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Dosse (2013), ao analisar a pesquisa do historiador francês Pierre Nora sobre as manifestações de maio de 1968 na França, destaca que vivenciamos o retorno do acontecimento com novas características, o “acontecimento-monstro”, centrado na mídia como elemento essencial para sua difusão e até mesmo sua constituição. Para além da capacidade de amplificação da mídia, como constatado anteriormente por Park e já discutido nesta pesquisa (item 2.2.2.3), Nora (1972 apud DOSSE, 2013, p. 260) considera impossível separar o acontecimento dos seus suportes de produção e de difusão, e chega a apontar a séria concorrência que o do jornalismo representa para o historiador no campo do tratamento da atualidade.

O monopólio da história estava começando a pertencer às mass media. Daquele momento em diante, são elas que o detêm. Nas nossas sociedades contemporâneas, é através delas (as mídias) e unicamente através delas que o acontecimento nos atinge, e não tem como o evitar. (NORA, 1972 apud DOSSE, 2013, p. 260)

Desde 1968, Nora (1972 apud DOSSE, 2013) já apontava o papel cada vez maior desempenhado pela mídia televisiva na produção do acontecimento, comparando a televisão, na vida moderna, à mesma representatividade dos sinos nos vilarejos da Antiguidade, com a diferença de que a TV faz uma invasão espetacular na esfera privada e íntima, o que anularia as fronteiras entre exterior e interior.

O acontecimento torna-se inclusive a perspectiva de expectativa para o indivíduo moderno, aliás, a imprensa o solicita para que ele comunique “seus” acontecimentos pessoais e familiares, enquanto as empresas preparam cuidadosamente, com seus comerciais, sua acontencimentalidade <événementialité>. (NORA, 1972 apud DOSSE, 2013, p. 262)

Dosse (2013, p. 262) cita, como exemplo da importância da mídia nos acontecimentos, o noticiário policial, pois, como “fato singular, fato ordinário, o acontecimento tornou-se igualmente o lugar de investimento do imaginário de nossa sociedade moderna, apropriado à narrativa”. Nesse mesmo sentido, Nora (1972 apud DOSSE, 2013, p. 262) destaca a “crescente fabricação das mídias na difusão da informação e sua posição de aquartelamento entre o que aconteceu e sua projeção espetacularizada”.

Essa mesma mídia que reduz incertezas pelo sistema global de informação gera o que Nora denomina “fabricação do ininteligível”, pois nos bombardeia com um conhecimento interrogativo e sem sentido, esperando de nós o sentido. Dosse (2013) explica que essa “inflação acontecimental”, <événementielle>, é intrínseca à nossa sociedade midiatizada e tem um efeito paradoxal de facilitar e dificultar, ao mesmo tempo, a compreensão do acontecimento. Se, por um lado, a mídia facilita a aquisição de conhecimento sobre o acontecimento mediante o aceleramento do processo de transmissão, por outro lado, dificulta a doação de sentido, pois, “a imediaticidade propicia, na realidade, a decifração de um acontecimento mais fácil e mais difícil ao mesmo tempo. Mais fácil porque seu alcance é imediato, mais difícil, porque ele comunica tudo de uma só vez” (NORA, 1972 apud DOSSE, 2013, p. 262).

Essa avalanche de informações leva o indivíduo à necessidade de um distanciamento mínimo para que consiga fazer uma reflexão e uma crítica para dar sentido ao narrado. Nora (1972 apud DOSSE, 2013) aponta outro aspecto que vem sendo integrado na atividade

jornalística e na história sobre um tempo cada vez mais midiatizado, que é a inversão sofrida pela própria noção de acontecimento, até então privilégio do historiador, que se reveste de um caráter de exterioridade, de pré-construção. Para o autor, houve uma transformação profunda na noção do que é acontecimento, pois este se “desrealizou” e “dessubstancializou”: “Ora, o acontecimento midiatizado não é mais a garantia do real, pois é a midiatização que o constitui” (NORA, 2006 apud DOSSE, 2013, p. 263)27

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Outro pesquisador analisado por Dosse (2013) também aponta a mídia como central na produção dos acontecimentos. Trata-se de Gluck (2003 apud DOSSE, 2013), que pesquisou a tragédia de 11 de setembro televisionada ao vivo para o mundo inteiro e mostra como esse acontecimento é considerado “não no trâmite de manipulação, mas de interação entre o que é dito e mostrado na tela e aos espectadores” (p. 261). O pesquisador aponta essa simbiose como geradora de uma narrativa heroica, que surge imediatamente em reação ao temor coletivo de um evento do porte do ocorrido em 11 de setembro28. Porém, deixa claro que “a televisão não é responsável por esse resultado narrativo, que era sobredeterminado, mas que desempenhou um importante papel, pois ela garantiu a transmissão ao mesmo tempo do conhecimento visual e da narrativa heroica” (GLUCK, 2003 apud DOSSE, 2013, p. 261).

Dessa maneira, percebemos como a mídia tem um papel importante na significação dos acontecimentos na atualidade, mostrando-nos como a singularidade do acontecimento moderno é comunicada pelas mídias e indissociável delas mesmas. A mensagem hoje é cada vez mais intensa, imediata e enigmática quando é divulgada pelas mídias.

Dosse (2013) aponta três operações que caracterizam e dão significado ao acontecimento: “descrever”, “narrar” e “normalizar”. No plano da descrição dos acontecimentos, Dosse (2013) explica que o jornalismo ajuda a responder questões sobre o que aconteceu. Nessa intervenção midiática, o jornalismo busca transformar uma grande quantidade de informações heterogêneas em algo individualizado e coerente, o que deixa o acontecimento sob as restrições da descrição, e implica dizer que não é possível falar do acontecimento em si. Dosse (2013, p. 267) esclarece que “escolher certo tipo de descrição

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Nora fez essa fala em sua aula inaugural do ano letivo 2006-2007, durante a comemoração do 60º aniversário do Centro de Formação dos Jornalistas (CFJ), na França (DOSSE, 2013).

28 Gluck (2003 apud DOSSE, 2013, p. 262) explica que o ataque de 11 de setembro foi imediatamente

comparado a Pearl Harbor, uma comparação espontânea formulada por diversas fontes (o homem da rua, os adolescentes, as atrizes, o apresentador de televisão). Essa analogia imediata e a reação em forma de narrativa heroica, segundo o autor, começa às 10h35, apenas alguns minutos após o desmoronamento da segunda torre, sugerindo que a América iria reagir e triunfar na guerra contra o Mal. O pesquisador aponta ainda que esse acontecimento poderia ter sido apresentado em um outro tipo de narrativa, portador de uma história, como o atentado a bomba contra o mesmo World Trade Center em 1993 ou como um crime contra a humanidade, pois os alvos foram civis, mas a narrativa dominante foi a heroica.

equivale a engajar um processo de interpretação que depositará o acontecimento descrito em determinada categoria semântica”. Com base em suas pesquisas sobre comunidade interpretativa jornalística, Ponte (2005) deixa claro que descrever é interpretar. Essa discussão será realizada detalhadamente mais à frente, neste mesmo capítulo (item 3.3).

Para Charaudeau (2010), o “fato relatado”, ou narrado, no jornalismo é objeto de uma descrição, de uma explicação e de reações, e essa ação gera como consequência a construção midiática do acontecimento. A notícia é, em sua concepção, “objeto de um tratamento discursivo desenvolvido sobre diferentes formas textuais: de anúncio (os títulos), de notificação (as notas), de relatório (artigo)”, dentre outros (CHARAUDEAU, 2010, p. 152). Esses acontecimentos relatados pelas notícias abrangem não somente fatos, mas também ditos. Os fatos, para o analista, têm uma relação com o comportamento dos indivíduos e com suas ações, assim como com eventos relacionados com as forças da natureza, com as catástrofes naturais, dentre outros. Já os ditos estão relacionados com os pronunciamentos diversos que adquirem valor de testemunho, de decisão ou até mesmo de reação, dentre outros.

Aqui abrimos um parêntese para fazer uma breve reflexão sobre a polissemia do conceito de fato, resultante de reflexão filosófica tanto da teoria do conhecimento como da filosofia da ciência. Essa categoria tem um papel fundamental no jornalismo, pois também reivindica para si a mediação da realidade, por meio de um processo de conhecimento, como a ciência. Para a Sponholz (2009, p. 57), um fato pode ser caracterizado tanto no sentido ontológico como epistemológico: o primeiro está relacionado a “aquilo que existe” e o segundo, a “daquilo que conhece”. A essas duas abordagens, a autora acrescenta uma terceira dimensão, a comunicativa, ou seja, o fato visto como um “ato comunicativo” ou um “tipo de declaração”. Ela esclarece que um

[...] ditado atribuído a Aristóteles “contra fatos não há argumentos” (...) é frequentemente utilizado no jornalismo para “mostrar” que os fatos falam por si. A idéia – que assumiu um lugar central no jornalismo – é de que os fatos revelam a realidade em estado puro, sem a intervenção de um sujeito conhecedor. (SPONHOLZ, 2009, p. 58)

[...] não se refere originalmente a tipos de declarações diferentes, e não necessariamente ao status ontológico (o que existe) ou epistemológico (o que se conhece) dos “fatos”. E ela pode ser complementada com a seguinte proposição: “contra fatos só há a possibilidade de verificação”. (SPONHOLZ, 2009, p. 58)

A discussão sobre se os fatos existem fora da comunicação, no seu sentido ontológico, tem sido feita exaustivamente e está relacionada à existência ou não de um mundo exterior e se há a possibilidade de conhecê-lo. No entanto, Sponholz (2009, p. 59) pontua que “as declarações sobre o mundo exterior o descrevem, o julgam, o classificam, mas não necessariamente o inventam. Para tornar isto claro: a palavra ‘água’ não inventa o objeto água, e sim o descreve”. Existem ainda os fatos definidos como juízos de valor, em uma declaração valorativa. Enfim, para a autora,

[...] fato pode ser definido de maneiras diferentes, de acordo com o nível de referência (realidade ou proposição sobre a realidade), seu status ontológico ou epistemológico ou a sua função comunicativa. Tais definições não se referem necessariamente ao mesmo objeto, de forma que independem uma da outra. (SPONHOLZ, 2009, p. 60)

Se os fatos são rotineiramente sinônimos de acontecimentos e até de notícias, há de se considerar, no entanto, que nem todo fato é um acontecimento. Mas, como define Rodrigues (1993 apud SPONHOLZ, 2009, p. 61), “um acontecimento, portanto, não é somente ‘algo no mundo’, como o fato (no sentido ontológico). Dentro da categoria dos acontecimentos, definem-se como acontecimentos jornalísticos aqueles que se distinguem pela sua imprevisibilidade”. Afirma ainda a autora que se pode ainda diferenciar o acontecimento jornalístico em dois outros sentidos: como matéria-prima e como produto do jornalismo. “No primeiro caso, dizer que o jornalismo trabalha com fatos significa afirmar que ele trabalha com um recorte da realidade, com a perspectiva de um evento que serve como objeto de suas proposições”, e no segundo caso, que “as definições ontológicas podem ser automaticamente eliminadas” e a “realidade produzida e oferecida pelo jornalismo ao seu público” pode ser tornar secundária (SPONHOLZ, 2009, p. 61-63).

Dosse (2013) afirma que a descrição que leva à individualização do acontecimento é feita mediante a incorporação de uma série de elementos que passam a constituí-lo como hábitos, competências, práticas instituídas e crenças. A descrição do acontecimento é feita a partir da relação com um campo de ação possível. Isso significa dizer que a apreensão do acontecimento só é possível a partir do momento que ele nos afete e nos diga respeito, ou seja, pelas reações que nos provoca. A configuração de um acontecimento reside nas expectativas

depositadas sobre ele, ou seja, ele não sai do nada, e sim de pré-conhecimentos, de um conjunto de padrões, de um sistema de referências e de crenças já existentes.

A descrição das mídias leva à narrativa do acontecimento, ao seu enredamento. Charaudeau (2010, p.152) explica que o objetivo da narrativa jornalística dos acontecimentos é a de construir uma história e um ponto de vista sobre ela, e adianta que “a narrativização dos fatos implica a descrição do processo de ação (o quê?), dos atores implicados (quem?), do contexto espaço-temporal no qual a ação se desenrola ou se desenrolou (Onde? E quando?)”.

A questão que se coloca nesse processo narrativo é a autenticidade e a verossimilhança dos fatos que são descritos. Para o analista, o jornalismo lança mão de recursos linguísticos e semiológicos para alcançar os princípios acima citados segundo três procedimentos: a designação identificadora, a analogia e a visualização. Interessa-nos aqui o primeiro item, a “designação identificadora”, explicada por Charaudeau (2010) como o ato de apresentar provas, por meio de imagens, de que o fato realmente existiu, designando uma realidade que se processa diante dos nossos olhos: “O acontecimento sobre o qual estou falando é este que estou mostrando” (p. 154).

Como já discutido anteriormente, se uma declaração corresponde à realidade ou não, isso é um problema de verificação, que, por sua vez, é limitada tanto pelo viés epistemológico quanto por questões materiais bem claras, no caso do jornalismo. O primeiro refere-se à impossibilidade de se alcançar a verdade, já analisada exaustivamente por Popper, restando somente a possibilidade de aproximar-se da realidade ao testar as próprias hipóteses ou suspeitas de forma cada vez mais rigorosa.

A terceira etapa de intervenção das mídias especificada por Dosse (2013) está relacionada com os envolvidos na transmissão do acontecimento (sua normalização). O autor cita Wittgenstein (1986 apud DOSSE, 2013), para quem normalizar um acontecimento é reduzir sua imprevisibilidade e incerteza, evidenciando sua singularidade. Nessa perspectiva, a publicação e a individualização são faces da mesma moeda. Por isso, Dosse (2013, p. 268) ressalta que “o processo de aparição no espaço público realizado pelas mídias faz plenamente parte integrante do próprio acontecimento”. Ele também salienta que a descrição do acontecimento está inserida em uma lógica pragmática que incorpora uma teoria do significado, movimentando crenças, convenções, usos e costumes, e, ainda, a argumentação dos próprios atores. Estes últimos são responsáveis por avaliações sobre esse acontecimento, em uma perspectiva axiológica. Dosse (2013, p. 272) afirma que “a identificação e a qualificação de um acontecimento exigem imediatamente a adoção de uma atitude favorável ou desfavorável, incorporando uma apreciação axiológica baseada na moralidade”.

O acontecimento tem uma emergência histórica e uma singularidade. Quéré (2005, p. 70) aponta que “quando um acontecimento se produz, independentemente de sua importância, o mundo não é absolutamente mais o mesmo: as coisas mudaram”. Por seu turno, Dosse (2013, p. 273) evidencia a capacidade que o acontecimento possui de criar o seu próprio passado e se abrir para um futuro inédito, desvelando uma descontinuidade que não permite mais pensar em termos de um contexto que lhe seja preexistente e causal. Então, o historiador entende que a busca do sentido do acontecimento exige um trabalho de reconstituição de outro passado, inédito, revisitado por um futuro, o do acontecimento, e ganha um sentido diferente. “Se o acontecimento não pode ser considerado como simplesmente determinado pelo seu passado, ele não deixa de ser condicionado por ele: tudo o que acontece, acontece sob condições necessárias” (DOSSE, 2013, p. 272).

Nesse aspecto, Dosse (2013) reforça a importância da noção de emergência do filósofo George Mead (1932), pois, conforme o historiador, já não se trata de negar que um acontecimento ocorra a partir de certas condições que se formaram no passado, e sim entender que a reconstituição desse mesmo passado deve partir desse novo acontecimento que emergiu e levar a uma história indefinida e inacabada, sempre aberta aos acontecimentos posteriores que poderão modificar o passado em função de um futuro sempre diferente. A individuação do acontecimento está para além do momento de sua ocorrência, ou seja, o acontecimento continua a ocorrer e a se singularizar enquanto produzir efeitos sobre aqueles por ele afetados, mas não efeitos causais, e sim efeitos da ordem do sentido.

A mídia tem um papel importante para retomar o passado no presente. O passado torna-se uma controvérsia pela relação que estabelece com o presente por meio da memória. Bergson (1938 apud DOSSE, 2013, p. 91) explica que o passado sobrevive de duas maneiras: 1) nos mecanismos motores; 2) nas lembranças independentes. E não há ruptura entre passado e presente, pois os dois estão intrincados pelos interesses pragmáticos do presente: “Nosso presente cai no passado quando cessamos de atribuir-lhe um interesse atual. Tanto para o presente dos indivíduos quanto para os das nações” (BERGSON, 1938 apud DOSSE, 2013, p. 91). Para esse autor, o que há é uma indivisibilidade da mudança que explica que o passado pode unificar-se ao presente, e que “sem essa sobrevivência do passado no presente, não haveria duração, mas somente instantaneidade” (p. 91). Bergson (1938 apud DOSSE, 2013) parte da concepção de que o presente é constituído pelo que surge como novidade, assim, o acontecimento tem um lugar central a ser pensado. Tal constatação leva-nos à reflexão da relação do jornalismo com o acontecimento, a ser feita no próximo item.

3.2.1 Acontecimento como construção: as contribuições do jornalismo

Dosse (2013) aponta que uma lição a ser assimilada diz respeito ao importante papel desempenhado pela mídia na fabricação do acontecimento na indeterminação da sua natureza e na sua construção progressiva. A cobertura ao vivo do fato pela televisão gera o que o autor denomina de esmagamento das temporalidades no presente. Ele cita como exemplo desse fenômeno a cobertura televisiva do 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, marcada pela ausência de comentários, e em grande parte utilizando somente a força das imagens, o que resultou em uma “hiperbolização” do presente. O autor acredita que esse tipo de cobertura leva o telespectador a um sentimento de “viver a história em tempo real”, e, com isso,

[...] o tempo sofre uma espécie de precipitação para o presente, tornando-se simultaneamente passado e futuro, realizando atualmente o que George Mead pressentia nos anos de 1930 como “o presente é ao mesmo tempo o lugar da realidade e o lugar onde se constituem o passado e o futuro”. (DOSSE, 2013, p. 298)

Interessante notar que essa perspectiva sobre a conexão das três temporalidades do acontecimento procura mostrar que a busca de controle do seu sentido, pelos responsáveis pela transmissão, não está na perspectiva de manipulá-lo, mas, ao contrário, de exorcizá-lo, tentando reduzi-lo a situações ou a fatos controláveis. Podemos perceber isso na rede noticiosa criada pelos veículos de comunicação, mais especificamente de jornalismo, para transformar os acontecimentos em notícia.

Para Dosse (2013, p. 298-299), “a investigação do jornalista consiste em buscar por baixo das aparências o que permite tornar inteligível o acontecimento”, enquanto a “mídia, ao divulgar o acontecimento, procura tanto comunicar o seu sentido quanto dominar o seu impacto, suportando, com a própria opinião, essa reabertura do mundo que lhe cabe reorganizar, domar e pacificar”. Assim, para o historiador, a mídia, no processo de internalização do acontecimento produzido, traz em si uma série de discursos, e “a construção do acontecimento passa pela combinação de vários gêneros discursivos a serem diferenciados para acompanhar o processo de comunicação” (DOSSE, 2013, p. 299). Tais elementos também foram apontados por Charaudeau (2010), ao se referir ao processo de descrição dos fatos a relatar.

Dosse (2013) alerta, no entanto, para as mudanças atuais sofridas pela imprensa, na qual

[...] as informações foram reduzidas em uma mesma página, fornecidas cada vez mais suscintamente, em enquadramentos cada vez mais apertados, tudo integrado em processo ubiquitário que concede cada vez menos lugar ao contexto que dirige a aparição do acontecimento para melhor ressaltar o caráter repentino da emergência deste último. (p. 336)

O mais importante, hoje, não é mais as notícias levarem ao leitor uma compreensão do fato, e sim a lógica de que nada deve ser conhecido. Desse modo, “o acontecimento moderno não é decididamente nada sem seus suportes de comunicação” (DOSSE, 2013, p. 337), o que retoma e confirma a ideia romana segundo a qual ser é ser percebido, é ser visto.

Essa abordagem construtivista aponta para a apresentação de um acontecimento veiculado pelas mídias, após um processo de formação, preparação e significação operado por elas. Mas fazer o acontecimento pressupõe uma sociedade moderna e midiatizada, que difunde esse acontecimento de forma espetacularizada para assegurar sua repercussão. O acontecimento de 11 de setembro é um exemplo da estupefação que a midiatização pode causar. “O essencial do acontecimento está, na realidade, no seu vestígio, naquilo que ele se torna, de maneira não linear no interior dos múltiplos ecos de seu só-depois (après-coup)” (DOSSE, 2013, p. 338). Essa ideia de que as mídias compõem a construção das percepções e dos sentidos dos acontecimentos é compartilhada por Charaudeau (2010), que considera que

[...] não há captura da realidade empírica que não passe pelo filtro e um ponto de vista particular, o qual constrói um objeto particular que é dado como um fragmento do real. Sempre que tentamos dar conta da realidade empírica, estamos às voltas com um real construído, e não com a própria realidade. (p. 131)

As estratégias utilizadas pelos jornalistas, segundo as condições de produção que lhes são dadas, nem sempre têm como objetivo, segundo Sponholz (2009), aproximar da realidade, e sim dar credibilidade ao que é noticiado. Assim, conforme o autor, os “fatos oferecidos pelo jornalismo podem ser credíveis, mas não são a realidade em si, contêm valores e via de regra não se pode dizer a priori se são falsos ou não, porque não foram averiguados validamente pelo jornalista” (p. 67).

Aqui podemos relacionar, entre os estudos do jornalismo, a abordagem das notícias como uma realidade, construída pela socióloga norte-americana Gaye Tuchman (1983), que desenvolveu seu reconhecido trabalho29 em 1978, no campo da Sociologia do Jornalismo. Ela

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O trabalho de Tuchman de 1978 Making News: a study in the construction of reality é uma referência nos estudos sobre o jornalismo e do seu processo de produção Foi publicado pela editora norte-americana Free Press.

parte dos estudos da sociologia interpretativa30 para compreender o mundo social e, em especial, como o jornalismo transforma os acontecimentos em notícias. A autora lança mão de uma abordagem interpretativa para estudar as notícias, demonstrando como o jornalista transforma os acontecimentos cotidianos em acontecimentos jornalísticos.

No processo de descrição da prática jornalística, Tuchman (2002) recorre a dois