• Nenhum resultado encontrado

2.2 Jornalismo como produção de conhecimento

2.2.3 Jornalismo: conhecimento singular

Interessa-nos aqui compreender a notícia como forma social de conhecimento centrada na categoria filosófica do singular na representação dos acontecimentos. Esta discussão é importante para levantarmos aspectos da relação entre notícia e acontecimento, que irão nos ajudar na compreensão de nosso objeto de estudo. Genro Filho (2012) aborda a notícia na dimensão da dialética e do materialismo histórico para apreender as potencialidades do jornalismo no capitalismo, revisando as perspectivas funcionalistas, a teoria geral dos

sistemas e a Escola de Frankfurt, para explicar aspectos noticiosos (notícia, reportagem, lide e pirâmide invertida). O objetivo do pesquisador foi o de conceber o jornalismo na sua relação com o conhecimento que produz, em suas ambiguidades e contradições, e na relação entre dominação e luta de classes. Vale lembrar que a contribuição de Genro Filho se inscreve em uma perspectiva marxista.

A dialética materialista é fundamental nos estudos de Genro Filho sobre o jornalismo, pois é a partir da perspectiva da práxis da construção histórica da realidade, a partir do filósofo marxista Georg Lukács, que é construída sua discussão. No entanto, o autor vai um pouco além, pois não vê o jornalismo como mero produto ideológico de classes, e sim como uma narrativa singular sobre os acontecimentos.

Genro Filho (2012) critica a perspectiva de Park, que vê a notícia como o anúncio de um acontecimento e como uma forma de integração entre os indivíduos na reprodução das relações sociais. Ao contrário de Park, ele entende o jornalismo como reconstituição/mediação do real sob a ótica da singularidade do fato, produzindo conhecimento no processo de apropriação coletiva da realidade da qual ele mesmo faz parte, sendo igualmente atravessado pelas contradições do meio social. A crítica desse autor a Park está centrada na visão da notícia como função social, no sentido da manutenção de uma ordem do mundo social já estruturado.

Para compreender a notícia, Genro Filho (2012) lança mão das categorias lógicas de Lukács (singular, particular e universal) para fornecer elementos de uma explicação do jornalismo:

Os conceitos de singular, particular e universal expressam dimensões reais da objetividade e, por isso, representam conexões lógicas fundamentais do pensamento, capazes de dar conta, igualmente, de modalidades históricas doconhecimento segundo as mediações que estabelecem entre si e as suas formas predominantes de cristalização. (p. 167)

Essas três categorias são momentos distintos, complementares e inter-relacionados, constituindo a realidade objetiva e formando o concreto. No seu estudo sobre a arte, Lukács (apud GENRO FILHO, 2012, p. 167) entende que essa, em sua forma (particular) de apreender, de analisar e refletir sobre a realidade, difere da ciência (universal), pois busca desvendar a totalidade do objeto. E se no universal estão contidos e dissolvidos os vários fenômenos singulares e particulares que o constituem, na informação jornalística, segundo Genro Filho (2012), está a cristalização do singular, pois este é a matéria-prima do jornalismo. O critério do jornalismo, para o autor, é uma informação que

[...] está indissoluvelmente ligada à reprodução de um evento pelo ângulo de sua singularidade. Mas o conteúdo da informação vai estar associado (contraditoriamente) à particularidade e à universalidade que nele se propõe. Ou melhor, que são delineadas ou insinuadas pela subjetividade do jornalista. O singular, então, é a forma do jornalismo, a estrutura interna através da qual se cristaliza a significação trazida pelo particular e o universal que foram superados. O particular e o universal são negados em sua preponderância ou autonomia e mantidos como o horizonte do conteúdo. (GENRO FILHO, 2012, p. 159)

Mas apesar de entender o jornalismo como uma nova forma de conhecimento que se cristaliza no singular, no sentido que é atribuído por Lukács, Genro Filho (2012) considera que ele abrange também os movimentos e a convergência do particular e do universal. Assim, apesar de o jornalismo realizar o singular na sua práxis, a informação jornalística não perde para o conhecimento formulado pela ciência, e essas categorias interpenetram-se. Em síntese, nessa perspectiva, o universal contém em si o particular e o singular, da mesma forma que o particular carrega em si o singular e o universal, e vice-versa. O jornalismo, na sua dimensão imediatista, produz o conhecimento cotidiano centrado no singular, enquanto a ciência, na sua busca pelo conhecimento, procura estabelecer o universal. Vale dizer que, apesar de diferentes, são formas complementares para se compreender o “real”.

Na notícia, o que melhor representa essa síntese singular é a técnica do lide25, que o autor entende que não deveria vir necessariamente nos dois primeiros parágrafos da notícia, como na estrutura narrativa da pirâmide invertida26. A inversão da pirâmide, com sua base voltada para a terra, possibilitaria à notícia passar do singular (lide) para o particular. Já a notícia, como forma de conhecimento, se realizaria na sua singularidade, na sua imediaticidade e prática, considerando os acontecimentos de maneira isolada, específica e singularizada (GENRO FILHO, 2012).

A pirâmide está de fato invertida, pois, se a olharmos, veremos que ela está de pé, o que permite perceber elementos essenciais do jornalismo. Segundo Meditsch (1992, p. 33), ao se elaborar a notícia, o jornalista caminha do singular para o particular, e estando a pirâmide com sua base no chão, o cume fica voltado para cima, e sua ponta é exatamente o lide, “o ponto máximo da singularidade”. Na narrativa da notícia, no seu início (o lide) estão os

25

O lide é a parte da matéria que apresenta as clássicas perguntas: o que, quem, quando, onde, como e por quê? Corresponde à abertura do texto e, por isso, possui fundamental importância, pois deve trazer as principais informações, além de instigar o leitor a prosseguir na leitura. Segundo Rabaça e Barbosa (2001), o lide é a abertura do texto jornalístico, na qual se apresenta suscintamente o assunto ou se destaca o essencial, o clímax da história.

26 O termo pirâmide invertida diz respeito à disposição das informações no texto jornalístico em uma ordem

aspectos singulares de um fenômeno que o difere de todos os outros, instaurando-se o novo, a diferença. Após a abertura, outros elementos são trazidos para localizar o fato narrado no terreno do particular. Por fim, essa formulação noticiosa expande-se para uma conjuntura, trazendo elementos para a compreensão das condições de sua ocorrência. Mas e o universal, onde está? Meditsch (1992) responde que o universal não está na narrativa em si, e sim nos princípios do jornalista e nos pressupostos mais gerais que guiam a sua narrativa e a produção noticiosa. O universal, no jornalismo, pode ser percebido subjacentemente à apreensão feita a respeito do fato.

A preocupação do autor aqui é perceber, a partir das contribuições das diversas áreas do saber, o que o jornalismo tem de único e singular em relação às outras formas de conhecimento. Essa perspectiva, como bem define Ponte (2005), não é a busca de um essencialismo no jornalismo, e sim de conseguir ver o que o jornalismo tem de específico na construção da notícia com relação à ciência, já que operam em campos lógicos diferentes.

E é exatamente por operarem em campos diferentes de explicação da realidade, que buscar os elementos da fragilidade e da força da argumentação do jornalismo pode possibilitar compreender como ele produz conhecimento. Para Meditsch (1997, p. 7), a fragilidade do jornalismo está no seu método analítico e demonstrativo, “uma vez que não pode descolar-se de noções pré-teóricas para representar a realidade”, e sua força está no fato de que essas mesmas noções “orientam o princípio da realidade do seu público, nele incluídos cientistas e filósofos quando retornam à vida cotidiana vindos dos seus campos finitos de significação”.

Charaudeau (2010) descreve que a diferença entre jornalismo e ciência está no processo de demonstração da prova para o “auditório”, e mesmo presente em ambos, a prova é apresentada de forma diferente em cada um deles. No discurso científico, a prova é apresentada dentro de um método de raciocínio baseado na força do argumento, em detrimento de a quem o discurso se destina. Por outro lado, o discurso jornalístico apresenta a prova como decorrência da descrição e da reconstituição verossímil para o público leitor.

Para Charaudeau (2010), no discurso jornalístico iremos encontrar dois tipos de saberes: “saber de conhecimento” e o “saber de crença”. Esse analista do discurso explica que o primeiro pode ser identificado no que é percebido e descrito (existencial, de acontecimento e explicativo), enquanto o segundo é a avaliação da fundamentação de algo e da apreciação dos seus efeitos. Os saberes de conhecimento, diz ele, privilegiam a categoria de acontecimentos no discurso jornalístico, na busca da verossimilhança pela descrição em fazer ver ou imaginar o ocorrido, focando atenção no processo da própria ação ou da declaração, na identidade dos atores envolvidos ou nas circunstâncias materiais. Ao mesmo tempo, vamos

encontrar também as categorias explicativas que apresentam os argumentos racionais para tornar o fato inteligível ao leitor. Com o objetivo de demonstrar as estratégias de verificação, o jornalismo, conforme Charaudeau (2010), apresenta uma série de provas, como um grande número de fontes e testemunhos, dados técnicos e científicos, imagens e explicações de especialistas. Para Moraes (2013), essa é uma forma de o jornalismo legitimar o seu discurso em face de outros discursos correntes na sociedade.

Se o “saber de conhecimento” demonstra a busca da legitimação do discurso jornalístico, o “saber de crença” buscar criar um “efeito de verdade” (CHARAUDEAU, 2010). Este último é um tipo de saber cuja verdade encontra-se no próprio sujeito, em sua singularidade, portanto, não é verificável, como ocorre com o conhecimento teórico. É um saber orientado do homem para o mundo e que produz tipos de saberes ligados a uma revelação e a uma consequente adesão a determinadas ideologias, doutrinas e dogmas, bem como a tipos de saberes reveladores de opinião, de uma apropriação de determinadas ideias e valores que, colocados em um campo de discussão, levam à formação da opinião (comum/relativa/coletiva). Para Charaudeau (2010, p. 45), são

[…] os saberes que resultam da atividade humana quando esta se aplica a comentar o mundo, isto é, a fazer com que o mundo não mais exista por si mesmo, mas sim através do olhar subjetivo que o sujeito lança sobre ele. Uma tentativa não mais de inteligibilidade do mundo, mas de avaliação quando à sua legitimidade, e de apreciação quanto ao seu efeito sobre o homem e suas regras de vida.

Aplicadas a uma enunciação informativa, as crenças serviriam para gerar a cumplicidade do outro – no caso, o receptor –, a partir do compartilhamento de julgamentos sobre o mundo. Segundo Charaudeau (2010), esse expediente tem um sentido de interpelação do sujeito, gerando uma reação. Ao acionar seus “mapas de significado”, ou suas representações, o destinatário da mensagem busca, consciente ou inconscientemente, a resposta consensual de que a censura não é normal, não combina com o padrão de um estado democrático. Logo, a iniciativa tende a ser rejeitada a priori. Vinculado à convicção, e não à evidência, explica o autor, o saber de crença acaba por produzir um “efeito de verdade”, que é o oposto do “valor de verdade”. Logo, não se trata da busca da verdade – o que em tese seria o alvo do jornalismo objetivo, paradigma que impera desde o século XIX –, e sim a tentativa de “fazer com que o outro dê sua adesão a seu universo de pensamento e de verdade” (CHARAUDEAU, 2010, p. 49).

Esses tipos de saberes constituintes do jornalismo, em sua busca por legitimação e criação de um “efeito de verdade”, apontam para um jornalismo que contribui para a construção de um sentido e uma “verdade” sobre o mundo. A discussão sobre a importância, ou a contribuição, do jornalismo para a compreensão do mundo e dos seus acontecimentos, e a forma como os jornalistas constituem uma comunidade e criam uma interpretação deste mesmo mundo serão discutidos no Capítulo 3.

3 O ACONTECIMENTO NA ERA DA MIDIATIZAÇÃO

O monopólio da história estava começando a pertencer às mass media. Daquele momento em diante, são elas que o detém. Nas nossas sociedades contemporâneas, é através delas e unicamente através delas que o acontecimento nos atinge, e não tem como evitar. (NORA, 1972 apud DOSSE, 2013, p. 260)

O acontecimento é um tema importante em diversas áreas do conhecimento na atualidade. No âmbito da comunicação e do jornalismo, estudiosos têm buscado refletir a relação desses campos com o acontecimento, entre eles, Benetti (2010), Dosse (2013), França e Oliveira (2012), Leal, Antunes e Elton (2011), Marocco, Berger e Henn, (2012), Quéré (2005) e Vogel, Meditsch e Silva, N. (2013).

Iniciaremos esta discussão fazendo uma breve genealogia do acontecimento, para refletirmos sobre como a mídia faz parte desse fenômeno e de que forma o jornalismo contribui para a construção dos acontecimentos na atualidade. Junto com essa discussão, traremos a noção de “comunidade interpretativa” para mostrar como ela possibilita apontar elementos sobre como o jornalismo apresenta sua percepção do presente, por meio das práticas jornalísticas, no processo da narrativa do acontecimento. Toda essa discussão sobre acontecimento, jornalismo e comunidade interpretativa possibilita-nos compreender as contribuições do jornalismo na constituição do presente.