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4.2 O dispositivo no pensamento foucaultiano

4.2.1.2 Como se exerce o poder

acontece não haver mais ninguém para tê-las concebido e poucos para formulá-las: caráter implícito das grandes estratégicas anônimas, quase mudas, que coordenam táticas loquazes, cujos “inventores” ou responsáveis quase nunca são hipócritas.

Isto significa dizer que não dá para identificar as relações de poder na escolha clara de um sujeito ou de um grupo, e sim nas táticas que são operadas no processo de encadeamento e de propagação das relações de poder no tecido social, em uma situação específica e nas práticas. Dessa forma, buscamos, na análise, identificar essas relações de poder e as táticas desencadeadas nas lutas e nos embates na composição de respostas às emergências ambientais dadas pelas conferências da ONU de 1972 e 2012.

Quando se discute a questão ambiental e os elementos que a envolvem, estão presentes os mecanismos de exploração e dominação, resultado dos processos econômicos e sociais. No entanto, não é nosso ponto de chegada a análise sobre as questões ambientais; ele está na investigação da percepção das relações complexas e circulares que essas questões mantêm com outras formas de lutas, também presentes em outras múltiplas relações de força e que atuam nas famílias, nos grupos, nas instituições e nos aparelhos de produção. Buscamos perceber como esse tipo de poder penetra a vida cotidiana e categoriza o indivíduo, liga-o à sua identidade e lhe impõe uma lei de verdade, transformando-o em sujeito que subjuga e se sujeita.

4.2.1.2 Como se exerce o poder

O poder é exercido e não é algo que possa ser adquirido, arrebatado, compartilhado, guardado ou que se deixe escapar. O seu exercício se dá a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis. O interesse de Foucault (1988, 2010a) é por uma análise crítica do poder e, com esse intento, lança-se na busca de elucidar como ele é exercido. A sua preocupação pelo “como” não é uma fuga da abordagem da questão “do que” e “do por que” do poder, e sim uma tentativa de recolocá-lo de outro modo, para, na sequência, verificar se é genuíno um poder que reúna “um que”, “um por que” e “um como”. Isso o leva à seguinte questão:

[...] começar a análise pelo “como” é introduzir a suspeita de que o “poder” não existe; é perguntar-se, em todo caso, a que conteúdos significativos podemos visar quando usamos esse termo majestoso, globalizante e substantificador; é desconfiar que, deixamos escapar um conjunto de realidades bastante complexo, quando claudicamos, indefinidas, diante da dupla interrogação: “O que é o poder? De onde vem o poder?” (FOUCAULT, 2010a, p. 283-284)

Em suma, a inquietação do filósofo está centrada em como o poder ocorre, para tentar uma investigação crítica sobre a temática. Dito de outro modo, como o poder ocorre quando os indivíduos o exercem sobre os outros. Dessa maneira, Foucault (2010a) distingue diversas maneiras de poder: a primeira delas é a “capacidade objetiva” do poder, considerada como “aquela que exercemos sobre as coisas e que nos capacita para modificá-las, utilizá-las, consumi-las e destruí-las – um poder que remete às aptidões diretamente inscritas no corpo ou mediatizadas por dispositivos instrumentais” (p. 284). A segunda característica do poder é ser um jogo de relações entre indivíduos (ou entre grupos), e aqui o autor se refere a um “poder” que designa relações entre “parceiros”, em um “conjunto de ações que se induzem e se respondem umas às outras” (p. 284), e não a um sistema de jogo.

Uma distinção entre relações de poder, relações de comunicação e capacidades objetivas é apresentada por Foucault (2010a) como três domínios separados e ao mesmo tempo imbricados, apoiando-se e servindo-se mutuamente. Comunicar, para ele, é “sempre certa forma de agir sobre o outro ou os outros” (p. 284), apesar de não entender que o processo de produção e circulação da informação sejam resultados de efeitos de poder. Por isso, Foucault (2010a) explica que as “relações de poder”, as “relações de comunicação” e as “capacidades objetivas” não podem ser misturadas, e as primeiras têm sua especificidade em relação às outras. Dessa forma, ele se posiciona ao abordar a temática do poder sustentado na análise do “como”, e isso significa fazer deslocamentos críticos com relação à suposição de um “Poder” fundamental e tomar por objeto de análise as relações de poder a partir da clara distinção entre elas e as capacidades objetivas e as relações de comunicação, nos seus entrelaçamentos.

Partindo do raciocínio que o exercício do poder é um modo de ação de uns sobre os outros, o autor entende que “só há poder exercido por ‘uns’ sobre os ‘outros’; o poder só existe em ato, mesmo que, é claro, se inscreva em um campo de possibilidades esparso que se apóia em estruturas permanentes” (FOUCAULT, 2010a, p. 287). Explica, ainda, que uma relação de poder só pode ser definida se se considerar que ela “não age direta e imediatamente sobre os outros”, e sim sobre a ação: “Uma ação sobre a ação, sobre ações e eventuais ou atuais, futuras ou presentes” (p. 287).

Ao fazer uma distinção entre uma e outra, Foucault (2010a, p. 287) explica que “uma relação de violência age sobre o corpo, sobre as coisas: ela força, dobra, quebra, destrói; ela fecha todas as possibilidades; não tem, portanto, junto a si, outro pólo senão o da passividade; e, se encontra uma resistência, a única escolha é tentar reduzi-la”. Já uma relação de poder, segundo ele, desenvolve-se, diferentemente da relação de violência, sob dois princípios indispensáveis na sua configuração: “[...] que ‘o outro’ (aquele sobre o qual ela se exerce) seja reconhecido e mantido até o fim como o sujeito de ação; e que se abra diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis” (p. 287-288). Desse modo, esse conjunto de ações sobre possíveis outras ações pode processar-se no espaço da possibilidade que se nota no comportamento dos “sujeitos ativos”, pois o poder

[...] incita, induz, desvia, facilita ou dificulta, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, coage ou impede absolutamente, mas é sempre um modo de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações. (FOUCAULT, 2010a, p. 287- 288)

O exercício do poder consiste, portanto, em “conduzir condutas” e em ordenar a probabilidade, pois, no fundo, “é menos da ordem do afrontamento entre dois adversários, ou do vínculo de um com relação ao outro, do que da ordem do ‘governo’”. O sentido da palavra governo, para Foucault (2010a), é o mesmo que possuía no século XVI, não se referindo, portanto, apenas às estruturas políticas e à gestão do Estado, e sim à “maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos: governo das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes” (p. 288).

O governo, nessa acepção, é uma estrutura do campo de ação dos outros, e os modos da relação de poder não podem ser compreendidos apenas na violência, na luta e no contrato da aliança voluntária, mas também em um modo de ação singular. Para Foucault (2010a, p. 289), “quando definimos o exercício do poder como um modo de ação sobre as ações dos outros, quando o caracterizamos como ‘governo’ dos homens, uns pelos outros, no sentido mais extenso da palavra, incluímos um elemento importante: a liberdade”. Ou seja, o poder só se exerce sobre “sujeitos livres”, entendidos como “sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidades em que diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer” (p. 289).

A partir dessa concepção, a escravidão não é considerada uma relação de poder, pois os homens não são livres, estão acorrentados, submetidos a uma relação física de coação. Desse modo, percebemos que a liberdade ganha um papel fundamental na análise de poder

foucaultiana, pois é uma condição para a existência do próprio poder, um pré-requisito, visto ser “necessário que haja liberdade para que o poder se exerça, além de ser seu suporte permanente”, por isso, a “relação de poder e a insubmissão da liberdade não podem, então, ser separadas” (FOUCAULT, 2010a, p. 289).

É interessante pensar sobre como as questões ambientais, centradas em uma lógica de desenvolvimento sustentável, estrutura o campo de ação dos outros de um modo específico de governar os indivíduos. Ou melhor, como um poder-saber sobre essas questões é exercido sobre os sujeitos individuais e coletivos, possibilitando condutas, reações e diferentes modos de comportamento e ação.