• Nenhum resultado encontrado

Do instinto ao amor materno

No documento rosalindacarneirodeoliveiraritti (páginas 145-148)

Sem mãe não há filho. Entre eles os deveres são recíprocos e, se forem mal cumpridos por um lado, serão negligenciados por outro. O filho deve amar a mãe antes de saber que esse é o seu dever. Se a voz do instinto não for fortalecida pelo hábito, ela logo desaparece, e o coração nasce morto. Desde o início, teremos nos desviado do caminho da natureza.

(ROUSSEAU, 2004, p. 12 – tradução minha)

Somente na segunda metade do século XVIII, mais especificamente após a publicação de Émile, por Jean-Jacques Rousseau58, é dado o impulso que institui a família moderna, fundada no amor materno (BADINTER, 1985, p.54). “O filósofo acredita que o núcleo familiar em que o pai é o provedor e a mãe responsável pelos cuidados dos filhos é o modelo no qual a criança se desenvolverá dentro de um contexto de amor” (GUARISO, 2013, p.40). Assim, conclama a mãe aos cuidados com o bebê, a começar por não lhe negar o seu leite, negação à qual dispensa muitas críticas. O convívio familiar seria o caminho para a melhor formação da criança prevenindo-lhe os maus costumes. Em Émilie, Rousseau constrói argumentos que buscam um movimento de “retorno à natureza” e propõe mudanças ao comportamento das mulheres com relação à maternidade. Suas ideias serão muito bem aceitas pelas francesas. Como efeito desse pensamento rousseauniano e sua aceitação por parte das mulheres,

58 Jean Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo iluminista com grande influência sobre a Revolução Francesa (1789), publica Émile em 1762.

sentimentos de satisfação e „poder‟ foram atribuídos ao „instinto materno‟ que orientaria a mulher naturalmente em sua busca pela felicidade, a qual incluía alimentar, cuidar e educar seu filho. Desse modo, uma relação maior com a criança se faz presente. Maior contato íntimo e maior carinho para com a criança vão conferir à mulher não mais uma opção pela maternidade, mas uma condição maternal antes inexistente. Esse status vai afetar intimamente o modo como a mãe se identificará a partir de então: o amor

materno passa a ser considerado legítimo e pertencente à natureza feminina. (GUARISO, 2013, p.41 – destaque meu)

Mas, o que vem a ser esse amor materno? A própria epígrafe de Rousseau nos faz suspeitar de sua natureza já que “se a voz do instinto não for fortalecida pelo hábito, ela logo desaparece, e o coração nasce morto”. Elisabeth Badinter (1985) pensa o amor materno como uma construção, um sentimento como outro qualquer do ser humano. Nesse sentido, pode ou não acontecer, é contingente, possui suas fragilidades. Para a autora, “o amor materno existe desde a origem dos tempos, mas não [...] necessariamente em todas as mulheres” (BADINTER, 1985, p.17) e nem da mesma forma entre as que o sentem. Diz ainda que os conceitos de instinto e de natureza, ao se considerar o ser humano, perderam o prestígio entre alguns estudiosos que se ocupam do estudo dos comportamentos. Isso leva à queda da noção de instinto materno. Porém,

mesmo reconhecendo que as atitudes maternas não pertencem ao domínio do instinto, continua-se a pensar que o amor da mãe pelo filho é tão forte e quase geral que provavelmente deve alguma coisinha à natureza. Mudou-se o vocabulário, mas conservaram-se as ilusões. (BADINTER, 2006, p.21)

Por tudo isso, embora ainda se encontre uma forte tendência nesse sentido, atribuir o amor materno à natureza feminina é uma produção histórica, uma invenção da modernidade. Nesse aspecto, o amor materno pode ser entendido como um mito.

Plagiando Fernando Pessoa, o mito é um nada, mas é tudo, aquilo que por não ser vai existindo, dando explicações, convencendo... vai vindo, entrando na realidade, dando sentido, criando... nos criando, criando mundo. Um mito bem inventado ajuda a compor as verdades sobre nós, verdades, muitas vezes, assumidas como naturais. É preciso ficarmos atentas/os

O mito é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mito brilhante e mudo - O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo. Este, que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos criou.

Assim a lenda se escorre A entrar na realidade, E a fecundá-la decorre. Em baixo, a vida, metade De nada, morre.

Fernando Pessoa http://www.tabacaria.com.pt/ mensagem/Brazao/ulisses.htm

aos mitos, pois estes carregam crenças e valores que se pretendem (e quem pretende???) consolidar em uma sociedade. Daí, esses valores se tornam “por vezes tão imperiosos que têm um peso incalculável sobre os nossos desejos” (BADINTER, 1985, p.16). Se valorizado pela sociedade, o amor materno passa a entrar na lista dos desejos femininos. E a não realização desse desejo – por não conseguir ou não querer ser mãe, por não conseguir amar o/a filho/a ou dar-lhe uma direção satisfatória na vida – pode ser o mote de muitas frustrações. Assumindo o mito, assumimos junto as responsabilidades por ele incitadas. Mito e responsabilidades que nos constituem como mulheres e mães e que partiram das concepções masculinas que buscavam controlar nossos corpos e nossos comportamentos. “É tema recorrente verificarmos que as prescrições sobre cuidados maternos começaram a ser definidas por homens” (FIDALGO, 2003, p.103).

Convidando Foucault para pensar conosco sobre essas questões, veremos sua preocupação com os séculos em que estamos situando a criação desse mito (final do XVIII e o decorrer do XIX). Ocupava-se em estudar as relações de poder e a formação de saberes que giravam em torno principalmente das ciências humanas e biológicas, que incluíam os saberes médicos. Nesses âmbitos percebia as normatizações produzidas.

O poder, para Foucault, na sua forma moderna, se exerce cada vez mais em um domínio que não é o da lei, e sim o da norma e, por outro lado, não simplesmente reprime uma individualidade ou uma natureza já dada, mas, positivamente, a constitui, a forma (CASTRO, 2009, p.309)

Na lei estão as permissões, as proibições e as penas. Na norma estão a definição das condutas, as medidas, as comparações, a definição de fronteiras e, por isso mesmo, na norma se dá o normal e aquilo que pode marcar a sua diferença, o anormal (CASTRO, 2009, p. 310). Podemos considerar, então, que o mito está inscrito no campo da norma, assim, normatiza as nossas condutas, criando, dessa forma, o normal e o anormal. A mãe normal preocupa-se com a criança, cuida dela, é atenta aos seus estudos e ao seu bem estar físico e emocional, ocupa-se com a construção de sua moralidade, protege. Agindo assim, diz o mito, é bem provável que entregue à sociedade um adulto sadio, um “bom” cidadão. Nas falhas, nos deslizes, nos impedimentos, ou seja, em qualquer situação que contradiga o seu conteúdo o próprio mito possibilita que se localizem as diferenças e que se façam as cobranças, os julgamentos, que se definam as anormalidades e as patologias. Pensando por esse viés,

ao mesmo tempo em que se [exaltam] a grandeza e a nobreza dessas tarefas [maternas], [condenam-se] todas [as mães] que não [sabem] ou não [podem] realizá-las à perfeição. Da responsabilidade à culpa, foi apenas um passo, rapidamente dado ao aparecimento da menor dificuldade infantil. É à mãe, doravante, que se adquire o hábito de se pedir contas... (BADINTER, 2006, p.238)

Os verbos colocados entre colchetes nessa citação se encontram, no texto de Badinter, no tempo passado. Ousei trazê-los para o presente por pensar que essa ideia ainda é bastante pertinente para nossa época, já que é muito comum entre nós, mulheres mães, a pergunta: “Onde foi que eu errei?”. Esta é uma pergunta constantemente feita por Januária, que procura erros nela para justificar aquilo que entende ser descaminhos dos filhos e filhas. Seus “erros” são a traição do mito. Também por trair o mito não dedicando tanto tempo aos cuidados com a filha, veremos Vânia dizer: “não me sinto mãe”. Traindo o mito, a norma da “boa mãe”, somos, então, todas, anormais e, assim, por muitas vezes, culpadas. Conduzindo- nos a contento, caminhamos para a felicidade. Esta é a ideia do mito.

Mas será que podemos considerar o mito do amor materno como algo acabado? Ou será que ele ainda vem se construindo? Que exigências mais esse mito pode nos trazer?

No documento rosalindacarneirodeoliveiraritti (páginas 145-148)