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2. COMPREENDENDO O UNIVERSO DE PRODUÇÃO DE FANFICTIONS

2.2. Novos letramentos

O crescente desenvolvimento tecnológico das últimas décadas proporcionou (e continua proporcionando) a ocorrência de inúmeras mudanças socioculturais, intelectuais e até mesmo nas diversas instituições, como a escola, por exemplo. Novos valores e princípios começaram a ser propagados, fazendo com que novas práticas de letramentos se tornassem cada vez mais comuns e práticas antes estabilizadas se transformassem. Assim sendo, a produção escrita neste contexto se constitui de um modo mais colaborativo e participativo e, portanto,

também coletivo. Tal conjuntura foi exposta pela teoria dos Novos Letramentos (LANKSHEAR; KNOBEL, 2011).

Os chamados Novos Letramentos20, de acordo com Lankshear e Knobel (2011), podem ser compreendidos como um novo paradigma teórico e de pesquisa, em que uma abordagem alternativa é proposta em relação ao paradigma dominante envolvendo as diversas práticas de letramentos (LANKSHEAR; KNOBEL, 2011). Considerando uma perspectiva ontológica, os autores ainda afirmam que os Novos Letramentos possuem uma natureza diferente quando comparados aos letramentos supostamente convencionais. Esse novo paradigma relaciona-se com o surgimento da Web 2.0 e o desenvolvimento de novas tecnologias, em que mudanças vêm ocorrendo em relação ao modo como se constituem as diferentes instituições, mídias, práticas sociais (LANKSHEAR; KNOBEL, 2011), assim como a relação do sujeito com as práticas de leitura e de escrita e suas novas formas de produção.

Segundo O’Reilly (2007), o advento da Web 2.0 pode ser compreendido como “um conjunto de componentes e práticas que unem um verdadeiro sistema solar de websites que demonstram alguns princípios21” (O’REILLY, 2007, p. 19, tradução nossa). Alguns destes princípios descritos pelo autor estão presentes nas práticas dos Novos Letramentos, especialmente na produção e compartilhamento de fanfictions: o desenvolvimento de uma arquitetura de participação e de uma ética de cooperação (O’REILLY, 2007), em que os serviços oferecidos pelos websites no contexto da Web 2.0 aproveitam-se do poder de colaboração e construção dos usuários. Nesse sentido, O’Reilly (2007) ainda afirma que uma das grandes diferenças entre a Web 1.0 e a sua sucessora é a possibilidade que a Web 2.0 oferece em relação ao aproveitamento da inteligência coletiva dos usuários em seu aprimoramento. Assim, “os efeitos nas redes a partir das contribuições dos usuários são a chave para o domínio

20 Optei por resenhar em meus embasamentos teóricos apenas as teorias dos Novos Letramentos. A pedagogia dos

Multiletramentos (NEW LONDON GROUP, 1996) não é abordada nesta dissertação, considerando que tanto a diversidade cultural e a diversidade de linguagens quanto a multimodalidade não são o foco para a análise dos dados. Salvo os conceitos de available designs e redesigned (NEW LONDON GROUP, 1996), presentes na produção de fanfictions na medida em que 1. os designs disponíveis (entre outros) podem ser considerados como sendo os universos ficcionais originais que servem como base para as narrativas e 2. o processo de redesigned pode ser compreendido como sendo a própria elaboração das fanfictions, as outras discussões provenientes da pedagogia dos Multiletramentos não são relevantes para esta pesquisa específica. Assim, sabendo que em uma dissertação de mestrado é preciso, acima de tudo, selecionar pressupostos teóricos, justifico, deste modo, a ausência dos conceitos citados.

21 A set of principles and practices that tie together a veritable solar system of sites that demonstrate some (…)

do mercado na era da Web 2.0.22” (O’REILLY, 2007, p. 24, tradução nossa). Para o autor, o público, antes visto como meramente passivo, agora decide o que de fato é relevante neste contexto.

Assim sendo, julgo ser necessário ao menos mencionar alguns princípios, como a arquitetura de participação e a ética de cooperação, além da inteligência coletiva, (O’Reilly, 2007) que se disseminaram a partir do surgimento da Web 2.0 (sem ter a pretensão de analisá- los profundamente), já que, ao se pensar sobre essa nova natureza de se conceber as práticas dos Novos Letramentos, é preciso também considerar o contexto sociocultural em que ela está inserida.

De acordo com Lankshear e Knobel (2007),

compreender as práticas de letramentos a partir de uma perspectiva sociocultural significa que a leitura e a escrita só podem ser compreendidas no contexto das práticas sociais, culturais, políticas, econômicas e históricas as quais elas estão integradas e das quais fazem parte23 (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007, p. 1, tradução nossa).

Logo, para os autores, uma perspectiva sociocultural é fundamental para tentar compreender a natureza na qual os Novos Letramentos se constituem. Lankshear e Knobel (2007) ainda afirmam que sua difusão e frequente produção são propiciadas, principalmente, pelo desenvolvimento das novas tecnologias e pela propagação de um novo ethos. Partindo de tais premissas, práticas sociais, antes estabilizadas, estão agora sendo transformadas, além de novas práticas estarem constantemente emergindo. Neste contexto, possibilitam-se novas maneiras de produção, distribuição, troca e recebimento de textos por meios eletrônicos, incluindo “a produção e a troca de formas multimodais de textos que podem ocorrer por meio digital, como som, texto, imagens, vídeos, animações e qualquer combinação desses24” (LANKSHEAR; KNOBEL, 2011, p. 28, tradução nossa).

Em relação ao surgimento de tecnologias digitais e eletrônicas, Lankshear e Knobel (2011) reiteram que tal renovação tecnológica impulsionou a emergência de formas pós-

22 Network effects from user contributions are the key to market dominance in the Web 2.0 era.

23 Understanding literacies from a sociocultural perspective means that reading and writing can only be understood

in the contexts of social, cultural, political, economic, historical practices to which they are integral, of which they are a part.

24 The production and exchange of multimodal forms of texts that can arrive via digital code as sound, text, images,

tipográficas de texto e produção textual. Logo, os chamados Novos Letramentos “concentram- se nos modos como as práticas de produção de significado estão evoluindo devido a circunstâncias contemporâneas que incluem – mas não são de forma alguma limitadas a – mudanças tecnológicas associadas ao surgimento e proliferação das tecnologias eletrônicas e digitais25” (KNOBEL; LANKSHEAR, 2014, p. 97, tradução nossa). A partir desta citação, é possível observar que os autores realizam uma ressalva: somente o uso de aparatos digitais e eletrônicos não garante a produção de Novos Letramentos, já que é preciso haver também a constituição de um novo ethos.

O chamado novo ethos, na perspectiva abordada por Lankshear e Knobel (2007, 2011, 2014), constitui-se como uma nova mentalidade, isto é, uma nova ética, um novo conjunto de valores e, portanto, um novo modo de agir. A formação deste ethos prioriza uma maior participação e colaboração entre os sujeitos, a emergência de práticas mais colaborativas, a construção de um conhecimento técnico distribuído em detrimento a um conhecimento técnico centralizado, a inovação e experimentação, o compartilhamento de conteúdos em oposição à propriedade intelectual privada, implicando em normas e regras mais fluidas. De acordo com Buzato (2009), desse modo, a composição deste novo ethos acaba por criar um conflito entre

o ethos que dá sustentação a uma educação conteudista, voltada para o acesso a um conhecimento monológico, imposto de cima para baixo e direcionado para a produção de trabalhadores capacitados conforme o mercado o demanda, e um outro ethos [denominado como novo ethos por Lankshear e Knobel] que, em princípio, começa a caracterizar outras esferas de produção simbólica legitimada (o jornalismo, as artes, a informática etc.) (BUZATO, 2009, p.10).

Além disso, Lankshear e Knobel (2011) afirmam que práticas de letramentos como, por exemplo, a produção de fanzines (revistas produzidas por fãs) e até mesmo a produção de

fanfictions antecedem o surgimento de tecnologias digitais e eletrônicas, mas ainda assim

possuem características do novo ethos, como a colaboração e a participação. Logo, o ethos já se fazia presente, de modo embrionário (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007), ainda que não disseminado como atualmente. Assim, “a propagação e a realização de um novo ethos tornam-

25 Focuses on ways in which meaning- making practices are evolving under contemporary conditions that include,

se possíveis com as novas tecnologias, mas a própria presença do ethos não depende delas26” (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007, p. 21, tradução nossa).

O ponto central que difere os Novos Letramentos de outras perspectivas não é a utilização de novas tecnologias, mas a presença de um novo ethos (LANKSHEAR, KNOBEL, 2011), ainda que os autores reconheçam que essas são fundamentais para a propagação desses novos valores e costumes socioculturais:

Elas [tecnologias digitais eletrônicas] mobilizam tipos de valores, prioridades e sensibilidades muito diferentes do que os letramentos aos quais estamos familiarizados. A importância das novas tecnologias relaciona-se, sobretudo, com a forma como elas possibilitam as pessoas a produzirem e participarem das práticas de letramentos que envolvem diferentes tipos de valores, sensibilidades, normas, procedimentos e assim por diante em relação àquelas que caracterizam os letramentos convencionais27 (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007, p. 7, tradução nossa).

Knobel e Lankshear (2014) ainda alegam que, frequentemente, os sujeitos que fazem uso de práticas dos Novos Letramentos buscam por estabelecer relações com outros pares em áreas e comunidades de interesse mútuo. Eles geralmente procuram atender aos interesses e conhecimentos dos outros membros, reconhecem que a qualidade do conhecimento é formada pelo grupo ao invés de ser centrada apenas em especialistas, acolhem a diversidade de opiniões ao tomarem decisões e assim por diante (KNOBEL; LANKSHEAR, 2014).

Além dos Novos Letramentos, Black também se baseia na teoria da cultura participativa, tema central da próxima seção.

26 The spread and realization of the new ethos stuff becomes possible with the new technologies, but the ethos

stuff itself does not depend upon them.

27 They mobilize very different kinds of values and priorities and sensibilities than the literacies we are familiar

with. The significance of the new technical stuff has mainly to do with how it enables people to build and participate in literacy practices that involve different kinds of values, sensibilities, norms and procedures and so on from those that characterize conventional literacies.