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LUGARES COMUNS NA PROFISSÃO DE EDUCADORA DE INFÂNCIA

Capítulo 5 Lugares comuns na profissão de Educadora de

infância

Numa primeira triagem da análise das entrevistas constatámos a existência de "laços comuns": comunhão de ideias, práticas e teorias partilhadas pelas educadoras e explicitadas na sua retórica enquanto "agente da sua própria cegueira se não mesmo daquilo que (ele) quer aceitar..." (Meyer 1991 in Matos 1999, p. 116).

É este conjunto de ideias, de práticas e teorias partilhadas, não só por educadoras, mas pela participação dos intervenientes sociais essencial à sua "sobrevivência" (ibidem), que chamamos "lugares comuns"32. É nos

"lugares comuns" que encontramos a "chave" cuja função hermenêutica33

serve de mediação na construção do sentido desses "lugares comuns". Assim partindo da definição de "lugares comuns" como "importantes instâncias de produção e ocultação e por conseguinte, importantes instâncias de produção de ilusão partilhadas" (Correia 1999, p. 3), procedemos, do ponto de vista hermenêutico, à selecção de alguns "laços comuns" na perspectiva dos nossos interesses, como contributo para a simultânea "estruturação de uma comunidade cognitiva" e "produção e reprodução de uma comunidade ilusória" (ibidem) que sustentam e traduzem ideias interiorizadas e profissionalmente partilhadas pelas educadoras. Como assinala Correia, o conjunto de ideias e de práticas concorrem para a construção de um "principio de inteligibilidade" estruturado em torno de evidências consideradas inquestionáveis; ou de uma hierarquia de valores que não necessita de ser explicitado e à qual nos referimos para explicarmos o que nos acontece e o que fazemos (ibidem). Em síntese, todo um conjunto de figuras imprescindíveis à formação de um senso comum que pode ser

Lugares comuns são uma figura heurística, por nós utilizada, desenvolvida a partir da obra de Correia, 1999- "Os lugares comuns" na formação de professores, edições ASA, Porto.

33 Hermenêutica -etimologicamente quer dizer "levar a mensagem a alguém, atenta a função que

estaria cometida a Hermes, deus grego, ao qual competia difundir entre os mortais as mensagens divinas. (Matos 1999, p. 23)

entendido como "compreendendo um corpo de conhecimentos teóricos mais ou menos articulados usado para explicar por que motivo as coisas são como são e acontecem como acontecem" (Giddens 1996 in Matos 1999, p. 18).

Após a selecção das ideias e das práticas partilhadas pelas educadoras, que de alguma forma o são também pelas famílias e pela sociedade em geral, em torno da educação pré-escolar, reconstituímos três "lugares comuns" que se apresentam "como verdades e racionalidades inquestionáveis" (Correia 1999, p. 5), os quais passaremos a enumerar, para posterior análise.

1o - A educação de infância encerra na sua definição o

desenvolvimento global e harmonioso da criança, legitimado pela ideologia do seu bem-estar numa perspectiva socialízadora que não tem perdido de vista uma preparação para a escola.

2o - A educação de infância é um subsistema da educação que

privilegia os interesses e as necessidades das crianças.

3o - Uma vez que as educadoras partilham os mesmos referenciais

teóricos, torna-se evidente admitir que também partilhem praticas comuns que estão na base da construção do modelo curricular que se adivinha igualmente comum.

5.1 1o "Lugar comum"

A educação de infância encerra na sua definição o desenvolvimento global e harmonioso da criança, legitimado pela ideologia do seu bem-estar numa perspectiva socializadora que não tem perdido de vista uma preparação para a escola

Em torno deste "lugar comum" construi-se um "consenso cognitivo" que traduz a ideia generalizada de que o desenvolvimento se concretiza

pelas e nas aprendizagens que as crianças fazem brincando. As crianças aprendem a brincar e brincam aprendendo sob a supervisão afectuosa das educadoras.

Pela sua complexidade e pela pluralidade de olhares sobre este conhecimento da educação de infância, analisaremos este consenso em dois momentos. Num primeiro momento analisaremos a visão afectiva que transporta a educação pré-escolar para o mundo dos afectos, preocupada com o bem-estar das crianças em todas as suas dimensões (saúde, higiene, conforto, segurança, equilíbrio emocional...). Um mundo onde as educadoras abrem grandes parêntesis para dar às crianças "... muitos beijinhos...", "...um colinho..." e "...muitos miminhos...", numa tentativa de perceber sinais de inquietação, "...de tristeza e de alegria ...", "...saber se estão bem..." e "...fazer de tudo para os ver sorrir...". Considerando, assim, as crianças como um todo - "enfatizando a saúde física e mental bem como a importância de sentimentos, pensamentos e aspectos espirituais" (Bruce. 1991, p. 7), - que não pode nem deve ser espartilhado, as educadoras repudiam a ideia de currículo entendido, ainda, numa perspectiva tradicional onde não há lugar para o papel de gestoras de "afectos". Num segundo momento consideramos a pertinência do desenvolvimento, visto como uma mais valia à "preparação" para a etapa seguinte: isto é, visto como uma mais valia para o sucesso académico, agora mais explícito na concepção de educação de infância como primeira etapa da educação básica, mas desde sempre implícito nos discursos cujo pressuposto é a promoção de igualdades de oportunidades na educação, bem como nos discursos que enfatizaram a função compensatória da educação pré-escolar.

O "consenso cognitivo" formado a partir destas verdades escamoteia quase sempre o sentido de desenvolvimento da espécie humana, enquanto "processo de realização pessoal e social, cujas finalidades não estão pré- inscritas numa racionalidade supra individual e transcendente, mas emergentes da experiência biocultural, trabalhada como um processo produtor de significado" (Matos 1999, p. 46). Esta definição, traduzida na

prática da educação pré-escolar, significa a valorização da brincadeira espontânea como lugar privilegiado de emissão, por parte das crianças, de fortes sinais e mensagens sobre o que eles precisam e poderão vir a necessitar, porque é aí que elas "desempenham os seus mais elevados níveis de função" (Bruce 1991, p. 11); ou, como afirma Piaget e outros, que a aprendizagem é feita na acção directa com e sobre o mundo uma vez que promove a envolvência de todos os sentidos e de todo o sistema motor.

Este "consenso cognitivo" cria a ilusão de que às crianças é dada a liberdade de acção inerente ao desenvolvimento, permitindo que se entreguem à sua actividade que é simultaneamente promotora e catalisadora de todas as experiências de vida que deste modo se transformam em experiências significativas. Ao mesmo tempo que se cria esta ilusão, é ocultada a verdadeira lógica socializadora, dando lugar à transformação dos factos sociais educativos espontâneos em "projecto político, modelo de legitimação e regulação social e em programa de intenção técnica" (Matos 1999, p. 44), sobre os quais repousam actividades e objectivos geradores de outras tantas actividades intencionalmente elaboradas, como resposta às necessidades criadas pelos adultos, visto que continuamos a pensar a criança "a partir do que julgamos saber da nossa própria infância; e esquecemos que o que julgamos saber da nossa infância é apenas aquilo que imaginamos acerca dela" (Ribeiro 2000, p. 5).

Nesta face oculta estão patentes as preocupações de muitos educadores em "habilitar as crianças para o acesso à escola ou para o sucesso académico. Como diz Agostinho Ribeiro, "isso há-de resultar do seu desenvolvimento integral. Pôr o funil ao contrário é isso mesmo: alargar o mais possível o leque de capacidades a desenvolver em cada criança" (ibidem), de forma a não perder de vista a visão holística da criança no reconhecimento de que "o todo é mais do que a soma das partes". Neste contexto o referido "consenso cognitivo", conduz à transformação do conhecimento "indestacável do processo de desenvolvimento da espécie humana" (Matos 1999, p. 43), num reforço instrumental "do processo

ideolizante do poder tecnológico, cuja prática implica uma homogeneização cada vez maior" (ibidem) conducente à ocultação do conhecimento "como aprofundamento da consciência crítica pelo qual o conhecimento se reveja tanto como uma forma de comportamento da espécie humana, portanto já constitutiva da sua actividade concreta (Ergon) como uma forma de acção motivada, produtora de soluções de inteligibilidade dessa mesma acção" (ibidem).

Em termos práticos e contextualizados na educação pré-escolar, isto aponta para a urgência da valorização da brincadeira espontânea - actividade concreta- através da qual as crianças produzem e reproduzem experiências bioculturais, apreendendo conceitos "por meio da actividade que é da sua própria iniciativa" (Weikart e ali 1995, p. 14), ao mesmo tempo que revelam necessidades e expressam os seus desejos constitutivos de uma acção motivada na qual encontra soluções ao dar explicações. Lamentavelmente a educação pré-escolar não tem sido o cenário de oportunidade à vivência exclusiva de experiências bioculturais.

Sentimo-nos na obrigação de abrir um parêntesis para as educadoras que, apesar de tudo, o fazem com toda a mestria. Apoiadas numa reflexibilidade subjacente à sua prática como questionamento do real no pressuposto de que "não há ciência aplicada em ciências humanas" (Pagés 1996 in Matos 1999, p. 33), reabilitam e repõem o valor dos contextos sociais particulares, nomeadamente a experiência biocultural que "incorpora contradições, rupturas e transformações cuja superação (ou não) resulta do próprio sentido que for possível construir sem que antecipadamente (...) se possa assegurar que sentido é possível construir" (ibidem, p. 46). Estas educadoras privilegiam um currículo emergente (cf cap.6) desenhado na teia de muitos projectos que vão emergindo da "fogueira dos acontecimentos" que alimenta o calor e a riqueza do quotidiano do jardim de infância. O projecto e/ou os projectos constituem-se na "projectocracia" recentemente chamada ou reabilitada para o mundo da educação com a finalidade de conciliar o formal e o informal; de jogar as experiências pessoais para o

centro do processo educativo; esbater o divórcio entre a teoria e a prática através da dialéctica que pretende estabelecer entre os espaços educativos sejam eles quais forem, bem como pela "dialogiçidade" inerente e indispensável à educação, entendida como "instrumento de comunicação e de produção cultural" (Freire 1992 in Apple e Nóvoa,1998, p. 84).

5.2 2o "Lugar comum"

A educação pré-escolar é um subsistema da educação que privilegia os interesses e as necessidades das crianças

Este "lugar comum" emerge da importância e da atenção atribuídas por todas as educadoras que connosco colaboraram às necessidades e interesses das crianças como "motores e promotores" de aprendizagens significativas, à qual se junta a partilha de teorias comuns que sublinham a importância das necessidades e dos interesses das crianças. Este "lugar comum" é complementar do anterior na medida em que reforça a ideia da impossibilidade de autonomizar o conhecimento, tal como o definimos anteriormente, "das condições concretas em que participou e participa na construção desse desenvolvimento" (Matos, 1999, p. 43). E que o conhecimento que torna possível o desenvolvimento assenta no pressuposto de que é necessário, e como afirmam algumas educadoras, "ir ao encontro das necessidades das crianças" (ed. B/C/E) ou, melhor ainda, "partir dos interesses e das necessidades das crianças" (ed. A/D) se para tal tivermos "engenho e arte".

Neste contexto construiu-se um "consenso cognitivo" que apresenta os jardins de infância como lugares onde as crianças encontram oportunidade para realizar os seus desejos e satisfazer as necessidades aos quais a família moderna já não consegue dar resposta. Um lugar especificamente inventado para elas, no qual através de actividade própria - brincar e jogar - se realiza a essência do ser humano. Assim se cria a ilusão de que a criança "está no centro de toda a actividade" (ed. D), exercendo o

seu ofício de criança, ocultando a distância que nos separa do "ideal do kindergarten". Apesar disso a criança tem oportunidade de escolher livremente, entre as actividades existentes na sala, aquela na qual deseja envolver-se. Deste modo também se dá lugar ao exercício da liberdade e da autonomia uma vez que se está onde se quer com quem se quer a fazer aquilo que interessa e de que se necessita.

Obviamente que, ao privilegiar-se o ponto de vista do agente, o objecto de conhecimento "são as motivações e as estratégias que ele desenvolve perante as regras existentes" (Matos 1999, p. 36), na instituição e particularmente na sala, enquanto organização social, quer através da sua representação quer na sua produção em situação, o que colide com a lógica de autonomia.

Dada a sua abrangência, este "consenso cognitivo" é imensa incubadora tanto de ilusões como de ocultações. É ocultador das motivações do "sujeito epistémico", encontrando-se este condicionado por um ambiente cada vez mais organizado porque cada vez mais se tem burocratizado. É neste ambiente que se constrói o sujeito social e artificial substancialmente diferente do "sujeito epistémico" (Matos 1999). É neste lugar que à partida os interesses e as necessidades de uns se entrelaçam com os de outros, resultando não raras vezes na renúncia da satisfação ou adiamento de interesses pessoais conduzidos através de uma lógica de negociação emergente da "urgência da acção ditada pela dinâmica da vida" (ibidem, p. 37). É nesta negociação que se tem perdido o verdadeiro sentido da acção espontânea; da verdadeira socialização cujo fiel, pela negociação, se tem deslocado em favor de modelos apriorísticos, onde se negoceiam interesses e necessidades, regras e normas que concorrem para surgimento de uma "clivagem no interior do conceito de prática" (ibidem:39) que põe em diferenciação a "acção moral" e a "acção técnica". O primeiro conceito define-se como "actividade essencial do homem que consiste no exercício 'actual' do pensamento orientado para o 'Bem Soberano' e não para qualquer fim particular" (ibidem, p. 39-46), O segundo conceito remete-nos,

segundo o mesmo autor, para o campo das "artes mecânicas que depende da encomenda dos clientes ou da intenção de lhes ser útil".

Servindo-nos da figura heurística constituída pela analogia desta diferenciação com a educação pré-escolar, somos levados a constatar que o "consenso cognitivo" construído no âmbito dos interesses e das necessidades das crianças cria a ilusão de que, ali, se desenvolvem actividades "independentes de preocupações materiais - "otium" (ócio) (ibidem, p. 37) - e como tal, propiciadora do bem-estar preconizado pelas educadoras. Nesta conformidade admitimos a ocupação da existência de actividades dirigidas, quase sempre pré-programadas pelas educadoras e subsidiárias da ideologia da aquisição de habilidades a desenvolver como pré-requisitos ao sucesso escolar futuro e por conseguinte de pendor mais escolarizante. Tais actividades tomam-se mais visíveis aos olhos de todos aqueles que inventam um conjunto de "conteúdos" que se materializam na procura de soluções para as preocupações que se prendem com a preparação para o futuro imediato - a escola - ou para um futuro mais distante - a vida - e não com o viver a vida no aqui e agora das crianças.

Para levar a cabo estas "boas intenções" recorre-se a actividades que na maioria das vezes estão "dependentes de preocupações materiais (negócio), e, portanto, vinculadas a uma actividade prática de que depende a conservação da vida" (ibidem, p. 37). Estas últimas actividades, ao negarem o ócio, transformam-se no negócio para o qual se recorre à sedução, à manipulação e à motivação exógena veiculadas na relação pedagógica. Ou seja, as educadoras usam com mestria elementos fortes do campo afectivo "para lhes dar a volta" (ed. C/E), "trazê-los ao nosso encontro" (ed. B) no pressuposto de que "o que é preciso é saber falar com as crianças" (ed. A/D).

Por outro lado manifesta-se também, neste contexto, a ocultação da insegurança transmitida pela incapacidade de acreditar naquilo que não se vê, ou melhor, naquilo que não é "contábil" (Lima 1996) aos olhos da educadoras, o que as leva a, independentemente do seu modelo curricular,

procurar estratégias que tornem visíveis os conhecimentos que as crianças supostamente adquiriram através do desenvolvimento integral. Portanto aprendizagens provenientes de processos e de dimensões educativas mais amplas e informais, de "competências" e de "qualificações" de tipo democrático e cívico (Lima 1996, p. 56), contrariamente às aprendizagens inscritas numa lógica de racionalidade a priori, resultantes de uma definição prévia de objectivos, à boa maneira Bloomiana, que são "medidas" pela - relação entre objectivos e resultados obtidos (ibidem, p. 55-57), mas que servem o desígnio da "educação que conta". Assim se torna visível o trabalho realizado pelas educadoras e pelas crianças na educação pré- escolar que até aqui tem sido identificado como a "educação que não conta ou conta menos" (ibidem, p. 55). Manipuladas por esta pressão que se reveste de alguma desvalorização profissional, as educadoras procuram estratégias que tragam visibilidade à educação que "conta menos", tornando-a simultaneamente mensurável a partir da "tarefinha", da "ficha", do "livrinho de colorir", do "trabalho a realizar em função de uma ordem a pedido da educadora".

Em síntese, um instrumento avaliativo que resolva os conflitos entre o brincar e o trabalhar, entre a "acção moral" e a "acção técnica", entre as contradições emergentes da preocupação com a felicidade e o bem^estar das crianças e a utopia que isso representa em termos societais, e a expectativa de um bom desempenho na etapa seguinte, a escola.

5.3 3o "Lugar comum"

As educadoras ao partilharem os mesmos referenciais teóricos pensam e admitem partilharem praticas comuns, anunciadas na sua retórica, que estão na base da construção de um modo de trabalhar, isto é de um modelo curricular.

O "consenso cognitivo" construído a partir deste lugar comum assenta na ideia ilusória da supremacia da prática relativamente à teoria e na banalização e naturalização do conhecimento científico. Esta ideia traduz-se no divórcio existente entre a teoria e a prática assente no pressuposto de que os bons profissionais se reconhecem pela sua boa prática independentemente dos seus conhecimentos teóricos uma vez que estes se tornam pouco práticos na prática, escudados não raras vezes pela verdade de que se trabalha com crianças de "carne e osso" e não com crianças modelo.

Esta ilusão oculta,( por um lado, a pouca importância dada ao

conhecimento teórico e ao investimento feito na procura de teorias imprescindíveis ao trabalho de reflexão que conduz à continua interrogação das práticas pedagógicas no sentido da sua aplicabilidade aos contextos, particularmente às crianças de "carne e osso". Por outro lado oculta o estado de esbatimento em que foram deixadas cair algumas das teorias mais conhecidas das quais apenas ficaram os nomes de seus pensadores, a saber, Froebel, Montessori, Decroly, Jean Piaget. Certamente, não é por acaso que a nomeação e a perpetuação destes pensadores se mantêm. Eles defendem pontos de vista comuns constitutivos de um consenso que representa a base sólida a partir da qual as educadoras trabalham. Mas representa também a vitalidade das teorias inscrita numa hereditariedade de um passado que cada vez mais se torna urgente reabilitar; como sói dizer- se, o novo nasce do velho.

A partilha daquele consenso teórico, como base sólida onde assenta o trabalho das educadoras, cria a ilusão, entre elas, de desenvolver práticas comuns que só o são na retórica. Na prática do quotidiano revelam-se inúmeras diferenças ancoradas na interpretação feita por cada uma das educadoras àquela base sólida, decorrente de todo um processo de objectivação e ancoragem. Deste modo torna-se evidente a diversidade de modelos curriculares contrariamente à existência e vinculação a um modelo único. A esta diversidade está subjacente um conjunto de factores

estruturais, a saber, espaço físico, materiais, rácios, horários e pessoas, que são potencializadores de outros tantos factores processuais que dizem respeito, justamente, às interacções entre as pessoas e entre estas e a organização espacio-temporal e espacio-material. Daí a pertinência, para a construção de um currículo para a infância, que represente o contexto, a criança e o conteúdo/actividade (ver cap. seguinte). É neste imbricado que as educadoras constroem o seu modelo de acção no qual reconhecemos alguns traços que o aproximam a modelos curriculares34 para a educação de

infância: Modelos Reggio Emilia, High-Scope e Movimento da Escola Moderna (MEM). O, conhecimento destes modelos curriculares é contributo imprescindível à prática educativa quotidiana e à reflexão que deve fazer-se a essa mesma prática no sentido da recontextualização dos saberes. Porém a ilusão de cada um construir, na prática, o seu próprio modelo oculta uma vez mais o desconhecimento da existência destes modelos curriculares, dos quais as educadoras por nós entrevistadas dizem nunca terem ouvido falar.

Contudo, como dissemos, tendo ou não conhecimento, o seu trabalho identifica-se em alguns pontos com um ou outro modelo curricular. Algumas vezes as educadoras revelaram dificuldades na justificação de determinadas atitudes educativas, revelando nas suas justificações uma intencionalidade contaminada pela perigosidade de conceitos polissémicos e ambíguos bem como de atitudes contraditórias sobre as quais não se reflecte. Este conjunto de figuras é responsável pelo afastamento do modelo construído relativamente ao modelo curricular que de forma oculta lhe está subjacente (ver cap. 6).

Tomemos, a título de exemplo, do ponto de vista teórico, a teoria de Piaget conhecida pelas educadoras e muito divulgada na comunidade educativa que defende um sujeito actuante, que "adquire conhecimento agindo sobre o mundo e utilizando o "feedback" das suas acções para construir hipóteses cada vez mais eficazes sobre a realidade" (Weikart e ali

Sobre esta temática pode ser consultada a obra de Formosinho, J. (org.) 1996 - Modelos Curriculares para a Educação de Infância, Porto Editora.

1995, p. 13). Esta teoria deu origem a interpretações diferentes que têm conferido posicionamentos diferentes das educadoras relativamente à educação de infância. Assim para umas as crianças podem exercer