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4. UMA ANÁLISE DIALÓGICA DAS REVISÕES E REESCRITAS PRODUZIDAS NA

4.3. Diálogo com as práticas de escrita do universo de fanfictions

4.3.1. Adequação ao gênero fanfiction

Revisões e reescritas relacionadas à adequação ao gênero fanfiction também se tornaram constantes nas práticas dos sujeitos no decorrer da oficina, configurando-se como o primeiro aspecto característico dos enunciados que dialogaram com outros que fazem referência ao campo do universo de produção de fanfictions. No caso 4.3.1.1, o beta-reader Edmundo realiza um comentário em relação à história de Doca:

Revisão 4.3.1.1 Primeira versão

Revisão

Reescrita

É possível notar que, por meio da correção textual-interativa, Edmundo sugere ao

ficwriter fazer uso de mais descrições, especificando, ainda, que haja na narrativa “pelo menos

a espécie de cada personagem”. Assim, o objetivo desta revisão é enriquecer a descrição das personagens, deixando o enredo mais detalhado. Esta é uma revisão que se caracteriza por comentar sobre aspectos referentes ao enredo da história – e que, portanto, relaciona-se ao gênero fanfiction – e não relacionados às convenções da escrita.

Na reescrita deste trecho, Doca, por meio de diversas operações de adição, procura concretizar as sugestões recomendadas por Edmundo. Primeiramente, o autor acrescenta a espécie da personagem “Mestre July” (“um humano”, considerando que no universo ficcional de Star Wars há uma série de espécies representadas por várias personagens, justificando, assim, que se trata de um humano). Além disso, o ficwriter também adiciona descrições a este parágrafo tanto em relação ao período ao qual a história se passa (“Velha República”) quanto em relação às características e expressões que a personagem “Mestre July” apresentava naquele

Você poderia colocar mais descrições, pelo menos a espécie de cada personagem.

momento da história (“com expressão de sarcasmo e tom de superioridade, que aparentemente era simpático apenas consigo mesmo”).

A reescrita, neste caso, não se assemelhou a uma quase (re)produção41 das sugestões de revisão, como ocorreu em grande parte das revisões higienizadoras. Doca buscou, por si mesmo, alternativas que pudessem solucionar aquilo que foi apontado como um problema na revisão. As resoluções não vieram prontas no momento da revisão, tal qual apresentado nos casos das subseções 4.2.1.1 e 4.2.1.2, ao contrário, o beta-reader apenas direcionou o escritor a encontrar caminhos para a melhoria da descrição das personagens, proporcionando a ele reflexões no momento da reescrita. Neste sentido, é provável que tenha havido uma maior atribuição de sentido à prática de reescrita, além de ser possível observar a reescrita de Doca como uma resposta – em uma perspectiva dialógica – à revisão de Edmundo. Assim, operações de adição em que o aluno busca caracterizar as personagens de uma forma mais detalhada foram empregadas neste caso, ao invés de operações de substituição.

A revisão 4.3.1.2 também apresenta correções relacionadas ao gênero fanfiction:

Revisão 4.3.1.2 Primeira versão

Revisão

41 Em uma perspectiva bakhtiniana, uma mera reprodução das sugestões da revisão na reescrita não é possível,

pois, na reescrita, há sempre o pressuposto de existência de diálogo com a revisão. Deste modo, faço uso da expressão “quase (re)produção” para indicar que também há uma nova produção discursiva, ainda que muito semelhante à revisão.

Acho que você poderia demonstrar um pouco mais de

emoção da Sunny, os

capítulos/falas estão acabando muito do nada. Coloque mais suspense :D

Reescrita

A beta-reader Vitória, neste caso, utiliza a correção textual-interativa, assim como no dado anterior, com a finalidade de sugerir à Luana que demonstre mais emoções das personagens, considerando que, na visão da revisora, as falas bem como os capítulos acabam de modo repentino (“os capítulos/falas estão acabando muito do nada”). A aluna ainda recomenda o uso de suspense como possível maneira de contornar esta inadequação relacionada ao enredo.

Ao reescrever este trecho de sua fanfiction, Luana acrescenta diálogos entre as personagens, assim como a descrição dos sentimentos de Sunny, protagonista de sua história, por meio de operações de adição: “Não resta duvidas de que estes últimos dias foram os mais loucos da minha vida”, “talvez toda a dor e todas as provações tenham valido a pena” e “Meu rosto estava escarlate”, todos os trechos inexistentes na primeira versão. Fica claro que a

ficwriter busca atender às solicitações de Vitória e dialoga com elas. Novamente, a revisão

incentivou a aluna a refletir sobre sua prática de escrita, considerando que a beta-reader somente indica aquilo que julga poder ser melhorado, não apresentando as soluções de reescrita

já na própria revisão. Como resultado, percebemos a reconstrução do trecho 4.3.1.2, mais rico em detalhes e descrições, fornecendo uma maior contextualização da cena ao leitor. Em comparação às revisões resolutivas, então, pode-se afirmar que a textual-interativa pode possibilitar uma maior reflexão e reelaboração na reescrita, além de um diálogo mais explícito com o escritor.

Ainda em relação ao dado apresentado em 4.3.1.2, também é relevante observar quais são os sentidos construídos a partir do emprego de uma linguagem informal na escrita de expressões como “muito do nada” e na utilização do símbolo “:D”, em que os dois pontos e a letra maiúscula do “d” representam uma manifestação de felicidade. Tanto a expressão quanto o símbolo denotam um uso informal da linguagem que não se espera que seja empregado no contexto escolar, mas que é frequente nas práticas de escrita de jovens no contexto digital. Além disso, é comum que a representação gráfica “:D” seja empregada nas situações em que um sujeito queira demonstrar ser simpático com o outro por meio da escrita, o que torna a situação menos séria e, assim, pode aproximar os interlocutores. Isto resulta em uma atenuação da crítica realizada pela beta-reader Vitória, o que pode sugerir que tal uso informal da linguagem seja usado conscientemente com um objetivo claro pelos sujeitos desta pesquisa.

É possível que este uso informal na linguagem seja resultado de revisões realizadas entre pares, características do universo de produção e revisão de fanfictions, em que beta-

readers geralmente são também ficwriters, isto é, os escritores colaboram revisando a narrativa

do outro (BLACK, 2005). De acordo com Black (2006), a revisão entre sujeitos que se posicionam em um mesmo patamar hierárquico pode construir uma espécie de afiliação e conexão entre ambos que difere da relação entre professor e aluno. Devido a esta ausência de relações hierárquicas superiores entre os discentes, tal interação entre aluno/revisor e aluno/produtor pode possibilitar o uso de uma linguagem mais informal e característica de sua geração, sendo este um aspecto do dado que dialoga com as revisões realizadas por beta-readers nos websites de publicação de fanfictions.

Além disso, enquanto as revisões que visavam uma “operação limpeza” (JESUS, 1995) fizeram um maior uso de correções resolutivas, devido ao seu caráter interventor na medida em que proporciona apenas uma alternativa possível na reescrita, as revisões relacionadas ao gênero fanfiction utilizaram correções textual-interativas. Tal interação construída de maneira explícita42 por meio do texto na forma de recados direcionados ao

42 Considerando uma perspectiva dialógica, todas as categorias de correção, isto é, a indicativa, classificatória,

resolutiva e textual-interativa pressupõem uma interação com o interlocutor. Contudo, na textual-interativa, tal interação ocorre de modo explícito por meio da materialidade linguística do texto escrito.

interlocutor ficwriter assemelha-se às práticas de revisão de fanfictions em seu contexto original.

Assim, revisões como essas são usualmente empregadas nos comentários dos leitores e beta-readers de fanfictions nos websites de compartilhamento online. É comum haver sugestões de melhoria em relação ao andamento da história, em que personagens, ambientes, ações e diálogos tornam-se o foco das interações em detrimento às alusões referentes à ortografia, pontuação ou concordância, por exemplo. Desse modo, é possível que correções como as de Doca e Vitória, apresentadas nos exemplos 4.3.1.1 e 4.3.1.2 desta seção, dialoguem, mais uma vez, com esta forma característica de se revisar uma fanfiction no contexto das redes sociais por meio de uma interação explícita com seu interlocutor, justificando, portanto, o maior uso de correções textual-interativas.

As reescritas dos casos 4.3.1.1 e 4.3.1.2, por sua vez, empregaram operações de adição em detrimento a um maior uso de operações de substituição nos dados referentes à seção 4.2 (“Diálogo com as práticas de escrita escolares”). De acordo com Fabre (2002), a adição é a operação, dentre as quatro apresentadas pela autora, que mais é empregada na reescrita como um trabalho vinculado ao sentido do texto, devido ao fato de relacionar-se à dinâmica enunciativa da produção escrita (FABRE, 2002). Nesta perspectiva, fazer uso da adição para buscar caminhos que se relacionem a melhorias relacionadas à descrição de personagens ou ao enredo de uma narrativa – caminhos estes que não foram traçados pelos beta-readers na revisão – é justificável. Assim, ao invés de substituir trechos da primeira versão pelas indicações de resoluções na revisão, a operação de adição revela os trajetos construídos pelo ficwriter ao refletir, na reescrita, sobre as inadequações apontadas por meio da correção textual-interativa na revisão.

Além de revisões relacionadas à descrição de personagens e ao enredo, há também aquelas que se preocupam com a clareza da história, sendo este mais um aspecto característico da adequação ao gênero fanfiction, considerando a importância que a coerência tanto interna à narrativa quanto com o universo ficcional ao qual a história se baseia possui. Desse modo, ortografia, pontuação e concordância foram deixadas em segundo plano, privilegiando revisões que objetivassem as relações de sentido do texto. O dado 4.3.1.3 ilustra este tipo de correção:

Revisão 4.3.1.3 Primeira versão

Revisão

Reescrita

Assim como nos dois exemplos anteriores, em que os beta-readers realizaram uma revisão em relação ao enredo e aos personagens que incentivou os ficwriters a encontrarem alternativas no momento da reescrita, este caso também delineia uma situação em que Edmundo fornece alicerces para que Doca possa repensar sobre as relações de coerência em sua narrativa. Por meio de uma correção textual-interativa, o beta-reader realiza um questionamento (“O Mestre July escolheu o padawan “pelo intelecto” e ficou grato por ele ter sido morto em batalha, pois ele era um peso?”) e uma afirmação sobre a falta de clareza (“Essa frase ficou um pouco confusa”), identificando inadequações em relação à progressão da narrativa. Na visão de Edmundo, há uma ausência de conformidade entre o fato da personagem “Mestre July” ter escolhido o seu padawan, mas, ao mesmo tempo, ficar grato por ele ter morrido. Desse modo, o revisor explicita tal contradição à Doca, mas deixa para o ficwriter a tarefa de encontrar alternativas que possam solucionar este problema.

Na reescrita, Doca busca atender às sugestões realizadas por Edmundo. O ficwriter, por meio de diversas operações de adição, acrescenta períodos que possam elucidar o motivo pelo qual a personagem ficou grata pela morte de seu padawan. Assim, é justificado que Mestre July precisa de “alguém com potencial de batalha e não intelectual e habilidoso”, esclarecendo seu alívio em relação à morte do aprendiz. Doca também acrescenta uma explicação em relação à visão de Mestre July sobre seu padawan, deixando claro que o primeiro já esperava pela morte do segundo (“mas logo soube que um dia ele teria que me deixar”), justificando, novamente, a sua gratidão. É possível notar que o ficwriter, procurando tornar seu texto mais coerente e respondendo, de forma dialógica, às sugestões do revisor, atribuiu mais sentido tanto à prática

O Mestre July escolheu o padawan “pelo intelecto” e ficou grato por ele ter sido morto em batalha, pois ele era um peso? Essa frase ficou um pouco confusa.

de revisão de Edmundo quanto à prática de reescrita de sua fanfiction. Nestas circunstâncias, correções relacionadas às questões de coerência da narrativa também possibilitaram reescritas mais significativas para o ficwriter.

O próximo caso apresenta mais uma revisão relacionada a esta categoria:

Revisão 4.3.1.4 Primeira versão

Revisão

Reescrita

A beta-reader Vitória questiona a ficwriter em relação ao conhecimento prévio de uma personagem sobre outras duas sem ao menos conhecê-las na história: “Como ele sabe da irmã?”, acrescentando, ainda, que “ficou meio confuso”. Neste sentido, é incoerente “Dylan” estar informado sobre o grau de parentesco entre as duas irmãs, considerando que são meninas

Como ele sabe da irmã? D:

que, a princípio, constituem-se como estranhas para ele, sendo solicitada pela revisora uma explicação.

Na reescrita, Luana substitui a expressão “sua irmã, Annie, certo?”, presente na primeira versão, por “uma menininha, Annie, acho”, deixando claro que a personagem não sabe que se trata da irmã de sua interlocutora neste diálogo. É importante notar que o emprego da operação de substituição, neste caso específico, não objetiva substituir a expressão presente na primeira versão do texto por uma produzida pelo revisor. Ao contrário, é a escritora quem constrói a sentença que é escrita no lugar da original. Além disso, o emprego do verbo “achar” denota incerteza, evidenciando dúvida em relação ao nome da menina, já que acabou de conhecê-la, tornando o trecho mais coerente. A ficwriter também reescreve a parte do relato que possui como objetivo explicar à personagem o modo como tudo ocorreu, contextualizando- o de maneira mais eficaz por meio de operações de adição.

Assim como no dado anterior, a revisão que focaliza os aspectos do texto referentes a uma maior clareza do andamento da narrativa possibilitou a Luana pensar sobre seu texto, reelaborando-o com o intuito de solucionar os problemas apontados por Vitória neste trecho. De modo análogo ao 4.3.1.3, portanto, não são privadas da ficwriter maiores reflexões sobre a sua escrita, já que a solução para o seu “erro” não se encontra finalizada na própria revisão.

Além disso, ambos os exemplos retratados, isto é, 4.3.1.3 e 4.3.1.4, fizeram uso da correção textual-interativa para indicar as incoerências observadas na fanfiction, assim como nos dados de revisões deste corpus que possuíam o mesmo objetivo. A interação explícita por meio da materialidade linguística do texto, então, é utilizada em detrimento a correções resolutivas em situações que se observam incoerências, da mesma forma como ocorre nos comentários realizados nos websites de produção de fanfictions, em que uma espécie de bilhete é escrito ao ficwriter. Novamente, a categoria textual-interativa de revisão se faz presente em casos em que a reescrita revela indícios de um posicionamento mais ativo do ficwriter ao reconstruir seu texto – tal qual ocorreu com as revisões relacionadas à descrição das personagens e ao enredo – ao invés de somente acrescentar as resoluções previamente produzidas pelo revisor. Logo, ao contrário da correção resolutiva, a textual-interativa, mais uma vez, possibilita ao autor maiores reflexões no momento da reescrita neste contexto de produção.

Na reescrita dos dados 4.3.1.3 e 4.3.1.4, ambos os ficwriters também fizeram uso de sucessivas operações de adição para buscar tornar os trechos mais coerentes. Desse modo, a correção textual-interativa mais uma vez, por não apresentar resolução na revisão bem como se dirigir ao interlocutor questionando-o e provocando reflexões, esteve associada à operação de

adição. De acordo com Fabre (2002), o sujeito novamente trabalha com a produção discursiva ao fazer uso da adição na reescrita. Neste sentido, sua produção discursiva não é substituída pela do revisor, tal como ocorreu nos casos em que houve a utilização de operações de substituição neste corpus, o que acarreta em uma prática de reescrita mais significativa para o escritor.

Nesta perspectiva, a obsessão normativa (FABRE, 2002) da qual o aluno se liberta, mesmo que momentaneamente, também é característica desta operação no decorrer da prática de reescrita. Considerando que, na adição, o aluno não se concentra naquilo que já está escrito, consequentemente não é necessário que se foque somente nas questões relacionadas à norma padrão da língua portuguesa. Assim, pode preocupar-se com as relações de sentido de um texto, englobando aspectos referentes à progressão da narrativa, por exemplo. Esta é uma das razões que pode justificar o emprego de operações de adição, na reescrita, que buscam melhorias que se relacionem à adequação ao gênero fanfiction.

Finalmente, revisões e reescritas que privilegiam uma maior clareza da narrativa em detrimento aos aspectos higienizadores também são mais características do contexto das publicações e revisões de fanfictions nos websites. Nesta conjuntura, leitores-fãs e beta-readers preocupam-se mais com o fato de uma história estar sendo incoerente com o universo ficcional ao qual ela se baseia do que com regras gramaticais. Além disso, também é essencial que a história não possua lacunas, isto é, que ela esteja coerente do começo ao fim, bem como é importante que a construção das personagens e do enredo seja apropriada.

Neste sentido, é menos relevante corrigir erros de ortografia e pontuação, por exemplo, considerando que não podemos nos esquecer de que se trata de práticas de letramentos realizadas em um contexto digital e menos formal se comparado ao escolar, embora a adequação da escrita à norma padrão da língua portuguesa ainda seja um premissa. Portanto, revisões e reescritas relacionadas ao gênero fanfiction revelam indícios de diálogos com as práticas de revisão realizadas nos websites de compartilhamento de fanfictions.

Houve, ademais, comentários realizados pelos beta-readers durante a revisão em que estes sujeitos posicionaram-se como leitores interessados. Analisemos, com maiores reflexões, a próxima subseção.