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4.1 As contribuições de Foucault para a análise discursiva

4.1.1 Enunciados e heterogeneidade discursiva

Para Foucault (2007b), o enunciado é a unidade elementar do discurso, e não pode ser confundido com a frase (análise gramatical), com a proposição (análise lógica) ou com o ato da fala (análise pragmática). O enunciado, segundo o autor, tem uma função pertencente aos signos, que são constituídos por quatro elementos: 1) um referente, como princípio de diferenciação; 2) um sujeito, como uma posição a ser ocupada; 3) um campo associativo, que coexiste com outros enunciados; 4) uma materialidade específica, tratando-se de coisas efetivamente ditas, escritas, gravadas, passíveis de repetição ou reprodução, ativadas por meio de técnicas, práticas e relações sociais.

O referente, conforme Foucault (2007b), não é o referente de uma sentença, e sim o princípio de diferenciação, ou seja, é configurado por uma ordem do discurso, um feixe de relações entre temas, objetos e conceitos, articulado em um discurso. Isso implica dizer que uma palavra pode ter sentidos diferentes, dependendo da formação discursiva na qual esteja inserida. Por exemplo, nas notícias, os enunciados sobre sustentabilidade têm sentidos diferentes para especialistas ou para a população em geral, pois o saber difere entre eles.

A posição-sujeito leva-nos à descrição de quem são os enunciadores autorizados institucionalmente a produzir determinado discurso. Nas notícias sobre o meio ambiente, jornalistas, cientistas e gestores públicos dessa área são os sujeitos autorizados, enquanto os ativistas de ONGs ambientais, povos tradicionais e a população em geral desempenham outras funções nas discussões sobre as questões socioambientais. Esses sujeitos desempenham diferentes funções no processo discursivo, e os enunciados produzidos têm relação com a formação discursiva à qual se filiam.

Para que os enunciados sejam efetivos, é preciso localizá-los em um campo associado, relacionado a outros enunciados que condicionam o seu sentido. Os sujeitos mobilizam determinado enunciado a partir de sua relação com outros, formando um conjunto de sentidos próprios de um campo de saber, mas que pode tangenciar mais de uma formação discursiva. Dessa maneira, quando um biólogo defende a necessidade da preservação ambiental, está

considerando uma série de outros saberes que circulam não só no campo científico da sua disciplina, mas também em outras, tais como a Ecologia, a Geografia Humana e a Estatística, e nas práticas sociais, para lhe dar certa coerência argumentativa.

Da mesma forma os agentes políticos, nas conferências internacionais organizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), levam em conta não só as decisões baseadas em posicionamentos econômicos e políticos, mas também os saberes que circulam no campo científico. Mais recentemente, as posições de alguns “povos tradicionais” também têm encontrado eco nos embates e lutas travadas em torno da questão ambiental. Desse modo, os enunciados “podem se articular com acontecimentos que não são de natureza discursiva, mas que podem ser de ordem técnica, prática, econômica, social, política” (FOUCAULT, 2000a, p. 94).

A materialidade é aquilo que dá substância ao enunciado, sua possibilidade de existência. É ela que imprime uma forma material e histórica para que os sentidos se expressem. A condição histórica diz respeito à episteme, ou seja, o princípio de ordenação dos saberes anteriores a qualquer enunciado é o solo que confere legitimidade e positividade ao saber numa determinada época (FOUCAULT, 2007a). A materialidade, por meio da qual o discurso jornalístico impresso se manifesta, assenta-se na técnica narrativa, na diagramação dos textos, no suporte midiático e na distância entre jornalistas e leitores. Ela também pode ser percebida em outros elementos heterogêneos dentro do arquivo, na busca dos enunciados sobre o desenvolvimento sustentável (DS), da mesma forma que documentos históricos, jurídicos e até jornalísticos podem ser analisados na busca dos efeitos de sentido que pode produzir.

Para descrever os enunciados é preciso dar conta dessas especificidades. Assim, a análise dos enunciados e da formação discursiva (FD) é estabelecida relacionalmente. As quatro possibilidades de análise propostas pela FD (formação de objetos e conceitos, modalidades enunciativas e estratégias) correspondem aos quatro domínios exercidos pela função enunciativa.

O analista do discurso tem como esforço, conforme Foucault (2007b), interrogar a linguagem do que foi dito, sem a intenção de interpretações de verdades e sentidos ocultos. Ele ressalta que o enunciado não é imediatamente visível nem é tão claro como a manifestação de uma estrutura gramatical ou lógica: “O enunciado é, ao mesmo tempo, não visível e não oculto” (p. 124). E completa:

A análise enunciativa só pode se referir a coisas ditas, a frases que foram realmente pronunciadas ou escritas, a elementos significantes que foram traçados ou articulados  e, mais precisamente, a essa singularidade que as faz existirem, as oferece à observação, à leitura, a uma reativação eventual, a mil usos ou transformações possíveis, entre outras coisas, mas não como as outras coisas. (FOUCAULT, 2007b, p. 124)

A análise, portanto, ocorre no nível da existência, ou seja, na “descrição das coisas ditas”, exatamente porque foram ditas. Desse modo, a análise enunciativa é uma análise histórica, fora de uma interpretação e de um enunciado considerado “latente”, pois está na evidência da linguagem efetiva:

[...] às coisas ditas, não pergunta o que escondem, o que nelas estava dito e o não-dito que involuntariamente recobrem, a abundância de pensamentos, imagens ou fantasmas que as habitam; mas, ao contrário, de que modo existem, o que significa para elas o fato de se terem manifestado, de terem deixado rastros e, talvez, de permanecerem para uma reutilização eventual; o que é para elas o fato de terem aparecido  e nenhuma outra em seu lugar. (FOUCAULT, 2007b, p. 124)

A descrição dos enunciados, segundo Fischer (2001 apud MORAES, 2012, p. 35) é uma forma de investigar, mapear os ditos nas diferentes cenas enunciativas, multiplicando as relações; investigar as posições do falante como sujeito do enunciado; levantar a memória do enunciado, tratando-o na sua dispersão e na sua pobreza, já que poucas coisas são ditas.

Deleuze (1996) aponta para a importância que o conceito de enunciado tem na análise do dispositivo foucaultiano. Ele comenta que os “enunciados formuláveis” são vetores ou tensores de um conjunto multilinear de linhas que compõem um dispositivo e que esses regimes de enunciados remetem às linhas de enunciação de um objeto visível. Para analisar esses enunciados, é necessário considerar a sua regularidade, o que significa encontrar “a linha da curva que passa por pontos singulares, ou valores diferenciais, do conjunto enunciativo” (DELEUZE, 1996, p. 3). O enunciado não pretende ser a descrição total e exaustiva da “linguagem” ou de “o que foi dito”, no entanto, buscamos analisá-lo não como algo passageiro, e sim na sua materialidade repetível, fazendo parte de um arquivo.

Para Foucault (2007b), os enunciados são permeados, em suas margens, por outros enunciados diversos, e cada FD entra simultaneamente em diversos campos de relações, ocupando posições diferentes em cada lugar que aparece. Desse modo, os enunciados podem reaparecer, dissociar-se, recompor-se, aumentar de extensão, ganhar novos conteúdos semânticos característicos de uma época determinada. Essa heterogeneidade é trabalhada na AD Francesa como interdiscurso, que se refere à memória discursiva. Orlandi (1999, p. 31),

baseando-se em Pêcheux, afirma que é “o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito”. Para que as interdiscursividades sejam percebidas, é necessário que aflorem as contradições, as diferenças, os apagamentos, os esquecimentos.

Em Foucault (2007b), a heterogeneidade é basicamente a dispersão dos enunciados. E o trabalho do analista é mostrar como determinados enunciados aparecem e como se distribuem no interior de um conjunto. Antes de tudo, é compreender que eles são acontecimentos e, a partir dessa perspectiva, a análise deve tratá-los na sua irrupção histórica, na sua singularidade, na sua especificidade de emergência, e não de outra forma.

Então torna-se importante percebermos como os acontecimentos ambientais que emergem como objetos na segunda metade do século XX produzem enunciados, compondo um conjunto discursivo, atravessados em suas margens por outros enunciados de outras formações discursivas. Igualmente, se os enunciados e as práticas produzidas por esses acontecimentos no passado seriam os mesmos do presente. O que precisamos perceber na análise é até que ponto os enunciados sobre o DS que reaparecem na Conferência Rio+20 foram dissociados, recompostos, aumentados na sua extensão e acrescidos de novos conteúdos semânticos característicos do presente.