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3. COMPREENDENDO AS PRÁTICAS DE REVISÃO E REESCRITA

3.1. O dialogismo bakhtiniano

Esta pesquisa fundamenta-se em uma perspectiva bakhtiniana, principalmente considerando a concepção de dialogismo constitutivo da linguagem, do discurso e do texto. Para Bakhtin (2011), o texto – aqui compreendido como discurso – é o produto de uma criação ideológica, em que os contextos histórico, social e cultural (entre outros) influenciam na sua produção. Nesta perspectiva, a alteridade, isto é, o outro se torna imprescindível para a construção dos sentidos de um enunciado e tanto a produção quanto a interpretação de um texto dependem da relação entre os sujeitos. Assim, a interação entre os interlocutores constitui-se como o princípio fundador da linguagem (PESSOA DE BARROS, 2005).

Em outras palavras, Pessoa de Barros (2005), ao teorizar sobre os estudos de Bakhtin, afirma que não há texto fora da sociedade e, por isso, este não pode ser reduzido à sua materialidade linguística e desconsiderando seu contexto, além de ser único e não reproduzível. Em decorrência disto, na visão de Bakhtin, o texto é constitutivamente dialógico, pois “define-

se pelo diálogo entre os interlocutores e pelo diálogo com outros textos” (PESSOA DE BARROS, 2005, p. 27).

Além disso, fala e escrita, nesta perspectiva, inserem-se em um “quadro comunicacional que privilegia a multiplicidade, a diversidade, a diferença, a alteridade” (BRANDÃO, 2005, p. 270). Assim, as relações intersubjetivas entre falantes e ouvintes ou escritores e leitores, ou seja, entre enunciador e interlocutor constituem-se como relações entre sujeitos do discurso (BRANDÃO, 2005). Para Bakhtin (2011), esta concepção de sujeito do discurso implica que o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico, isto é, devem ser considerados os inúmeros diálogos instaurados em um discurso pelo sujeito que o produz.

Neste sentido, partindo de uma perspectiva bakhtiniana, Corrêa (2011) alega que ao se pensar em uma concepção de “linguagem em uso”, é necessário compreendê-la como um espaço em que as pessoas se fazem sujeitos no processo discursivo e não como somente um fazer empírico pelo qual ocorre a interação. De acordo com o autor, é preciso diferenciar

uma perspectiva interacional – restrita ao encontro presencial de dois interlocutores (onde falam sujeitos empíricos) – e uma perspectiva dialógica – marcada tanto pelo encontro presencial quanto pelos encontros em ausência (onde falam sujeitos do discurso). Ou seja, no primeiro caso, temos um encontro caracterizado pelo ato de enunciação presencial; no segundo, temos encontros dialógicos caracterizados tanto pelos atos de enunciação presenciais quanto pelos não-presenciais, mas ambos marcados pelo papel fundamental das réplicas ao já-enunciado, que, situado no processo discursivo, historiciza a ocupação do lugar de sujeito (CORRÊA, 2011, p. 340 e 341).

Assim sendo, embora os autores apresentados no capítulo anterior – especialmente nas seções sobre cultura participativa e produção de fanfictions – pressuponham um sujeito empírico que somente participa e interage por meio de atos de enunciação presencial (ainda que por meio do digital), esta pesquisa fundamenta-se na concepção de sujeito bakhtiniano, isto é, sujeito do discurso que se caracteriza pelos diálogos construídos tanto por atos de enunciação presencial quanto não presenciais, conforme teorizado por Corrêa (2011).

Bakhtin (2011), no texto “Os gêneros do discurso”, afirma que os limites de um enunciado são definidos pela alternância dos sujeitos do discurso que, dependendo da situação de produção, é de natureza distinta e assume formas variadas. Nesta perspectiva, as relações construídas por meio de um diálogo – termo, neste contexto, utilizado de forma mais ampla, sem se restringir ao diálogo presencial e oral entre dois sujeitos – apenas tornam-se possíveis entre enunciações de diferentes sujeitos do discurso, pois pressupõem o outro em relação ao

enunciador. De acordo com Dahlet (2005), “o dialogismo bakhtiniano estabelece a interação verbal no centro das relações sociais” (DAHLET, 2005, p. 55), o que significa que um sujeito individual não pode ser considerado isoladamente.

Partindo de tal pressuposto, Bakhtin (2011) discute sobre o conceito de posição responsiva ativa em contraponto a uma concepção de que a participação do outro – que não o falante ou escritor – em um diálogo seria passiva. Para o autor, ao contrário, todo discurso, seja oral ou escrito, pressupõe um posicionamento ativo de seu interlocutor, no qual se espera que ele concorde ou discorde daquilo que está sendo enunciado ou, ainda, complete, realize adaptações, adesões, objeções ou apronte-se para executar alguma ação a partir do que foi dito (Bakhtin, 2011). Para Dahlet (2005), o enunciador, ao falar, não age só, isto é, seu interlocutor também é responsável pela construção de sentidos do discurso, o que se caracteriza como uma atitude responsiva ativa, considerando que “toda ação verbal toma a forma socialmente essencial de uma interação” (DAHLET, 2005, p. 57). Desde o início do processo de compreensão do discurso, esta atitude do ouvinte ou leitor está em constante elaboração, neste sentido, toda compreensão de um enunciado é de natureza ativamente responsiva.

Bakhtin (2011) ainda elucida que esta compreensão pode se constituir como responsiva de efeito retardado, isto é, pode não haver uma resposta imediata, mas “o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte” (BAKHTIN, 2011, p. 272). Desse modo, a compreensão responsiva de efeito retardado se faz presente, principalmente, em discursos escritos por não envolverem respostas imediatas, como ocorre em grande parte das vezes nas situações de produção orais, consolidando-se como a fase inicial e preparatória para uma resposta (BAKHTIN, 2011).

Contudo, Bakhtin (2011) alega que o próprio falante ou escritor espera por uma atitude responsiva de seu interlocutor, já que anseia por uma resposta, concordância, participação, objeção ou execução por parte do outro. Além disso, o enunciador também tenta prever a ação responsiva do seu interlocutor antes de produzir o seu discurso, já que, de acordo com Bakhtin,

Ao construir o meu enunciado, procuro defini-lo de maneira ativa; por outro lado, procuro antecipá-lo, e essa resposta antecipável exerce, por sua vez, uma ativa influência sobre o meu enunciado (dou resposta pronta às objeções que prevejo, apelo para toda sorte de subterfúgios, etc.) (BAKHTIN, 2011, p. 302).

Dahlet (2005), partindo desta visão de Bakhtin, completa que todo enunciador inclui em seu projeto de ação uma previsão possível de tal atitude responsiva de seu interlocutor, acarretando na adaptação constante de seu discurso às reações percebidas do outro. Ao fazer referência ao leitor como interlocutor de um texto, Brandão (2005) afirma que ler constitui-se como uma atividade de coenunciação, considerando tanto o diálogo que o escritor constrói com seu possível leitor ao antecipar suas reações no processo de produção do texto quanto a atividade de produção e atribuição de sentido ao texto construída pelo leitor durante a leitura (BRANDÃO, 2005). Para Dahlet (2005), isto comprova, novamente, que a interação verbal se constitui como o modo de ser social dos sujeitos e, de acordo com Brandão (2005), esta perspectiva se fundamenta em uma concepção de linguagem enquanto fenômeno heterogêneo. Ao relacionar o conceito de dialogismo com o de texto, Pessoa de Barros (2005) alega que o primeiro define o segundo “como um ‘tecido de muitas vozes’ ou de muitos textos ou discursos, que se entrecruzam, se completam, respondem umas às outras ou polemizam entre si no interior do texto” (PESSOA DE BARROS, 2005, p. 33). Assim, o enunciador constitui- se também como respondente de um discurso anteriormente produzido (BAKHTIN, 2011), considerando que o autor de um discurso

não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia- se neles, polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte). Cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados (BAKHTIN, 2011, p. 272).

Cada discurso, então, dialoga com enunciados previamente produzidos, formando uma rede de discursos que interagem entre si. Pessoa de Barros (2005) afirma que, de acordo com Bakhtin, o dialogismo é a condição do sentido do discurso, o que acarreta na compreensão de que o discurso não é individual por ser construído entre pelo menos dois interlocutores – sujeitos sociais e não individuais – e também por manter relações com outros discursos (PESSOA DE BARROS, 2005). Desse modo, Brandão (2005) reitera que além do outro explicitado na figura do interlocutor, há ainda o outro na figura do interdiscurso. No contexto das práticas de escrita e leitura, a autora destaca o papel do interlocutor ao alegar que “cabe ao leitor mobilizar seu universo de conhecimento para dar sentido, resgatar essa interdiscursividade, fonte enunciativa desses discursos outros que atravessam o texto” (BRANDÃO, 2005, p. 271).

Tal como ressaltado por Luiz Pessoa de Barros e Brandão, Brait (2005), em sua visão, também declara que o dialogismo faz referência, por um lado, às “relações entre o eu e o outro nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos, que, por sua vez, se instauram e são instaurados por esses discursos” (BRAIT, 2005, p. 95). Em outras palavras, o diálogo, em um discurso, também é construído entre enunciador e interlocutor, falante e ouvinte ou escritor e leitor. Além do diálogo estabelecido entre diferentes interlocutores, Brait (2005) afirma que, por outro lado, o dialogismo diz respeito ao “permanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade” (BRAIT, 2005, p. 94). A autora ainda alega que o dialogismo, a partir desta concepção, é o responsável por instaurar a constitutiva natureza interdiscursiva da linguagem.

De acordo com Bakhtin (2011), cada enunciado deve sempre ser compreendido como uma resposta – em um sentido mais abrangente – a outros enunciados de um determinado campo, o que se relaciona com a natureza interdiscursiva da linguagem. Assim, não apenas manifesta a relação com o objeto deste enunciado específico, como também revela a relação do enunciador com os discursos de outros que já discorreram sobre este mesmo objeto, isto é, aqueles que correspondem aos elos precedentes de uma cadeia. O conteúdo de um discurso, assim sendo, não é objeto pela primeira vez em um dado enunciado e nem o enunciador é o primeiro a falar sobre ele, considerando que já foi dito de diversos modos e por pontos de vista e visões de mundo divergentes. Para Bakhtin (2011),

o enunciado está voltado não só para o seu objeto mas também para os discursos do outro sobre ele. No entanto, até a mais leve alusão ao enunciado do outro imprime no discurso uma reviravolta dialógica, que nenhum tema centrado meramente no objeto pode imprimir. A relação com a palavra do outro difere essencialmente da relação com o objeto, mas ela sempre acompanha esse objeto (BAKHTIN, 2011, p. 300). Nesta perspectiva, os enunciados não são indiferentes entre si e, igualmente, não se bastam cada um a si mesmos, pois se refletem mutuamente. É assim que se constitui a ideia de que um enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva de um determinado campo (BAKHTIN, 2011).

Para Brait (2005), o conceito de dialogismo, então, representa o “eu” que se realiza no “nós”, isto é, relaciona-se ao caráter das múltiplas vozes, resultado da interação com outros sujeitos bem como com outros discursos que se fazem presentes em um discurso. A autora ainda alega que o discurso é concebido como instância significativa e não enquanto fala ou escrita

individual. Nesta perspectiva, o discurso deve ser compreendido como “um entrelaçamento de discursos que, veiculados socialmente, se realizam nas e pelas interações entre sujeitos” (BRAIT, 2005, p. 95).

É preciso, contudo, realizar uma ressalva: Bakhtin (2011) alega que o caráter dialógico de um discurso também se relaciona aos enunciados que poderão a vir ser produzidos futuramente. Desse modo, para o autor, não é possível definir uma posição em um discurso sem correlacioná-la com diversas outras posições, possibilitando que, consequentemente, um discurso seja repleto de atitudes responsivas em relação a outros enunciados já proferidos e ainda aos que serão produzidos (BAKHTIN, 2011). Neste sentido, “cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2011, p. 297).

Logo, mesmo caracterizando-se como um discurso individual e que tende ao monológico, “nasce e se forma no processo de interação e luta com os pensamentos do outro” (BAKHTIN, 2011, p. 298). De acordo com Bakhtin (2011), esta experiência pode manifestar- se como um processo de assimilação da palavra do outro, constituindo-se como alteridade em relação ao discurso deste outro que pode ser assimilado, reestruturado, modificado, assim como empregado de modo consciente ou não. Os enunciados, então, são representados como ecos das alternâncias dos sujeitos do discurso.

Na prática de produção de fanfictions, por exemplo, esta interação com e atitude responsiva pelo discurso do outro se constrói a partir dos diálogos com discursos referentes às obras dos universos ficcionais originais que servem como inspiração para a escrita de

fanfictions. Mas esta dialogicidade também pode ocorrer ao haver referência a outros

enunciados que não aquele do universo ficcional original, referentes às práticas escolares, culturais, familiares, religiosas, pessoais e assim por diante. Logo, na produção de fanfictions, o diálogo é mais evidente em relação à obra que serve como inspiração para a construção da narrativa. Contudo, também se faz presente na interação com os enunciados previamente produzidos e ainda com aqueles que estão por vir, construindo elos sobre diversos temas que não dizem respeito ao universo ficcional original, mas que se constituem como significativos para o ficwriter. Além disso, enquanto interlocutores, tanto o ficwriter quanto o beta-reader dialogam, em suas revisões e reescritas, uns com os outros ao se considerar tal perspectiva bakhtiniana, bem como dialogam com diversos campos da comunicação com os quais interagiram de alguma forma, seja como leitores ou escritores.

Após apresentar parte da teoria bakhtiniana que discute sobre o conceito de dialogismo, discorro sobre a concepção da escrita como trabalho, também fundamentada em uma perspectiva bakhtiniana devido ao seu aspecto dialógico, processual e interativo.