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4.1 As contribuições de Foucault para a análise discursiva

4.1.2 Arquivo e o a priori histórico

Para entender o que Foucault concebe como arquivo, é preciso compreendermos, primeiramente, a dimensão que a noção de “positividade” tem em sua obra. Essa seria uma unidade através do tempo e do espaço que só pode ser enxergada na análise, na dispersão dos enunciados e nas regularidades de acontecimentos discursivos (FOUCAULT, 2007b). E se, para o filósofo, a positividade não pode mostrar quem estava com a verdade, ela “pode mostrar como os enunciados ‘falavam a mesma coisa’, colocando-se no ‘mesmo nível’ ou ‘a mesma distância’, o ‘mesmo campo conceitual’, no ‘mesmo campo de batalha’” (p. 144). Nessa perspectiva, podemos perceber que

[...] as diferentes obras, os livros dispersos, toda a massa de textos que pertencem a uma mesma formação discursiva [...] comunica-se pela forma de positividade de seus discursos, [...] define um campo em que, eventualmente, podem ser desenvolvidas identidades formais, continuidades temáticas, translações de conceitos, jogos polêmicos. (FOUCAULT, 2007b, p. 144)

Essa “positividade”, para o autor, “desempenha o papel do que se poderia chamar de um a priori histórico” (p. 144), compreendido aqui como um conjunto das regras que caracterizam uma prática discursiva em um determinado espaço e tempo, um elo que possibilita apreender “as condições de emergência dos enunciados, a lei de sua coexistência com outros, a forma específica de seu modo de ser, os princípios segundo os quais subsistem, se transformam e desaparecem” (p. 144). Vale esclarecermos que Foucault (2007b) não se refere aqui ao a priori formal, no sentido de validar os juízos, e sim às condições de realidade de um enunciado. O propósito metodológico do uso dessa categoria é “dar conta do fato de que o discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade, mas uma história, e uma história específica que não o reconduz às leis de um devir estranho” (p. 144). Enfim, o a priori histórico, nessa visão, pode ser considerado como o conjunto de regras que evidenciam uma prática discursiva.

Em suas análises sobre os dispositivos, essa parte da história relativa ao arquivo será considerada por Foucault, segundo Deleuze (1996), como o desenho do que somos e deixamos de ser, ou seja, aquilo que vamos deixando pouco a pouco de ser para o que iremos nos tornar. Dessa forma, analisar o arquivo é importante por ser uma região próxima a nós, mas ao mesmo tempo diferente do atual e que, de certa forma, nos delimita:

A descrição do arquivo desenvolve suas possibilidades (e o domínio de suas possibilidades) a partir dos discursos que acabam de deixar de ser os nossos; o seu limiar de existência é instaurado pelo corte que nos separa daquilo que já não podemos dizer, e daquilo que fica fora da nossa prática discursiva; essa descrição começa com o que está do lado de fora da nossa própria linguagem; é onde as práticas discursivas se separam que é o seu lugar. É neste sentido que serve para os diagnósticos. Não porque nos permita fazer o quadro traços distintivos e delinear antecipadamente a figura que teremos do futuro. (DELEUZE, 1996, p. 4)

Assim, a descrição do arquivo é importante para a análise do dispositivo, pois, segundo Deleuze (1996), nos liberta das continuidades e nos faz ver as rupturas históricas, quebrando essa identidade temporal que nos conferimos. Desse modo, analisar um arquivo para perceber o dispositivo “demonstra que nós somos diferença, que a nossa razão é a diferença dos discursos, a nossa história a diferença dos tempos, o nosso eu a diferença das máscaras” (DELEUZE, 1996, p. 5).

Nas práticas discursivas é que se instauram sistemas que, segundo Foucault (2007b, p. 146), são ao mesmo tempo “os enunciados como acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu campo de utilização)”. A esses acontecimentos e a essas coisas, ele irá chamar de arquivo, entendido

pelo filósofo como “a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares” e, também, o que faz com que todas as “coisas ditas” não se acumulem em algo sem forma, “mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas com outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas” (p. 146). O arquivo define um nível especifico no qual as práticas possibilitam a emergência de múltiplos enunciados como acontecimentos.

Não é possível descrever um arquivo na sua totalidade, mas podemos apreendê-lo por fragmentos, regiões e até níveis próximos a nós, mas diferentes de nossa atualidade. Essa região privilegiada é a “orla do tempo que cerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade; é aquilo que, fora de nós, nos delimita” (FOUCAULT, 2007b, p. 148). A partir dessa noção, ele define o seu método arqueológico:

Esse termo não incita a busca de nenhum começo; não associa a análise a nenhuma exploração ou sondagem geológica. Ele designa o tema geral de uma descrição que interroga o já dito no nível de sua existência; da função enunciativa que nele se exerce, da formação discursiva a que pertence, do sistema geral de arquivo de que faz parte. A arqueologia descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo. (FOUCAULT, 2007b, p. 148)

Para Gregolin (2004), o conceito de arquivo surge como uma proposta de análise que permite unir todos os conceitos, enunciados, formações discursivas, conjuntos de enunciados (discurso); as práticas discursivas; o a priori histórico; a positividade. Desse modo, o arquivo apresenta-se como um elemento essencial na análise foucaultiana do discurso. Revel (2011, p. 19) esclarece que, a partir dessa noção, Foucault distingue-se dos estruturalistas, “pois se trata de trabalhar sobre os discursos considerados como acontecimentos e não sobre o sistema da língua em geral”, e se diferencia dos historiadores, já que esses acontecimentos não fazem parte do nosso presente, “eles subsistem e exercem, nessa mesma substância no interior da história, certo número de funções manifestas ou secretas”.

Isso implica uma ruptura com a ideia do corpus dado a priori, construído a partir dos saberes do analista. Cabe a ele descrever as configurações de arquivo, partindo de um tema, de um conceito, e se questionar sobre qual o lugar ocupado pelo acontecimento discursivo em um determinado arquivo (FOUCAULT, 2007b). Desse modo, o corpus da pesquisa constitui- se de textos representativos dos diversos gêneros, que tratam de um mesmo tema e circulam em diferentes suportes. Essa dispersão deve ser, segundo Foucault (2007b), descrita pelo analista, que deve pesquisar elementos que constituem a sua regularidade, a ordem de

aparecimento, as correções em sua simultaneidade, as posições em um espaço comum, as transformações, estabelecendo, assim, as “regras de formação” que regem os discursos.

Como o arquivo nunca pode ser apreendido e descrito em sua totalidade, para a constituição de um corpus de análise é preciso proceder ao recorte dos enunciados, a partir de uma dada especificidade, em seu interior. Esse recorte, segundo Sargentini, Sá e Ribeiro (2011, p. 34-36), “deve centrar na leitura do arquivo com o objetivo de analisar a irrupção de um acontecimento”. Nesse ato de escavação do arquivo, na busca pela descrição e análises das práticas discursivas em determinada época, o analista deve preocupar-se com uma questão: como surgiu determinado enunciado?

Uma leitura desse arquivo também é proposta por Courtine (1981 apud SARGENTINI, 2007), que introduz a noção de forma de corpus como princípio de estruturação de um corpus discursivo:

Uma tal concepção não considerará um corpus discursivo como um conjunto fechado de dados que emergem de uma certa organização; ela fará do corpus discursivo, ao contrário, um conjunto aberto de articulações cuja construção não é efetuada já no estado inicial do procedimento de análise: conceber-se-á aqui um procedimento de análise do discurso como um procedimento de interrogação regulado de dados discursivos que prevê as etapas sucessivas de um trabalho sobre a corpora ao longo de todo o procedimento. Isso implica que a construção de um corpus discursivo possa perfeitamente ser concluída apenas no final do procedimento. (p. 3-4)

Procede-se, assim, na AD, a uma ruptura com o corpus dado a priori, e passa-se, então, a descrever as configurações de arquivo, de acordo com Foucault (2007b), centradas a partir de um tema, de um conceito, enfim, de um acontecimento. A pergunta que, então, o analista deve fazer é: “Qual lugar ocupa dado acontecimento discursivo num determinado arquivo?” Dessa forma, a noção de arquivo torna-se muito produtiva nos estudos da análise do discurso. Não se trata de considerar tal noção como enunciados conservados por uma via arquivista, e sim como um modo de acompanhar as práticas discursivas de uma sociedade. Portanto, para Sargentini (2005), o corpus de análise passa a ser composto por

[...] textos variados, de diversos gêneros, que circulam em diferentes suportes, sobre um mesmo tema, conceito ou acontecimento. A noção de formação discursiva é, enfim, considerada em sua heterogeneidade e tende a ser deixada de lado em função de uma operação de “leitura do arquivo”. (p. 4)

Com base nos trabalhos do historiador Guilhaumou e da analista do discurso Denise Maldidier, Sargentini (2005) propõe ancorar a noção de arquivo no interior da análise do discurso, em uma leitura por meio de conceitos de trajeto temático, em momentos de corpus distintos, revelados na materialidade dos textos. Portanto, o analista pode, no seu trajeto de leitura, trabalhar com um tema a ser descoberto na própria análise. Outro elemento importante para o arquivo sobre um determinado tema são as abordagens sincrônica (dizer atual e simultâneo) e diacrônica (o já dito em momentos diferentes).

Um nível de abordagem metodológico do objeto de pesquisa é a realização simultânea de um recorte sincrônico e diacrônico na construção do corpus da análise de um discurso jornalístico. Moura, D. (2009) aponta que esse recorte, como instaurador do espaço do acontecimento, deve, na análise, considerar outros elementos além do texto jornalístico na definição do corpus. A pesquisadora entende o sincrônico como “o dizer atual e simultâneo” que deve se encontrar com o diacrônico, “o dizer já dito em momentos diferentes”, instaurando o espaço do acontecimento. Esse espaço acontecimental deve ser compreendido como fatos que pedem sentido, sentido esse que, para Moura, D. (2001, p. 166), “é histórico, exprime-se perante a proximidade ou distância de séries discursivas distintas e que é uma enunciação que marca o exercício do poder simbólico”.

Na constituição do corpus de objetos discursivos, Moura, D. (2009, p. 65) propõe que o analista considere não somente os textos jornalísticos, mas inclua também “uma série de outros discursos que se imbriquem, esteja ciente ou não o analista, no contexto, mais próximo ou mais distante, no qual se apresenta o discurso jornalístico”. Esses outros objetos discursivos podem ser tanto textos impressos como de outros formatos e que podem informar sobre um tema, tais como gêneros literários41, produtos culturais,42 iconografia43, textos jurídicos44 e mídia digital45.

Dessa forma, diversos materiais que remetam ao tema, tanto textos jornalísticos (nos seus diversos formatos) como tratados internacionais, documentos relacionados ao meio ambiente, gêneros literários, entre outros, poderão ser inseridos nesta pesquisa. Esses diversos

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Gêneros literários incluem romances, contos, crônicas, fábulas, poemas, literatura alternativa (cordel, fanzines etc.), entre outros.

42 Moura, D. (2009, p. 66) descreve esses elementos como músicas, cantigas tradicionais, folclore, cinema,

cultura popular, teatro, publicidade e propaganda, revistas em quadrinhos e outros.

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A iconografia inclui elementos como fotografia, grafite, artes plásticas, design etc.

44 Consideram-se textos jurídicos as legislações, normas, acordos, tratados e outras peças jurídicas.

45 A mídia digital é definida como as páginas web, blogs, chats, fóruns, twitters, jogos eletrônicos, espaços de

interatividade no ciberespaço, realidade virtual, textos em mídia digital, produção imagética em arte eletrônica, filmes e outros produtos em formato digital (MOURA, D., 2009, p. 66).

elementos constituirão essa malha discursiva a ser descrita e analisada, relacionada com os enunciados presentes no material jornalístico, com uma teia diacrônica dos ditos em outros lugares e em outros momentos.

A análise de textos de outros gêneros e de outros domínios estabelece a análise diacrônica, de “perceber os enunciados em momentos diferentes”, estabelecendo uma rede discursiva do tema selecionado. Isso, segundo Moura, D. (2009), leva à identificação do interdiscurso, dos ditos anteriores esquecidos. Esses ditos podem ser resgatados na memória discursiva pelo analista ao construir um corpus determinado, em um período de tempo e de escopo de objetos discursivos apontados anteriormente. No entanto, conforme Moura, D. (2009), essa coleta não é infinita e pode ser pinçada “por meio de identificação de regularidades discursivas, as formações discursivas presentes” (p. 66). É papel do analista estabelecer o que a pesquisadora chama de “fio condutor, em determinado período histórico e numa lista de anteparos físicos [...], o analista passará à leitura destes materiais perseguindo o ‘novo no interior da repetição’” (p. 66). Para Guilhaumou e Maldidier (2010, p. 165), a análise de um trajeto temático remete

[...] ao conhecimento de tradições retóricas, de forma de escrita, de usos da linguagem, mas, sobretudo, interessa-se pelo novo no interior da repetição. Esse tipo de análise não se restringe aos limites da escrita, de um gênero, de uma série: ela reconstrói os caminhos daquilo que produz o acontecimento da linguagem.

Para Moura, D. (2009, p. 72), o analista do discurso deve estar ciente da dispersão e da errância dos sentidos, isto é, dos desvios de sentidos que os ditos podem ganhar no presente, o dito feito novo. Portanto, as notícias podem estabelecer uma rede de sentidos, pois “toda notícia é um acontecimento discursivo que reclama sentidos”. Portanto, o analista do discurso jornalístico deve ter alguns cuidados:

Nós analistas de discursos devemos nos privar de concluir procedimentos de análise de discurso e de apontar para uma leitura que seja estática. Ao contrário, devemos admitir a presença inquietante e histórica do desvio de sentidos, ou seja, da errância de sentidos [...]. O final de cada processo analítico, aqui propomos, deve ser considerado como um final-provisório, pleno de sentidos localizados neste circuito diacronia-sincronia, mas, também, pleno de sentidos latentes e não explicitados – o não-dito que preenche e torna pujante a incompletude mergulhada na espessura semântica do discurso. (MOURA, D., 2009, p. 72)

O nosso desafio neste trabalho é compor o corpus da análise a partir de um arquivo sobre as questões ambientais. Percebemos também ser mais produtivo investigar o tema que

percorreu as discussões políticas desde a primeira conferência internacional da ONU de 1972: a questão do desenvolvimento e do meio ambiente. Pretendemos apreender a irrupção desse novo acontecimento discursivo e suas condições de emergência em um dado período histórico, para investigar, mapear os ditos nas diferentes cenas enunciativas, multiplicando as relações, levantando a memória dos enunciados sobre esta temática e os seus múltiplos sentidos. De forma alguma pretendemos fazer neste trabalho a descrição total desse arquivo, uma tarefa impossível e inviável; buscamos analisar este tema na sua materialidade repetível em um determinado período histórico.