, contexto trabalhado pela autora, a primeira agência de contratação de amas data do século XIII. Essa prática, inicialmente acessível apenas às famílias aristocráticas, foi se difundindo e atingindo a todas as classes. Em alguns casos, as mulheres mais ricas recebiam a ama em casa, esquivando-se assim do cuidado do filho que, não obstante, permanecia em seu lar. Na grande parte das vezes, porém, amas desconhecidas ou apenas recomendadas recebiam recém- nascidos/as, às vezes, com horas de vida, levavam para suas casas que poderiam se situar em lugares mais próximos ou mais distantes, para lá, dispensar-lhes cuidados que variavam em sua qualidade. Era comum que as famílias não tornassem a ver as crianças por muitos anos e também que, ao receberem os/as filhos/as de volta, estes/as retornassem doentes, debilitados/as ou desnutridos/as, tamanha a precariedade dos cuidados que recebiam nas casas das amas. Não raro, as crianças se perdiam, eram trocadas ou morriam, gerando um alto índice de mortalidade infantil. Para amamentar o/a filho/a alheio/a, as amas costumavam entregar seus/suas próprios/as filhos/as aos cuidados de outras amas que cobravam mais barato. Quanto menos se pagava a uma ama, maior era a possibilidade de negligência e desconhecimentos com relação ao tratamento recebido pela criança. As mães que entregavam seus/suas filhos/as continuavam sua vida rotineira, de acordo com suas condições sociais. Algumas entregavam-se às festas e aos protocolos que a vida aristocrática exigia, outras se entregavam ao trabalho para a manutenção da própria vida, outras, ainda, se dedicavam aos maridos. Famílias muito pobres, na impossibilidade do pagamento a uma ama, optavam por manter as crianças em casa ou as abandonavam em orfanatos. O retorno das crianças aos lares, normalmente aos quatro ou cinco anos, era marcado por outro tipo de afastamento, pois não retornavam para os braços maternos ou paternos. Crianças de famílias ricas ficavam, até os sete anos, com governantas. Após essa idade, os meninos eram entregues aos preceptores ou encaminhados aos internatos, quando estes passaram a existir, com a justificativa de que precisavam estudar. As meninas eram encaminhadas aos conventos onde ficavam à espera de casamento. A morte de um/a filho/a não acarretava muito sofrimento sendo, muitas vezes,

tratada com indiferença, principalmente no caso das meninas, tidas como um estorvo maior que os meninos. Todas essas situações induzem a pensar que a criança não era a preocupação primeira da família e mantinha com esta um contato muito raro e superficial. Outros interesses como a vida social, a própria sobrevivência, a extrema valorização do homem que exigia a prioridade da esposa, a necessidade de trabalhar, relegavam a criança a um segundo plano.

De qualquer forma, a maternidade estava ligada a leis biológicas, à necessidade de manutenção da espécie humana. No entanto, muito mais que querer cuidar das crianças, eram outros interesses que propiciavam às mães maior prazer sendo estes o objeto de suas escolhas. Então, exercer a maternidade, não estava nos planos femininos.

No documento rosalindacarneirodeoliveiraritti (páginas 142-145)