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4.2 O dispositivo no pensamento foucaultiano

4.2.1.3 Como analisar as relações de poder

Diante de tudo o que foi colocado, um desafio se desenha: como analisar então as relações de poder? E, mais ainda, como compreender as relações de poder que são exercidas pela constituição do desenvolvimento sustentável? É à busca de desenhar um método analítico para esta pesquisa que nos dedicaremos a seguir.

Foucault (2010a) não descarta que as instituições sejam o espaço para se observarem as relações de poder, no entanto, vê as seguintes fragilidades nesse tipo de investigação: 1) observar apenas as relações de poder “intrainstitucionais”, em vez de perceber as relações de poder, tendo em vista que muitos dos mecanismos de uma instituição objetivam assegurar a sua própria conservação; 2) restringir-se à explicação do poder pelo poder, que é a origem das instituições; 3ª) colocar em jogo dois princípios: regras (explícitas ou silenciosas) e aparelho, correndo o risco de privilegiar, acentuadamente, um em detrimento do outro na relação de poder, e, dessa maneira, olhar só as modulações da lei e da coerção. Desse modo, o autor propõe que se evite analisar as relações de poder por meio das instituições, e que, mesmo se elas tomarem “corpo e se cristalizarem” em qualquer uma delas, deve-se olhar além delas.

O exercício de poder, para Foucault (2010a), é uma maneira de estruturar o campo da ação possível dos outros, uma “ação sobre ações”. Em suma, as relações de poder são uma forma de agir sobre as ações dos outros, situação essa intrínseca à nossa sociedade e enraizada no nexo social, pois “uma sociedade sem relações de poder só pode ser uma abstração” (p. 291). Ele entende que, em uma perspectiva política, analisar as ações na sociedade, a formação histórica dessas ações, as tornam sólidas ou frágeis e que saber quais as condições necessárias para aboli-las ou transformá-las é essencial no nosso presente. Mas deixa claro

que, apesar de existirem relações de poder na sociedade, analisá-las é uma ferramenta política necessária e que deve ser contínua no nosso tempo.

Para analisar as relações de poder, Foucault (2010a) aponta alguns pontos necessários: o sistema de diferenciações, o tipo de objetivos, as modalidades instrumentais, as formas de institucionalização e os graus de racionalização. O sistema de diferenciações permite agir sobre a ação dos outros, uma vez que existem “diferenças jurídicas ou tradicionais de estatuto e de privilégio; diferenças econômicas na apropriação das riquezas e dos bens diferença de lugar nos processos de produção; diferenças linguísticas ou culturais; diferenças na habilidade e nas competências” (p. 291). No seu entendimento, toda relação de poder opera diferenciações, que, concomitantemente, são condições e efeitos.

Com relação ao tipo de objetivos, segundo Foucault (2010a) é possível identificar, nas relações de poder, qual deles está sendo perseguido por aqueles que agem sobre a ação dos outros, tais como manutenção de privilégios, acúmulo de lucros, operacionalidade da autoridade estatutária e exercício de uma função ou de uma profissão. Essas diversas modalidades de instrumentos no exercício do poder podem ocorrer pela

[...] ameaça de armas, pelos efeitos da palavra, através das disparidades econômicas, por mecanismos mais ou menos complexos de controle, por sistemas de vigilância, com ou sem arquivos, segundo regras explícitas ou não, permanentes ou modificáveis, com ou sem dispositivos materiais etc. (FOUCAULT, 2010a, p. 291)

Já as formas de institucionalização são criadas pelo poder para

[...] misturar dispositivos tradicionais, estruturas jurídicas, fenômenos de hábito ou de moda (como vemos nas relações de poder que atravessam as instituições familiares); podem também ter a aparência de um dispositivo fechado sobre si mesmo com seus lugares específicos, seus regulamentos próprios, suas estruturas hierárquicas cuidadosamente traçadas, e uma relativa autonomia funcional (como nas instituições escolares ou militares); podem também formar sistemas muito complexos, dotados de aparelhos múltiplos, como no caso do Estado, que tem por função constituir o invólucro geral, a instância de controle global, o princípio da regulação e, até certo ponto também, de distribuição de todas as relações de poder em um conjunto social dado. (FOUCAULT, 2010a, p. 291)

E, por fim, um ponto que não poderia faltar na análise das relações de poder é que elas operaram segundo graus de racionalização, que funcionam como ação em um campo de possibilidades. Isso significa dizer que as relações de poder podem ser elaboradas com o objetivo de atingir a eficácia dos instrumentos, na certeza de um resultado ou em função do “custo eventual”, seja ele um custo econômico dos meios utilizados, seja uma reação

constituída pelas resistências encontradas. Dessa maneira, o exercício do poder, para Foucault (2010a, p. 291), “não é um fato bruto, um dado institucional, nem uma estrutura que se mantém ou se quebra: ele se elabora, se transforma, se organiza, se dota de procedimentos mais ou menos ajustados”. E são ajustáveis a partir das resistências que encontram na sua atuação e se enraízam no conjunto da rede social:

Isso não significa, contudo, que haja um princípio de poder, primeiro e fundamental, que domina até o menor elemento da sociedade; mas que, a partir dessa possibilidade de ação sobre a ação dos outros (que é co- extensiva a toda relação social), múltiplas formas de disparidade individual, de objetivos, de determinada aplicação do poder sobre nós mesmos e sobre os outros, de institucionalização mais ou menos setorial ou global, organização mais ou menos refletida definem formas diferentes de poder. (FOUCAULT, 2010a, p. 292)

Tanto as formas como os lugares do “governo” dos homens nas sociedades contemporâneas são, conforme Foucault (2010a, p. 293), múltiplos e “superpõem-se, entrecruzam-se, limitam-se e anulam-se, em certos casos, e reformam-se, em outros”. A partir dessa lógica, o Estado não é o único lugar e a única forma do exercício do poder, apesar de ser o mais importante, e ainda que de certa maneira todos os outros tipos a ele se refiram, não derivam dele.

A partir desta discussão, podemos pensar se e como questões ambientais exercem relações de poder em nossa sociedade, estruturando o campo de ação possível dos outros, por meio de diferenciações econômicas na apropriação dos recursos naturais do planeta, nas questões jurídicas e nos privilégios que se estruturaram com base nessas relações e no estabelecimento de acordos e tratados internacionais. Os tipos de objetivos que aqueles que agem sobre as ações dos outros estão procurando alcançar, tais como a manutenção de privilégios e o acúmulo de lucros, fazem-nos pensar em como são constituídas as relações de poder intrínsecas ao desenvolvimento sustentável, exercidas pelos efeitos da palavra, pelas disparidades econômicas geradas pelos acordos ambientais e pelas sanções ocasionadas pelo não cumprimento desses mesmos acordos e por outras determinações internacionais.

E, por último, necessário se faz indagarmos: de que tipo de racionalidade essas relações de poder estão imbuídas, no sentido da eficácia do objetivo estabelecido como uma estratégia clara da ação sobre os outros, seja ele o custo econômico, seja uma reação às resistências encontradas nos problemas levantados sobre a questão ambiental? Sob uma perspectiva política, analisar as ações de poder relacionadas às questões ambientais na sociedade atual, à formação histórica dessas ações, ao que as tornam sólidas ou frágeis e às

condições necessárias para aboli-las ou transformá-las é essencial ao nosso presente para podermos compreender em que estamos nos tornando.