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COMO LUGAR DE OPORTUNIDADES

Capítulo 7 O Jardim de infância como lugar de oportunidades

7.2.1 Actividade livre e actividade orientada

A ambiguidade de que a actividade se reveste transporta-nos ainda para uma dimensão dicotómica das actividades que tem lugar de destaque nas práticas do quotidiano do jardim de infância.

A análise de conteúdo das entrevistas revela que as educadoras, na sua maioria, estabelecem na rotina das actividades uma dicotomia entre actividades orientadas e actividades livres. Naturalmente que ambas as actividades têm um suporte teórico em que se fundamentam. Assim a actividade livre, auto-iniciada e auto-dirigida obriga a que a educadora respeite as características específicas do desenvolvimento da criança, não a confrontando com exigências prematuras, aceitando as suas iniciativas e sugestões. Esta atitude tem como pano de fundo princípios básicos derivados da "teoria sócio-maturacionista" (Peters, Neisworth e Yawkey, 1985 in Gaspar,1990), do que são representantes Freud, Erikson, Gesell e Carl Rogers (ibidem, p. 78), a qual dá especial importância ao desenvolvimento sóco-emocional e psicossocial. Mas estes momentos de actividade livre são também potencial contributo para o desenvolvimento cognitivo.

Este domínio é enfatizado pela teoria cognitivo-desenvolvimentista baseada na teoria de Jean Piaget, referência comum de toda as educadoras entrevistadas. Em linhas gerais é sabido que nos conceitos fundamentais daquela teoria o desenvolvimento intelectual é explicado por quatro factores a saber: a maturação, a experiência, a transmissão e interacção sociais e finalmente o processo de equilibração (Piaget, 1977). Estes factores são, quer de ordem interna quer de ordem externa e estão intrinsecamente ligados e dependentes uns dos outros. São eles que no seu conjunto constituem o "corpus" de suporte donde derivam os princípios básicos orientadores da elaboração de um modelo curricular para a educação de infância. O princípio fundamental desta teoria refere-se à importância atribuída ao contexto e à oportunidade dada à criança de manipular e

interagir com o mundo, de objectos e pessoas, como pano de fundo para o desenvolvimento cognitivo enfatizado por esta teoria, que põe a tónica do desenvolvimento primordialmente na acção levada a cabo pela criança na sua relação com os objectos. A actividade livre é o momento privilegiado para o desenvolvimento dos conhecimentos, mas é-o também para o desenvolvimento sócio emocional pela oportunidade dada à livre escolha, à tomada de decisões e à assunção por parte da criança de responsabilidade independência e competência. É no hibridismo resultante destas duas teorias que as educadoras orientam a sua acção educativa.

Embora a criança tenha algum tempo dedicado à actividade livre, a verdade é que há também um outro tempo que grande parte das educadoras reservam para as actividades orientadas, que são aquelas "que correspondem àquilo que eu projectei fazer ao longo do ano" (ed. E): dizem respeito à consecução de "objectivos que se pretendem atingir, e faz-se algumas coisas em concreto, orientadas para atingir esses objectivos" (ed., B). Com esta intenção são pré- programadas e pré-preparados actividades e objectos. As crianças serão "obrigadas entre aspas", no dizer das educadoras (B/C), a fazer a tarefa. Normalmente estas tarefas podem ter como objectivo o desenvolvimento cognitivo - ex.: "dará cor amarela" {ed. C) - são feitas em grupo e revestem um aspecto lúdico, "ê tudo feito a brincar" (ed. A/B/C/D/E). Neste contexto estamos perante a instrumentalização do jogo ou da brincadeira, num artificialismo em que, segundo Freinet, "não é o jogo que adapta e liberta mas sim um jogo artificial, preparado'de antemão

pelo educador" (Palácios, 1988, p. 118). Segundo Palácios, Freinet insistia em mostrar a diferença entre a escola atractiva e a escola da vida, advertindo para a perigosidade dos "jogos postos em circulação" "pelos métodos activos artificias", "pois são uma estreita maneira de encarar a necessidade infantil de exploração" (ibidem). Todavia, se o principal objectivo tiver especificamente a intenção ou a preocupação com conteúdos ou pré requisitos académicos (iniciação à escrita e matemática), a actividade é individualizada, e as crianças, segundo a educadora B, têm que "cumprir

uma ordem, porque a (minha) preocupação é uma escola primária que se avizinha (...). Esta é a nossa realidade (...) deve ser terrível estar uma manhã inteira ali sentados a fazer o que a professora manda". Neste pressuposto as crianças devem habituar-se a adquirir determinados comportamentos, mesmo que para isso lhe antecipemos o "sofrimento". A criança, perante este tipo de actividades, mesmo que envoltas em ambiente lúdico, vê-se confrontada com a necessidade de realizar uma tarefa que não escolheu e para a qual nem sequer encontra sentido. Em casos como este as crianças aprendem, através do currículo oculto referido estritamente "às condições e às rotinas da vida escolar que regularmente geram aprendizagens desconhecidas", a obedecer "àqueles que detêm o poder", "a satisfazer as expectativas" da educadora, para "lhe obter a estima e os elogios ou qualquer outra forma de recompensa" (Eggleston, 1977 in Perrenoud 1995, p. 58), que vai desde poder ir "para as actividades livres" "ou ir para o recreio". Estas actividades orientadas assentam numa base teórica de acordo com a teoria behaviorista, cuja centralidade recai sobre o desenvolvimento do comportamento determinado quase exclusivamente pela influência do ambiente • (Gaspar, 1990). Esta teoria enfatiza os processos de aprendizagem conducentes "à expansão do repertório comportamental o que, em termos behavioristas, equivale ao desenvolvimento" (ibidem). Nesta perspectiva é preciso criar condições de aprendizagens que permitam a simultânea manutenção e generalização e aquisição de novos comportamentos. A montante ficam alguns comportamentos complexos que as crianças aprendem por imitação do comportamento de modelos - educadores ou colegas - desde que se identifique com o modelo e deseje obter o reforço dado. Os objectivos traçados na base desta teoria respondem em primeira mão às expectativas da sociedade em geral, e dos pais em particular, que acabam por pressionar as educadoras. Os interesses das crianças são praticamente ignorados. As actividades são estruturadas e previamente estabelecidas pela educadora. Embora este modelo não constitua o núcleo duro da organização das experiências dos jardins de infância que fazem parte da nossa amostra, ele

faz-se representar pelas actividades orientadas levadas a cabo, uma, duas ou três vezes por dia, segundo as educadoras entrevistadas. "A tarefinha é uma actividade orientada, é a minha proposta, que eu dou, eles têm que responder àquele pedido. Todos os dias há uma tarefinha, é obrigatório (...) têm uma capinha para a tarefinha" (ed. A). Neste contexto, caracterizado por um hibridismo de modelos, confunde-se o trabalho e o jogo; mascara-se o trabalho com o jogo não se sabendo muito bem definir as suas fronteiras. Parece-nos, então oportuno, e pertinente para os contornos do ofício de criança e do ofício de aluno, perceber a diferença entre estes dois meios de aprendizagem.

A grande diferença da acção educativa não está nas teorias de base mas na forma como cada uma das educadoras operacionaliza estas teorias e que tem a ver em nossa opinião com os processos de "objectivação" e "ancoragem" que normalmente ocorrem quando o conhecimento científico se banaliza.

Segundo Moscovici (1979) "a objectivação conduz como se sabe, a tornar real um esquema conceptual, a duplicar uma imagem numa contrapartida material, resultado que tem um efeito cognitivo: o stock de índices e de significantes que uma pessoa recebe, emite e mistura no ciclo das infra-comunicações. podem ser superabundantes" (p. 107-108 ). Numa tentativa de "reduzir o desvio entre as palavras que circulam e os objectos que as acompanham" (ibidem, p. 108), os "signos linguísticos", agarram-se às "estruturas materiais", numa tentativa de juntar a palavra à coisa. Objectivar será, então, transformar um excesso de significados em materializações, que ao naturalizarem-se assumem um símbolo real e, ao classificarem-se conferem à realidade um ar simbólico.

A ancoragem, segundo o mesmo autor, "designa a inserção de uma ciência na hierarquia dos valores e entre as operações realizadas pela sociedade" (ibidem, p. 171), isto é, "pelo processo de ancoragem, a sociedade muda o objecto social num instrumento que ela pode dispor, e

este objecto é tomado numa escala de referências nas relações sociais existentes" (ibidem, p. 171).