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O SÉCULO XX SÉCULO DAS INSTITUIÇÕES

2.2 Institucionalização/educação

Em boa verdade, numa sociedade como a nossa, na qual o domínio do social cada vez mais se intercala entre o privado e o público, só pode ser utópico ou profético o facto de as crianças poderem permanecer no conforto da esfera privada. Todavia, entendemos que Hannah Arendt (1991) fala de uma época específica (década de 60) de valores irrecuperáveis, que a sociedade capitalista destruiu, sobrepondo as suas exigências às necessidades das crianças.

Não podemos esquecer que foi principalmente a emancipação da mulher, no seu direito de aceder à vida pública, ao desempenho de" funções necessárias ao processo vital da sociedade" (Arendt, 1991, p. 241)13que

acabou por finalmente "tocar" as crianças, que deste modo foram obrigadas a expor-se "à luz da existência pública" (ibidem p. 240).

Assim a sociedade moderna engendrou mais um grupo que necessariamente tem de integrar na sua própria cultura - a infância (3 a 6 anos). Lamentavelmente, para essa acção que se afigura tão natural, pouco pode contar com a disponibilidade dos pais e muito menos com a da família alargada como acontecia num passado recente. A esfera familiar é o lugar onde nós (e tantos como nós) fomos educados até à idade de frequentar "a

Escola Primária". Não tivemos "Jardim Escola" mas tivemos "Escola no Jardim", ou melhor, nos pinhais, nas terras de cultivo, na rua, etc., onde aprendemos e adquirimos muitos conhecimentos (Vieira, 1998, p. 25). Tivemos sem dúvida tempo, espaço e mestres (pais, irmãos, avós, tios, vizinhos...), "toda uma aldeia" que nos ajudaram a realizar experiências, que nos contaram histórias; verdadeiras e de encantar, que contribuíram para o desenvolvimento das capacidades com que interrogamos a realidade, os fenómenos do mundo que nos rodeava, com que resolvíamos os nossos pequenos problemas descobrindo soluções....Todo este imenso trabalho, que não necessitava de férias, será levado a cabo pela educação moderna que ao construir um mundo próprio para as crianças destruiu algumas das condições necessárias ao seu desenvolvimento: liberdade, privacidade e espontaneidade.

Por mais desastroso que pareça ser este desrespeito pelas condições do crescimento vital, tudo acontece involuntariamente, mesmo porque todos os esforços feitos pela sociedade, hoje como ontem, vão no sentido de proporcionar o melhor à criança, particularmente o seu bem estar. Em conformidade parece fazer parte da filosofia da educação em geral, e particularmente do domínio da educação de infância, que cada geração de pais, educadores e políticos discutam com "paixão" e convicção ideias, filosofias, métodos e currículos adequados às diferentes "etapas" da educação estabelecidas. No entanto, este esforço nunca chega a atingir o seu objectivo mantendo deste modo o desequilíbrio que se constitui no "motor" que alimenta a constante busca no campo das filosofias e ideologias educacionais imprimindo-lhe um movimento pendular, adaptando e implementando determinada corrente educativa "cuja importância através do tempo e do espaço, cresce, se estabiliza, diminui ou desaparece" (Palácios, 1988, p. 30) conforme a capacidade de resposta aos problemas emergentes de uma lógica de interesses que desde sempre a organização da educação pôs em jogo. Estamos a falar de interesses e necessidades da sociedade por um lado, e por outro, dos interesses e necessidades das crianças. O que tem acontecido é que os interesses e necessidades destas têm sido

submetidos às exigências da sociedade. Este é o lugar, a fronteira entre a educação e a instrução mas que, simultaneamente pela sua dependência, esbatidas essas fronteiras, contribuiu para o acentuar da polissemia do conceito de educação.

Apesar de toda esta complexidade, de todo este imbricado dos domínios, privado público e social ,em que a educação se encontra submersa, é a esta que cabe á tarefa de "integrar (crianças) e jovens, propondo-lhes deter uma posição, um papel a representar num conjunto determinado, aquele do mundo da sua cultura; (...) torná-los autónomos, quer dizer, actores na sua própria cultura" (Boutinet, 1990, p. 196).

Neste contexto a educação é uma das actividades mais necessárias e elementares da "sociedade humana, a qual nunca mais será tal como é, mas se renova sem cessar pela nascença, pela chegada dos novos seres humanos" (Arendt, 1991, p. 238)14. "Esta chegada" deve ser acompanhada

da responsabilidade intrínseca a esta atitude de colocar filhos no mundo. Logo os pais devem assumir a responsabilidade, não só da vida mas também do desenvolvimento e "da continuidade do mundo" (ibidem). Segundo Arendt esta responsabilização vai no duplo sentido de proteger a criança do mundo, mas também proteger o mundo dos vindouros que, desprovidos desta responsabilização, contribuem para a sua destruição. Pensamos que hoje há, genericamente, uma fuga à responsabilização dos pais na educação dos filhos, transferindo-a para as instituições que na nossa sociedade se ocupam em educar "os vindouros". João dos Santos (1982) traduz esta ideia dizendo que os pais de hoje perderam a espontaneidade para educar. Torna-se necessário "encontrar novas formas de envolver, criar e educar as crianças" (in Barros, 1999, p. 48). Para isso torna-se necessário o esforço conjunto, quer dos pais que por si só se sentem incapazes de resolver a tarefa de educar os filhos; quer da escola que por seu turno nem sempre possui "recursos para enfrentar sozinha este desafio de construir um "novo mundo" para as crianças, mas constitui um recurso social básico que

formará parte de uma rede mais ampla capaz de ir avançando em relação a melhores condições infantis" (Zabalza, 1996, p. 20). Todavia a escola e o jardim de infância são as primeiras instituições que se intercalam entre o domínio privado que é a família e o domínio público. Deste modo a apresentação do mundo, a "iniciação" da criança, que é imposta pelo público e não pelo privado, é feita pela mão do educador que tem a responsabilidade de assegurar a "liberdade do desenvolvimento das suas qualidades e dos seus dons característicos" (ibidem, p. 245) que constituem na sua essência a qualidade única que distingue os seres humanos - a individualização.

Podemos então questionar qual será o papel destas instituições na educação: "inculcar a arte de viver" ou transmitir "o que é o mundo" (ibidem, p. 250).

Perante as mudanças constantes, as novas exigências das sociedades modernas cabe à escola fazer deslizar o seu "fiel" de um modelo bancário (Freire, 1992) para um modelo democrático assente no reconhecimento dos direitos das crianças enquanto sujeitos detentores de saberes e experiências capaz de interagir criticamente com o meio que as rodeia para se conscientizarem do que é o mundo.

A escola enquanto espaço educativo tem feito cedências do seu ideal de educação à instrução, à transmissão do saber feito, como resposta ao progresso e ao acesso às comodidades daí emergentes, a que todos supostamente têm direito de aceder. Mas nem por isso "a marcha do mundo se tem tornado mais harmoniosa ou as pessoas de convívio mais fácil" (Eric, 1996, p. 57).

Cabe agora à escola responder ao novo desafio proposto pela emergência dos direitos da criança, alargando os seus espaços "a uma das mais interessantes propostas reabilitadoras da missão cívica da escola pública" (Sarmento, 2000, p. 137).

A lógica dos direitos da criança que Sarmento (2000, p. 138) apresenta em forma de síntese, desde o direito cultural ao direito político passando pelo direito pessoal, são no seu conjunto os pressupostos de um modelo escolar desenhado como "um espaço de intercâmbio, recepção e reconstrução de saberes gerados na diversidade cultural e na interrogação crítica do mundo" Estes pressupostos, embora inovadores, são também de algum modo herdeiros das correntes pedagógicas, dos pensamentos e filosofias da "Plêiade" de pedagogos com que iniciamos este capítulo.