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lavei muita roupa Ainda tem um monte de roupa pra lavar, umas três máquinas Hoje eu não vou dormir de dia Quando não durmo de dia no

No documento rosalindacarneirodeoliveiraritti (páginas 107-110)

domingo, passo a semana toda meio cansada.

[...] Ana, ainda na cozinha, terminando o almoço que já tinha, aos poucos,

alimentado o companheiro, a irmã e a cunhada, pegou a marmita para o marido levar

para o trabalho no dia seguinte. Em um pote separado, as verduras da salada. Na

marmita, o arroz, a lasanha, o feijão e o frango. Começou, então, a preparar o seu prato

e comeu em pé, na beira da pia, junto com a filha. Naquele momento, eu estava sentada

no único banco que estava por ali, levantei para que ela se sentasse, mas ela não quis,

dizendo que já está acostumada. Por várias vezes me ofereceram almoço, que não aceitei

por já ter almoçado, mas eu ouvia: “A tia Rosinha não come em casa de pobre!”.

Senti-me um pouco constrangida com isso, mas, realmente, já tinha almoçado. Brinquei:

“Uma hora eu venho pra almoçar!”. Enquanto estive na casa, Fernando, companheiro

de Ana, esteve no quarto, diante da televisão, tranquilamente. Pelo menos nesse dia,

nessa experiência, aquela casa era movida pelas mulheres. Lembro que Ana é uma das

mulheres mais críticas da pesquisa. Diz que não “dá mole” para o companheiro, que ele

tem que assumir com ela as atividades da casa, mas, naquele momento, não me pareceu

que isso seja uma constante.

O cansaço, a batalha de Ana em pleno domingo, por perto das três horas da tarde, mostram um pouco dessa força necessária, dessa luta que precisam empreender para viverem naquela periferia. Ana trabalha de segunda a sábado fazendo faxinas e como manicure. Além disso, vende cosméticos. Costuma chegar tarde da noite em casa depois de um dia exaustivo de trabalho e ainda vai fazer a janta que também alimenta o marido no dia seguinte, na marmita. E no domingo, fica com o compromisso de cuidar de sua casa, na limpeza, lavação de roupa, alimentação, feira... enquanto o marido distrai-se diante da televisão ou em algum jogo de futebol, como ela mesma já me disse. Tudo isso mostra a força necessária, mas também levanta a suspeita de que há momentos em que Ana não problematiza a sua posição de mulher. Parece ter naturalizado que à mulher cabem todos esses afazeres de

casa e, aparentemente sem contestação segue se constituindo e constituindo também seu companheiro, já que os gêneros se constroem em relação (LOURO, 2011; SCOTT, 1995). Além disso, ensina sua filha a ser mulher, através de sua própria constituição, com as práticas que coloca em ação.

E assim, não só ela, mas também as outras mulheres vão se fazendo e se constituindo, vão se praticando para atingirem aquilo que concebem como o ser mulher e que parece natural: a forte, a guerreira... a que dá conta de tudo, mantendo “a sensação de que

tudo pode ser feito de uma só vez e querer que tudo saia perfeito”, como nos diz Jô. E tudo

isso, talvez sem perceber o quanto vão ajudando a naturalizar as posições fixadas para a mulher e para o homem nesta sociedade desigual.

Mas, e quanto à resposta de Vânia? Ela traz uma resposta diferente, ou melhor, parece-me que Vânia não tem resposta. Em vez disso, o que surge são perguntas.

O que é ser mulher

Estou em busca desta resposta, já tive certeza que era mais que mulher. Me achava super mulher, hoje reduzida a esta certeza busco resposta para este papel. Ser uma boa mãe, uma boa esposa ou uma boa funcionária dentro das minhas convicções é bom demais, quando nos deparamos com os dissabores destes papéis as frustrações são enormes, as pessoas lhe mostram a todo momento que você precisa de mudanças certezas e opiniões mas tendo todas as qualidades de mulher isto se transforma em frustrações, dúvidas, medos e muitas incertezas do verdadeiro papel de ser mulher.

Vânia

Vânia não fecha a questão. Problematiza, dá aquele “passo atrás” para pensar sua condição de mulher, condição esta que sente que extrapola limites e a coloca no nível de ser “mais que mulher” ou “super mulher”. Entende que há regras para serem seguidas, como “ser uma boa mãe, uma boa esposa ou uma boa funcionária” o que pode ser “bom demais”, mas também trazer “dissabores”. Entende também que suas “mudanças, certezas e opiniões”

só são válidas desde que continue “tendo todas as qualidades de mulher”, ou seja, que não fuja às regras estabelecidas. Mas isso a incomoda e “se transforma em frustrações, dúvidas,

medos e muitas incertezas do verdadeiro papel de ser mulher”.

Será que Vânia tem outros sonhos para vivenciar sua feminilidade? Se sim, como foram construídos? Será que Vânia caminha no sentido de uma estética da existência? Bom, isso é importante, mas, por ora, mais importante é perceber que ela está se colocando como objeto do seu pensar, está se problematizando, está se relacionando consigo mesma, se experienciando e aí, nesse exercício, já não é mais a mesma.

A experiência de si, historicamente constituída, é aquilo a respeito do qual o sujeito se oferece seu próprio ser quando se observa, se decifra, se interpreta, se descreve, se julga, se narra, se domina, quando faz determinadas coisas consigo mesmo, etc. E esse ser próprio sempre se produz com relação a certas problematizações e no interior de certas práticas. (LARROSA, 2002b, p.43)

Creio que nessas respostas dadas, nessas escritas em que tiveram que pensar “o que é ser mulher”, não só a Vânia, com sua problematização mais ostensiva, mas, também, todas as outras mulheres puderam estabelecer algum tipo de relação consigo mesmas, vivenciaram alguma experiência de si. É nesse sentido que vejo esta pesquisa – com as questões que faz surgir, nos debates, reflexões, nas escritas e narrativas ou em qualquer outra técnica que proponha – como algo muito próximo ao que Larrosa (2002b) chama de dispositivo pedagógico capaz de não só mediar, mas também produzir as relações das mulheres consigo mesmas, participando, assim, da constituição de suas subjetividades.

Trabalhei, neste momento de escrita, o pensamento de Foucault em torno das práticas que constituem os sujeitos. Essas práticas estão em toda parte. Constituem-se em práticas discursivas enquanto dizem o que um sujeito é nos diversos campos do saber. Criam representações e circulam simultaneamente junto a práticas não discursivas formando os dispositivos que controlam, governam, criam regras, punem... Tudo isso se dá em meio a relações de poder que fabricam o sujeito que, no entanto, no uso de sua liberdade também pode agir sobre si mesmo em práticas de subjetivação. Apresentando algumas representações vindas das mulheres com quem pesquiso com relação ao “ser mulher” pudemos observar certo movimento de atendimento a discursos de um ideal de mulher – a forte, a que supera, ama e cuida – mas também vimos algumas problematizações, alguns incômodos com essas representações. E isso pode ser que as leve a algumas resistências e rupturas.

Para continuar minhas investigações, passo agora a pensar outros conceitos e situações importantes. Por pesquisar com mulheres negras em um bairro na periferia de minha cidade, proponho pensar nos atravessamentos de gênero, raça e classe que podem estar presentes nos seus processos de subjetivação.

No documento rosalindacarneirodeoliveiraritti (páginas 107-110)