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O historiador francês François Dosse (2013) traçou a genealogia do acontecimento a partir de uma ampla pesquisa sobre as chaves da compreensão do momento em que atravessamos, por uma historicidade marcada pela “acontecimentalização” do sentido, nas mais diversas áreas do conhecimento. O objetivo dessa genealogia foi o de refletir sobre o acontecimento, demonstrando o seu “retorno” às discussões nas disciplinas humanísticas e resgatando-o da insignificância que lhe foi atribuída pelas Ciências Humanas, que durante muito tempo o tem considerado até mesmo como um elemento “perturbador”, procurando mantê-lo a distância (DOSSE, 2013).

O autor ressalta que, até o presente, o acontecimento foi reduzido em nome de um procedimento científico, enquanto o objetivo do homem foi o de criar uma ciência para controlar os acontecimentos, dirimindo a sua singularidade. No entanto, ele acredita que o retorno do acontecimento afeta atualmente, mais do que a disciplina histórica, todas as Ciências Humanas, preocupadas que estão com o que acontece de novo, isto é, com o acontecimento.

Assim, o objetivo da genealogia do acontecimento realizada por Dosse (2013) foi retirá-lo desse lugar de insignificância e restituí-lo à sua força intempestiva como manifestação da novidade, como começo. Para tanto, o autor lança-se na investigação do acontecimento na sua nova articulação com a História e em ambientes nos quais categorias como estrutura, invariante ou longa duração já não são explicativas dos eventos históricos. Ele parte da premissa de que, enquanto o pensamento estruturalista sofre uma crise em diversos campos do conhecimento, cresce cada vez mais um interesse “renovado” pelos fenômenos singulares, ou seja, pelo acontecimento.

Percorrendo uma ampla tradição filosófica e histórica, o historiador analisa o acontecimento a partir de sua interpretação por diferentes visões e correntes e chega à conclusão de que, atualmente, o acontecimento foi transformado e compreendido como resultado, começo e abertura de possibilidades. Entre as preocupações sobre o acontecimento, ele levanta as seguintes questões: 1) o que resulta do acontecimento? 2) assistimos a um simples retorno de um acontecimento factual ou ao nascimento de um novo olhar sobre o acontecimento? 3) o que é um acontecimento? (DOSSE, 2013, p. 2).

O historiador busca os diversos significados que o termo evento <evénement> teve ao longo do tempo, desde seu surgimento no século XV, quando adquire um sentido particular e ao mesmo tempo muito amplo, designando tudo “o que acontece”. Já o termo derivado do latim <evenire> tem o sentido de “sair”, “se produzir”, “ocorrer” e de “advento”. Outra derivação da palavra evento vem do latim <eventum> e <eventos>, significando um fenômeno que leva à ruptura de algo.

Antecedendo à ideia de acontecimento, outro significado apontado por Dosse (2013) é o da palavra grega kairos. Diz ele que, para os gregos, Kairos tinha o poder de unir Aion e Cronos para possibilitar a realização de uma ação oportuna que não deveria deixar escapar. Kairos era representado pela divindade Efebo com uma vasta cabeleira, e era preciso aproveitar sua furtiva passagem para agarrá-lo pelos cabelos. Desse modo, o acontecimento, aqui, tem um sentindo relacionado ao êxito de uma operação e a agir eficazmente, e, segundo Dosse (2013, p. 3), de “dominar a situação ao apreendê-la firmemente em seu âmago,

provocando uma mudança radical”. O importante dessa noção é que ela traz a concepção simultânea de interrupção e abertura, e não de finalidade, possuindo como característica a singularidade.

No século XVI, a noção de acontecimento estava ligada à obtenção de “um resultado”, “um sucesso”, “um desfecho”, e no século seguinte foi substituída por algo que aconteceu, um fato de certa importância, até um pouco excepcional, uma quebra de rotina. Para Dosse (2013), esse significado permanece até hoje imbricado em outras significações, e aponta que, na língua francesa, o termo acontecimento pode ser compreendido a partir de uma tripla estratificação de sentidos. O primeiro estrato de sentido parece ter sido herança da esfera literária, ligado à causalidade, no que diz respeito ao estabelecimento das condições de possibilidade de sua realização, remetendo à concepção de desfecho, de resultado. O segundo estrato de sentido está relacionado ao que acontece com alguém, seja positivo ou negativo, enquanto o terceiro remete à ideia de uma ruptura inesperada, dramática, relacionada ao desfecho.

Essas três definições de acontecimento evoluíram entre os séculos XVII e XIX, mas seu sentido sofreu modificações ao longo dos anos, tanto que Dosse (2013) identifica a coexistência delas durante o século XVII como “resultado e sucesso de algo”, “uma aventura notável”. Já no século XIX, o autor percebe que há uma mudança, uma inversão nos sentidos: o que era relacionado ao desfecho, ao resultado, fica em segundo plano, e o que passa a receber destaque é a ideia de ruptura, remetendo a “o que acontece”. Essa duplicidade de sentido e essa tensão entre dois polos diferentes irá constituir a natureza semântica do acontecimento, o que se mantém até hoje. Assim, o termo remete à ideia de resultado causal e, por outro lado, à acepção de inesperado, de surpresa.

Atualmente, Dosse (2013) entende que o acontecimento está retornando e sendo escrutinado sob uma ótica científica, de forma a lhe conferir toda a sua efetividade. Assim, o acontecimento é captado no seu duplo sentido, tanto como resultado quanto como começo, tanto como início quanto como desfecho. E é nessa esteira que os fenômenos singulares ganham interesse renovado e uma nova centralidade na noção de acontecimento. Para o historiador, “em geral, a literatura tem enfatizado o resultado do novo, o acontecimento como singularidade que quebra o curso regular do tempo” (DOSSE, 2013, p. 7). Ou seja, o acontecimento é caracterizado por sempre irromper o novo.

Para a compreensão do presente, Foucault (2007b) aponta que a mudança e o acontecimento são categorias centrais nesse processo. Mas quanto ao significado do termo para o autor, podemos distinguir duas fases diferentes nas suas obras. Um primeiro

significado aparece até a publicação, em 1966, do livro As palavras e as coisas (2007a) e, segundo Dosse (2013, p. 159), “trata-se então do impacto de grandes plataformas sincrônicas, de grandes estruturas chamadas de epistémes, que surgem e desaparecem de maneira enigmática”. A partir da obra Arqueologia do saber, publicada em 1969, o acontecimento, para Foucault, ganha um novo sentido, em uma virada metodológica, pois o autor passa a tratar do acontecimento discursivo, mas dentro de uma história geral e a partir de espaços de dispersão.

Foucault (2007a, 2007b) utiliza o conceito de acontecimento segundo uma concepção filosófica da análise do presente. Essa preocupação em compreender o presente é considerada, segundo Castro (2009), como uma herança de Nietzsche, que introduziu o “hoje” no campo da Filosofia. O autor aponta que em Foucault existem dois sentidos iniciais para esse termo: 1) acontecimento definido como novidade ou diferença; 2) acontecimento como prática histórica.

O sentido que nos interessa aqui é o acontecimento como prática histórica, presente na obra de Foucault a partir de Arqueologia do saber, e que busca dar conta da novidade histórica, o “acontecimento arqueológico”. Para Foucault ([1969]2007b), a história faz surgir o acontecimento no que ele tem de único, de singular. Dessa maneira, é preciso entender o acontecimento

[...] não como uma decisão, um tratado, um reino ou uma batalha, mas como uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retornado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se amplia e se envenena e numa outra que faz sua entrada, mascarada. (FOUCAULT, [1969]2007b, p. 272)

O autor deixa claro que essas forças são fontes do acaso, do aleatório e do singular, e não de um cálculo premeditado, e que é no processo de lutas entre essas forças que se constroem as condições de emergência de algo novo, singular, a irrupção do acontecimento.

Esse ponto de irrupção só é possível porque, segundo Weinmann (2003, p. 53), “ocorre uma alteração na correlação de forças envolvidas numa agonística. Produz-se nos interstícios, nas brechas que aparecem quando se inverte o equilíbrio previamente existente entre essas forças, e a estrutura, anteriormente estabelecida, ameaça ruir”. A emergência do acontecimento ocorre, como esclarece o autor, “no instante mesmo em que aquele que se encontra assujeitado apropriasse de um sistema de regras, utilizando-o pelo avesso contra aquele que o sujeitava” (WEINMANN, 2003, p. 53).

Ele pode ser entendido como a emergência de enunciados, que se inter-relacionam e produzem efeitos de sentido. Desse modo, o enunciado é entendido por Foucault ([1969]2007b) em sua singularidade e emergência histórica. A história é constituída pelas lutas e pelas batalhas discursivas. O acontecimento discursivo irrompe, dadas as suas possibilidades de aparição, a partir de regras que permitem o seu surgimento em um dado momento histórico (FOUCAULT, [1969]2007b). Afinal, não é qualquer coisa que pode ser dita em qualquer momento da história, pois é preciso que sejam dadas as condições para sua existência e circulação.

Para a descrição dos acontecimentos discursivos é necessário reconstituir, atrás do fato, toda uma rede de discursos, de poderes, de estratégias e de práticas. Segundo Foucault ([1969]2007b), é preciso entender quais as condições que alguém precisa aceitar quando pronuncia algo em algum momento. O acontecimento discursivo tem relação estreita com os acontecimentos não discursivos, sejam eles políticos, sociais, sejam econômicos ou culturais. E é a emergência de práticas discursivas e não discursivas em torno da questão do meio ambiente, mais especificamente sobre a emergência de um novo acontecimento, o desenvolvimento sustentável na sua relação com o jornalismo, que nos interessa nesta discussão. Desse modo, iremos discutir, no próximo item, o papel da mídia na formação, emergência ou até mesmo na construção dos acontecimentos na atualidade.