• Nenhum resultado encontrado

2. COMPREENDENDO O UNIVERSO DE PRODUÇÃO DE FANFICTIONS

2.3. Cultura participativa

Cada vez se faz mais presente em nossa sociedade pós-moderna práticas de letramentos em que a participação ativa do sujeito é essencial,28 considerando a perspectiva adotada, principalmente, por Jenkins (1992, 2006). Não necessariamente é preciso produzir, como na própria escrita de fanfictions, mas somente o feedback fornecido por um sujeito, uma contribuição feita por ele ou até mesmo a interação29 entre os membros de uma comunidade em que tais práticas estão inseridas já são considerados característicos de uma cultura participativa (JENKINS, 1992, 2006; JENKINS et al., 2006).

A circulação da enorme gama de conteúdos depende da participação ativa dos consumidores (que não se limitam apenas a consumir). Assim, de acordo com Jenkins, a passividade dos telespectadores em relação aos meios de comunicação não condiz com o contexto social contemporâneo constitutivo da cultura participativa, levando em conta que a separação de papeis entre produtor e consumidor está cada vez mais fluida (JENKINS, 2006).

Desse modo, a cultura participativa possibilita que os sujeitos sejam tanto consumidores e usuários quanto produtores de informação e conhecimento ou, de acordo com Bruns (2006), produsuários (BRUNS, 2006). Em outras palavras, o autor afirma que tal ambiente colaborativo e participativo acaba por diluir as barreiras existentes entre produtor e consumidor, fazendo com que os produsuários envolvam-se em práticas de produsagem (BRUNS, 2006) que se diferem das formas tradicionais de produção de conteúdo.

É possível notar que – ao se considerar, somente neste trecho, uma perspectiva de sujeito como usuário, defendida por Bruns, ao invés de uma perspectiva que prioriza o sujeito discursivo – nos websites de compartilhamento online de fanfictions, práticas de produsagem são recorrentes, já que o autor é usuário de um conteúdo midiático existente (como um filme, livro, ou animação, por exemplo, nos quais o autor baseia-se para criar sua história), mas também é um produtor de novas narrativas. De acordo com Bruns (2006), engajar-se com um conteúdo já existente motiva o produsuário a querer melhorá-lo ainda mais, levando à evolução deste conteúdo por meio do desenvolvimento de novas versões. Esta pode ser uma das

28 Em uma perspectiva bakhtiniana, a participação do sujeito sempre ocorre se considerarmos as interações

dialógicas, sendo esta a perspectiva adotada nesta dissertação, conforme é explicitado no próximo capítulo.

29 O conceito de interação, nesta perspectiva, considera apenas interações explícitas, ainda que não

necessariamente presenciais, como é o caso do contexto digital, o que acaba por diferir da interação dialógica bakhtiniana.

motivações para a produção de fanfictions, já que o autor pode almejar aprimorar as histórias das quais é um fã. Consequentemente,

ao sempre apresentar a mais recente atualização do produto (e sempre permitir que os usuários e produsuários contribuam com posteriores atualizações ali mesmo), a prática de produsagem frequentemente oferece uma versão mais recente e mais “completa” do produto do que os modelos tradicionais de produção são capazes de realizar30 (BRUNS, 2006, p. 281, tradução nossa).

O conceito de práticas de produsagem relaciona-se com “a construção colaborativa e contínua e o desenvolvimento de um conteúdo existente em busca de um maior aperfeiçoamento31” (BRUNS, 2006, p. 276, tradução nossa). Ou seja, para tornar-se um

produsuário, é preciso também ser um usuário de um conteúdo já produzido por outro sujeito,

havendo oportunidades de realizar melhorias ou ampliações em relação ao material existente (BRUNS, 2006). Considerando tais elementos, os produsuários tendem a colaborar entre si ao invés de trabalharem por conta própria como produtores de conteúdo individual, já que “os ambientes de produsagem frequentemente encorajam o engajamento colaborativo por meio do fornecimento de ferramentas ou estruturas informacionais que são pré-configuradas para a colaboração entre os produsuários32” (BRUNS, 2006, p. 277, tradução nossa). Fica claro, então, segundo Bruns, o modo como práticas de produsagem tornam-se frequentes em comunidades de fãs em que a cultura participativa se faz presente.

Em seu primeiro livro sobre cultura participativa, “Textual Poachers: television

fans & participatory culture” do ano de 1992, Jenkins (1992) aborda diversas características,

valores, e padrões do universo dos fãs já presentes desde meados da década de 1970 e com maior recorrência na década de 1980. De acordo com o autor, “os fãs deixam de ser simplesmente uma audiência para os textos populares; ao invés disso, eles se tornam participantes ativos na construção e circulação dos sentidos textuais33” (JENKINS, 1992, p. 24,

30 By always presenting the latest update to the artefact (and always enabling users as produsers to contribute

further updates right then and there), produsage frequently offers a more recent, more ‘complete’ version of the artefact than traditional production models are able to do.

31 The collaborative and continuous building and extending of existing content in pursuit of further improvement.

32 Produsage environments frequently encourage collaborative engagement by providing tools or informational

structures which are preconfigured for collaboration between individual produsers.

33 Fans cease to be simply an audience for popular texts; instead, they become active participants in the construction

tradução nossa). Assim sendo, algumas especificidades da cultura participativa – como, por exemplo, a participação ativa do sujeito – começavam a disseminar-se, embora em menor escala se comparadas aos dias de hoje.

Ainda neste mesmo livro, Jenkins (1992) afirma que, na cultura participativa, cada sujeito possui algo potencialmente interessante que pode ser desenvolvido como uma contribuição para o grupo e, por isso, este último frequentemente incentiva seus membros a desenvolver suas habilidades, demonstrando até mesmo indícios de orgulho em suas realizações (JENKINS, 1992). Desse modo, tomando como modelo a comunidade de fãs para exemplificar traços da cultura participativa, o autor alega que

o fandom [abreviação em inglês para fan kingdom, isto é, reino de fãs ou, em outras palavras, comunidade de fãs] reconhece que não há nenhuma barreira nítida entre artistas e consumidores; todos os fãs são potenciais escritores cujos talentos precisam ser descobertos, nutridos, e promovidos, e qualquer fã pode ser capaz de realizar uma contribuição, ainda que modesta, para a riqueza cultural da comunidade34 (JENKINS, 1992, p. 286, tradução nossa).

Neste trecho, fica evidente a valorização dos membros como um todo em uma cultura participativa, considerando que qualquer sujeito possui potencial para contribuir. Assim, para Jenkins, o efeito das mídias em espectadores passivos fica aquém quando comparado aos recursos disponíveis constitutivos de uma cultura participativa, já que tal conjuntura cultural possibilita o surgimento e posterior propagação de um modelo que permite diferentes formas de interação explícita, que propõe uma relação mais ativa na apropriação dos materiais textuais e discursivos disponíveis e, finalmente, que se ajusta às diferentes experiências pessoais (JENKINS, 1992).

Além disso, Jenkins (2006) argumenta que a cultura participativa possibilita o desenvolvimento de práticas de ensino e aprendizagem, considerando que sujeitos de idades, classes sociais, gêneros e etnias diversas, com conhecimentos e competências também diversos, podem interagir – de modo explícito e/ou presencial – nas comunidades em que a participação e colaboração estão presentes (JENKINS, 2006). Tal interação, nesta perspectiva, também pode promover conexões sociais entre os sujeitos participantes. Ademais, para o autor, estes sujeitos podem participar de diferentes maneiras de acordo com suas habilidades e interesses, havendo,

34 Fandom recognizes no clear-cut line between artists and consumers; all fans are potential writers whose talents

need to be discovered, nurtured, and promoted and who may be able to make a contribution, however modest, to the wealth of the larger community.

por exemplo, a relação entre pares, isto é, de pessoa para pessoa, em que cada membro pode motivar o outro a aprimorar suas habilidades ou adquirir novos conhecimentos.

Neste tipo de relação, tanto o “aprendiz” é favorecido, ao construir novos conhecimentos, quanto o outro “par” também é beneficiado, já que se sente como um especialista enquanto está ensinando (JENKINS, 2006). Jenkins ainda afirma que os papeis sociais são fluidos, por ser um contexto sociocultural flexível, e alternam-se constantemente, pois o mesmo sujeito que ensina em determinada situação pode aprender em outra com o auxílio de um membro diferente (JENKINS, 2006). Não há, portanto, a divisão de papeis entre parte da comunidade que somente ensina e parte da comunidade que exclusivamente aprende (como muitas vezes ocorre no contexto escolar), tornando-se uma experiência mais enriquecedora para qualquer sujeito.

A comunidade inteira, de acordo com Jenkins (2006), é responsável por fornecer alicerces para que os novatos construam novos pilares em uma cultura participativa. A colaboração entre os membros, a troca de conhecimentos, uma segunda opinião (feedback) proporcionada por outros em suas produções e modelos de referência com os quais qualquer membro pode se basear são apenas algumas características enumeradas pelo teórico como alicerces providos em tais comunidades. Assim, por meio desses, qualquer sujeito pode participar da criação e circulação de novos conteúdos (JENKINS, 2006).

Finalmente, Jenkins et al. (2006) fornecem uma definição sucinta de cultura participativa:

Uma cultura participativa é uma cultura com relativamente poucas barreiras em relação à expressão artística e ao engajamento cívico, grande incentivo para a criação e o compartilhamento da criação de outros, havendo a presença de algum tipo de orientação informal, em que aquilo que é conhecido pelo mais experiente é repassado aos membros novatos. A cultura participativa também é aquela em que os seus membros acreditam que suas contribuições de fato são relevantes, e sentem algum grau de conexão social uns com os outros (ou ao menos eles se importam com aquilo que outras pessoas pensam em relação ao que eles criaram)35 (JENKINS et al., 2006, p. 3, tradução nossa).

35 A participatory culture is a culture with relatively low barriers to artistic expression and civic engagement, strong

support for creating and sharing one’s creations, and some type of informal mentorship whereby what is known by the most experienced is passed along to novices. A participatory culture is also one in which members believe their contributions matter, and feel some degree of social connection with one another (at the least they care what other people think about what they have created).

Como consequência em relação aos traços citados acima, como, por exemplo, a presença de poucas barreiras em relação à expressão artística e ao engajamento cívico e o incentivo à criação, Jenkins et al. (2006) mencionam algumas propriedades que se fazem presentes em uma cultura participativa: afiliação, expressão, solução de problemas de modo colaborativo e, por fim, a circulação de conteúdos (JENKINS et al., 2006).

A afiliação relaciona-se às associações formadas entre membros, tanto formais quanto informais, cultivadas em comunidades online centradas em torno de várias formas de produção e propagação midiática (JENKINS, et al., 2006), como, por exemplo, os websites de comunidades online de publicação de fanfictions, em que diversas naturezas de relações sociais são construídas entre os sujeitos. A expressão inclui a produção de novas formas criativas (JENKINS, et al., 2006), como as fanzines, nome dado às revistas produzidas por fãs, e a própria escrita de fanfictions. Por sua vez, a solução de problemas de modo colaborativo engloba o trabalho formal ou informal em equipe com o objetivo de finalizar tarefas e desenvolver novos conhecimentos (JENKINS, et al., 2006). Já a circulação abrange “moldar o fluxo da mídia (como, por exemplo, as práticas de podcasting [publicação online de arquivos de áudio digitais] e de produção de informação em blogs)36” (JENKINS et al., 2006, p. 3, tradução nossa), isto é, envolve determinadas escolhas em relação à maneira como a circulação de conteúdos midiáticos pode ocorrer.

Após apresentar os principais estudos em relação ao modo com as fanfictions têm sido compreendidas, discorro, no próximo capítulo, sobre a fundamentação dos conceitos teóricos que adoto nesta pesquisa. Desse modo, passo a discutir, a seguir, sobre as práticas de revisão e reescrita a partir de uma perspectiva bakhtiniana.

CAPÍTULO 3