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Para compreender o papel do jornalismo na sua relação com o acontecimento e com o discurso, estabeleceremos um diálogo com alguns dos autores que nos possibilitam demarcar fronteiras conceituais claras para este trabalho. Esclarecemos, no entanto, que a discussão que propomos não é exaustiva e muito menos abrangente a todos os estudos que tratam dessa relação. O objetivo é lançar um primeiro olhar sobre jornalismo, acontecimento e discurso, a partir dos trabalhos de Benetti (2010), Gregolin (2007), Moraes (2012, 2013), Moura, M. (2008), Ringoot (2006), Zamin e Schwaab (2007), Sousa e Inácio (2005), Sousa e Lima (2013) e Tuchman (1983, 2002), não necessariamente nessa ordem.

Primeiro, iremos nos debruçar sobre a relação da memória discursiva e o acontecimento jornalístico. É com esse propósito que nos apoiaremos na pesquisa de Moura, M. (2008), que vê a construção do acontecimento jornalístico emergindo de uma cadeia narrativa, “marcada fortemente pelos acontecimentos discursivos antecedentes em relação aos

quais se situa, no campo da memória, e com os quais se relaciona, de forma a reordená-los e a redistribuí-los por meio de relações outras” (p. 11).

Assim, para a autora, o jornalismo é narrativa tecida por diversos discursos-origem e constituído por enunciados ligados a outros tantos enunciados atualizados nesse campo. Essas atualizações compartilham o mesmo espaço enunciativo na estrutura narrativa dos textos jornalísticos sobre o fato gerador da notícia, desvelando novo(s) enunciado(s), a notícia. Na perspectiva de Moura, M. (2008), a notícia, constituída por diversos discursos circulantes na sociedade, emerge como enunciado e/ou enunciados,

[...] quando no entrecruzamento dos planos de expressão e de conteúdo, na materialização discursiva, ocorre a ocupação de um lugar de fala, ou de um espaço discursivo que direciona o sentido rumo a um campo específico de significação, que se filia, por sua vez, as ordens de discursos já sedimentadas. (p. 5)

Isso significa dizer que, para a identificação do que é enunciado na notícia, é necessário primeiro reconhecer os jogos de relações que ocorrem nesse campo de saber e para além dele. Os discursos são atravessados por outros discursos não inerentes a esse campo.

Nessa mesma linha de pensamento que considera o jornalismo como um lugar atravessado e produtor de sentidos, Ringoot (2006) destaca a complexidade desse lugar discursivo, por nele interagirem diversos enunciados: o dos jornalistas, o das fontes e o dos públicos. Para a pesquisadora francesa, o jornalismo é uma Formação Discursiva (FD), na perspectiva foucaultiana. A FD jornalística ultrapassa o discurso do jornal e apresenta dois lados: um deles considera que o jornalismo “produz um discurso e um saber específico, destacáveis particularmente pelas formas enunciativas recorrentes”, enquanto para o outro, “o jornalismo é o produto de vários discursos que o elaboram e o estruturam” (RINGOOT, 2006, p. 137).

Assim, se o jornalista instaura um objeto de saber, enunciados e estratégias que lhe são próprios, ele está regulando as múltiplas dispersões, tanto no plano das fontes como no dos públicos. Essas dispersões são perceptíveis na relação dos jornalistas com as fontes de informação que fazem parte do processo de construção dos objetos de saber do jornalismo e também com os seus diversos públicos. “Imaginados, quantificados, sondados, os públicos se exprimem também, seja sob o controle dos jornalistas (carta dos leitores, coluna de ombudsman), seja fora do controle, especialmente nos blogs” (RINGOOT; RUELAN, 2006 apud RINGOOT, 2006, p. 137). Por isso, as fontes de informação e os públicos agem sobre o

jornalismo, para a definição da informação; sobre os modos de produção da notícia; e até sobre os valores que lhe são atribuídos.

Na arqueologia produzida sobre o jornalismo, Moraes (2012) identifica no seu processo de construção e de transformação as seguintes características: 1) os diferentes sujeitos que protagonizaram a produção dos discursos; 2) os objetos desse discurso e suas materialidades, que variaram no decorrer da história; 3) o conceito de notícia, que se transformou do século XVIII ao século XX. Essas modificações, que marcaram a sua história ao longo desses séculos, caracterizam o jornalismo como uma FD, uma vez que um saber foi construído em torno de determinados objetos, conceitos, modalidades enunciadoras e até mesmo em organizações estratégicas. E podemos perceber a construção desse saber a partir dos estudos sobre a notícia realizados por diferentes disciplinas e mais especificamente na área de Comunicação.

Nessa linha de raciocínio, que vê o jornalismo como lugar discursivo e como prática discursiva, Zamin e Schwaab (2007, p. 38) percebem esse lugar não como posição, visto que dentro dele podem ser abrigadas “diferentes e até contraditórias posições-sujeito”, e sim como modos de relacionamento entre a “forma-sujeito de um discurso” e das diferentes posições- sujeito em uma dada formação discursiva. Nessa perspectiva, o lugar social e o lugar discursivo são complementares. Zamin e Schwaab (2007, p. 38) explicam que o lugar social do jornalismo “só se legitima pela prática discursiva e pela inscrição do sujeito num lugar discursivo” e que o lugar discursivo “só existe porque há uma determinação do lugar social, que impõe a sua inscrição em determinado discurso”.

Para Benetti (2010), o jornalismo torna-se acontecimento quando podemos perceber, no seu discurso, a repetição reiterada de determinados conceitos. A permanência discursiva não é definida pelas temáticas tratadas pelo e no jornalismo, e sim pelos sentidos construídos reiteradamente. Diante disso, a nossa época pode ser compreendida em situações diversas, tais como a espetacularização de celebridades “insignificantes”; o discurso que gera o distanciamento do cidadão e os centros de decisão política; a instigação ao consumo, para a manutenção de posição social; e a “especialização, pelo crescimento da preocupação ambiental e pelos avanços da ciência” (BENETTI, 2010, p. 161). Daí a importância de tecermos os sentidos construídos reiteradamente sobre o desenvolvimento sustentável no jornalismo. Esses sentidos, a partir da sua emergência histórica, vêm sendo modificados, atravessados, transformados nessa formação discursiva.

É importante ressaltarmos que a noção de acontecimento no jornalismo assume, conforme Benetti (2010, p. 153), dois estatutos: um deles é o “ambiente da produção de

sentidos sobre o mundo exterior”, e o outro, “o ambiente dos procedimentos que identificam os fenômenos capazes de ocupar o lugar de acontecimento jornalístico”. A autora privilegia o jornalismo como acontecimento nas seguintes situações: 1) “ao tratar de fenômenos capazes de gerar a sensação de experiência compartilhada”; 2) “ao organizar a experiência temporal do homem contemporâneo”; 3) “ao produzir supostos consensos” (BENETTI, 2010, p. 153). O jornalismo como acontecimento discursivo tem como matéria-prima as ocorrências sociais, e sua “prática articula a percepção de fenômenos e a construção discursiva de acontecimentos” (p. 153).

Essa abordagem do jornalismo como percepção e construção discursiva dos acontecimentos é discutida por Gregolin (2007), que também o vê como produto de linguagem e processo histórico, e aponta a mídia como uma das responsáveis por criar uma “ilusão de unidade” de sentido. A mídia, de acordo com a autora, propõe-se a desempenhar um papel de mediação entre os leitores e a realidade, no entanto, o que oferece não é a própria realidade, e sim “uma construção que permite ao leitor produzir formas simbólicas de representação da sua relação com a realidade concreta” (GREGOLIN, 2007, p. 16).

Ao se juntar aos demais autores mencionados anteriormente, Gregolin (2007) ressalta que a mídia é o principal dispositivo discursivo na construção de uma “história do presente” como acontecimento, tencionando a memória e o esquecimento. Em grande medida, afirma a analista do discurso, é a mídia que “formata a historicidade que nos atravessa e nos constitui, modelando a identidade histórica que nos liga ao passado e ao presente” (GREGOLIN, 2007, p. 16). Para ela, efeitos de historicidade criados pela “história ao vivo”, produzidos pela instantaneidade midiática, composta por um movimento da história do presente, ressignificam imagens e palavras enraizadas no passado.

A materialidade discursiva dos produtos midiáticos coloca-nos, na perspectiva de Sousa e Inácio (2005, p. 5), “diante de enunciados que se ligam à memória coletiva, que desencadeiam ou não um movimento para a memória de arquivo da imprensa, e se repetem, mesmo sendo únicos, trazendo o passado e o futuro”. Nesse sentido, para esses autores, “o saber jornalístico constituído de discursos, se presta à construção de um saber histórico, mesmo não sendo considerados científicos e autorizados pelas instituições de ciência” (p. 5). O estudo dos veículos de mídia, conforme Sousa e Inácio (2005), permite a análise dos “discursos materializados” e a compreensão das práticas discursivas e não discursivas, para que se chegue ao acontecimento. A mídia, conforme os autores, aborda determinados temas por um determinado tempo e espaço, de forma destacada, reiterada e silenciosamente, com os seus esquecimentos. Essa perspectiva é fundamental para o nosso tema de pesquisa, pois

compreender como o saber-poder histórico e as práticas sustentáveis se relacionam com o jornalismo é o objetivo deste trabalho.

Gregolin (2007) pontua que o sujeito não é a origem dos sentidos, além de não conseguir enxergar a totalidade significativa e, muito menos, compreender todos os percursos de sentidos produzidos socialmente, pois consegue apenas perceber a “coerência visível em cada discurso particular” (p. 15). Efeitos de coerência e de unidade textual, para a autora, são “construídos por agenciamentos discursivos que controlam, delimitam, classificam, ordenam e distribuem os acontecimentos discursivos em dispersão” (p. 15). Esse processo permite, segundo ela, que o texto estabeleça uma relação com um “domínio de objetos”, prescreva uma posição-sujeito e esteja dotado de uma materialidade repetível (p. 16).

Para apreender o funcionamento da mídia, Gregolin (2007) propõe a análise da circulação dos enunciados, das posições sujeito presentes, das materialidades que formam os sentidos e das articulações que os enunciados da mídia estabelecem com a história e a memória. Dessa maneira, para compreendermos os efeitos de sentido materializados nos textos que circulam em nossa sociedade, é preciso perceber alguns dos fios dessa “teia de sentidos” presentes no campo social. Para tanto, a análise das condições da emergência histórica da sustentabilidade, dos diversos sentidos materializados nos enunciados são importantes para esta pesquisa. Assim, propomo-nos a buscar nos arquivos a memória discursiva sobre o acontecimento discursivo sustentável e suas práticas, para ajudar a compor a teia de sentidos que nos possibilitarão perceber no presente como isso se apresenta como acontecimento discursivo.

Após esse movimento histórico de busca de uma constituição dos enunciados presentes na memória discursiva sobre a sustentabilidade, pretendemos levantar as práticas discursivas ou não identificáveis nos textos jornalísticos selecionados nos jornais O Estado de S. Paulo, O Globo e Folha de S. Paulo sobre o acontecimento  a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, realizada em 2012, no Rio de Janeiro/Brasil. Partimos da hipótese de que os enunciados materializados nos jornais em análise são o resultado de um conjunto de forças de diferentes naturezas, que se apresentaram e se transformaram no processo jornalístico, materializando-se no presente.

4 PENSAR COM FOUCAULT

Da obra do filósofo, este trabalho não pretende deter nenhuma verdade e nem ser depositário de nenhuma herança. Ao reportar-se à obra de Foucault, ele não reivindica autoridade alguma, simplesmente uma familiaridade com certos aspectos do pensamento foucaultiano. [...] Ele é, portanto, mais sensível a certos aspectos do pensamento de Michel Foucault, que privilegiará, em relação a outros, que negligenciará, ou sobre os quais silenciará. (COURTINE, 2013, p. 7)

Esta investigação busca ser um trabalho com Foucault, e não sobre Foucault. O mais apropriado seria mesmo uma pesquisa que procurasse “pensar com Foucault”, como bem sugere Jean Jacques Courtine (2013, p. 7) na epígrafe que abre este capítulo, extraída de sua última obra, Decifrar o corpo. E “pensar com Foucault”, aos modos de ver do antropólogo francês, significa “reencontrar em seu ensinamento uma incitação que jamais me parece ter sido nele desmentida: aquela da liberdade de pensar, que deve se aplicar àquilo que pode ser feito hoje com a massa considerável dos escritos que ele nos legou” (COURTINE, 2013, p. 7). É com essa liberdade de pensar para compreender o nosso presente que nos lançamos na escrita deste capítulo.

A opção pelo aporte teórico-metodológico de Michel Foucault dá-se por sua contribuição aos estudos da Análise do Discurso (AD) e pela discussão que empreende sobre a relação saber-poder na constituição do sujeito, elementos que podem ajudar a pensar o desenvolvimento sustentável na sua relação com o jornalismo do presente. De saída, é importante esclarecermos que Foucault nunca se intitulou um analista do discurso e não é considerado por muitos como filiado a essa corrente de pensamento. Entretanto, suas diversas pesquisas carregam uma definição inovadora de discurso, em sua relação de legitimação dos saberes para se constituir o sujeito. Do seu trabalho, os conceitos de formação discursiva, acontecimento discursivo, interdiscurso, memória discursiva e práticas discursivas foram incorporados à AD, a partir de uma releitura baseada nas matrizes teóricas de pesquisadores como Courtine (2013) e Maldidier (2003). O que nos interessa nesta pesquisa são essas categorias, entre outras a serem discutidas ao longo deste trabalho.

É nesta tarefa reflexiva que nos debruçaremos sobre as obras de Foucault (1988, 2000, 2002, 2006, 2007a, 2007b, 2008, 2010a, 2010b, 2010c, 2012, 2014), para a composição das categorias analíticas; de seus comentadores, tais como Araújo (2004, 2006-2007), Castro

(2009), Dreyfus e Rabinow (2010), Gregolin (2004), Machado, R. (2007) e Revel (2011); dos pesquisadores brasileiros que também trabalham a mídia como materialização dos enunciados, em uma abordagem mais foucaultiana, por exemplo, Baronas (2007), a já citada Gregolin (2004), Moraes (2012), Sargentini (2005), Sargentini, Sá e Ribeiro (2011) e Sousa e Lima (2013); e, ainda, dos elementos dos diálogos de Pêcheux e de seus discípulos da AD francesa, Courtine (2013) Maingueneau (1997, 2012) e Maldidier (2003).

A AD oferece um dispositivo teórico e analítico para os que se propõem a entender a relação entre língua e sociedade e suas práticas discursivas para a compreensão do presente. Trata-se de um amplo campo de pesquisa já consolidado no Brasil e que se interessa mais, a cada dia, pela mídia como objeto de investigação, buscando compreender as produções sociais de sentidos. Para as pesquisas realizadas no Brasil na vertente conhecida como AD Francesa, Michel Pêcheux é fundamental para se compreender a configuração desse campo. Gregolin (2007) explica que, na análise discursiva de Pêcheux, quatro pensadores e suas concepções foram fundamentais na formulação do seu pensamento: 1) as releituras marxistas de Althusser; 2) a leitura das teses de Freud sobre inconsciente realizada por Lacan; 3) o conceito dialógico da linguagem de Bakhtin, que insere na AD a heterogeneidade inerente ao discurso; 4) a noção de formação discursiva de Foucault, que levou à derivação de outras noções importantes para a AD, a saber, o interdiscurso, a memória discursiva e as práticas discursivas. Gregolin (2007, p. 14) entende que a “natureza complexa do objeto discurso – no qual confluem a língua, o sujeito e a história – exigiu que Michel Pêcheux propusesse a constituição de um campo em que se cruzam várias teorias, um campo transdisciplinar”.

Maldidier (2003, p. 75) ressalta que Pêcheux, nos seus últimos escritos, reorienta as suas análises para a singularidade do acontecimento discursivo, produzindo uma reviravolta nos objetos de análise do discurso. Essas mudanças, na última fase das pesquisas de Pêcheux e de seu grupo, levaram Gregolin (2004) a acreditar que ele se aproximou do pensamento de Foucault e que essa aproximação teria sido influenciada por Courtine. Esse pesquisador fazia parte do grupo de pesquisa de Pêcheux e teria proposto aos estudos da AD, em desenvolvimento à época, os conceitos de “heterogeneidade discursiva” e “memória discursiva”, e uma noção de “formação discursiva” próxima da perspectiva foucaultiana.

Gregolin (2004) esclarece que Pêcheux apresentou em 1981 uma síntese de novas perspectivas para a AD, estabelecendo as bases epistemológicas desse projeto, e “deixa claro seu afastamento das posições althusserianas e sua aproximação com a ‘nova história’, com Bakhtin e com Foucault” (p. 156). Isso vai levar, segundo essa analista do discurso, à incorporação de novos temas, tais como “heterogeneidade”, “alteridade” e relações entre o

“intradiscurso” e o “interdiscurso”, na busca por traçar os fios de uma “memória discursiva” e uma nova operação de leitura baseada no “arquivo”, proposta na arqueologia de Foucault.