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2. COMPREENDENDO O UNIVERSO DE PRODUÇÃO DE FANFICTIONS

2.1. Produção escrita de fanfictions

De acordo com Black (2006), fanfictions são histórias criadas por fãs em que eles utilizam-se das mídias narrativas e dos ícones da cultura pop como inspiração para produzir

seus próprios textos. As histórias podem ser inspiradas em livros, filmes, séries de televisão, animações ou desenhos, letras de música e até mesmo em cantores, bandas, ou atores famosos. Há, neste sentido, a apropriação do texto do outro para si mesmo. Em outras palavras, “fanfiction, ou histórias de autoria de um fã baseadas em conteúdos midiáticos já existentes, é um gênero que se presta a um engajamento crítico em relação aos textos midiáticos na medida em que os fãs redirecionam tais conteúdos para criar suas próprias narrativas9” (BLACK, 2010, p. 76, tradução nossa).

Black (2006, 2008) ainda afirma que é possível que o fã-autor estenda o enredo original, acrescentando novos acontecimentos à sequência da trama ou situações que precedem o início desta; crie novos personagens, como ao introduzir um novo vilão à narrativa; dê maior ênfase a personagens secundários; ou ainda desenvolva novas relações (na maioria das vezes, relações amorosas) entre personagens já existentes.

Além disso, de acordo com Black (2005), basear-se em uma narrativa já existente pode auxiliar a produção escrita, considerando que “isso facilita o processo de produção, porque há um enredo e uma estrutura de ações já existentes para se basear. Também alivia a pressão ao ter que criar um cenário ou elenco de personagens totalmente novos10” (BLACK, 2005, p. 124, tradução nossa). Para sujeitos que estão construindo suas competências em relação à escrita de narrativas, isto é, escritores novatos ou com pouca experiência (caso da maioria dos adolescentes e jovens escritores de fanfictions), tomar como base um universo ficcional que já foi previamente construído pode ser compreendido como um alicerce fundamental para criar sua própria história. As fanfictions publicadas também podem ser aproveitadas como modelos disponíveis para que outros fãs desenvolvam suas narrativas (BLACK, 2010), não sendo limitado apenas a um universo ficcional original.

Assim, grande parte das fanfictions é publicada em websites de compartilhamento

online. Neles, é possível que escritores e leitores interajam por meio de dois recursos: notas do

autor e comentários de feedback realizados pelos leitores ao final de cada capítulo publicado. O primeiro é tipicamente utilizado pelos escritores para interagir diretamente (e de modo explícito) com seus leitores antes ou após a escrita de determinado capítulo (BLACK,

9 Fanfiction, or fan-authored stories based on existing media, is a genre that lends itself to critical engagement with

media texts as fans repurpose these media to create their own narratives.

10 This makes the composition process easier because there is already a plot and a framework of action to follow.

2006). Por meio da nota do autor, é comum que os ficwriters11 peçam aos leitores que comentem ao final do capítulo como uma forma de fornecer um retorno à narrativa. Assim, é valorizada pelos membros das comunidades de fanfictions a presença de comentários que auxiliem tanto na produção da história, por meio de críticas ou dicas, quanto também no suporte e incentivo para que o escritor continue a escrever (BLACK, 2006).

Ademais, Black (2006) revela em sua pesquisa o quão comum é o fato de que os

ficwriters fazem uso das notas do autor para estabelecer certos aspectos de sua identidade,

orientar os leitores em relação a sua narrativa, agradecer aos comentários realizados em outros capítulos e também negociar com outros fãs as escolhas realizadas em relação ao universo ficcional ao qual a fanfiction se baseia, evidenciando traços da cultura participativa:

Este é um exemplo [a nota do autor] do modo como o website funciona como um espaço onde seus membros podem negociar diferenças linguísticas e culturais de uma forma que enfatiza a conexão e a afiliação através de barreiras potenciais. Em sua maior parte, os leitores também manifestam suas diferenças sociais e ideológicas de um modo que ainda forneçam apoio e respeito em relação à criatividade do autor e sua licença artística12 (BLACK, 2006, p. 180, tradução nossa).

Por sua vez, o segundo recurso é utilizado para que comentários sejam realizados em cada capítulo, já que ao final de cada um há um espaço destinado exclusivamente para que leitores possam fazer sugestões, dar suas opiniões, produzir críticas, dar dicas para que o autor melhore algum aspecto de sua narrativa ou ainda elogiar o andamento da história e pedir que ela continue a ser escrita. Para Black (2005), solicitar que o autor escreva mais capítulos revela o modo como os leitores demonstram sua afiliação em relação à narrativa, criando “um forte senso de um público que espera ansiosamente pela continuação da história e que fornece estímulos para que o autor continue a escrever13” (BLACK, 2005, p. 126, tradução nossa).

Ao observar diversos comentários produzidos no website “fanfiction.net”, Black (2007) criou quatro categorias dos tipos mais comuns de feedbacks dados aos autores:

11 Nome dado pela comunidade de fãs aos autores de fanfictions, considerando a justaposição das palavras “fic”

(abreviação de fanfiction) e “writers”, isto é, “escritores” na língua inglesa.

12 This is one example of how the site serves as a space where members can negotiate linguistic and cultural

difference in a way that emphasizes connection and affiliation across potential barriers. Readers also, for the most part, express social and ideological differences in ways that still provide support and respect for the authors’ creativity and artistic license.

13 A strong sense of an audience that is eagerly waiting for the story to continue and provides impetus for the

(1) O padrão OMG [sigla frequentemente utilizada por jovens no ambiente digital em relação à expressão “Oh Meus Deus” na língua inglesa], que se caracteriza como uma forma simples de fornecer

feedback positivo, (2) a Crítica Gentil, a qual incorpora o feedback

positivo a sugestões gerais para o aprimoramento da narrativa, (3) a Crítica Focalizada, a qual incorpora o feedback positivo a sugestões específicas para o aprimoramento da narrativa, e (4) a Fofoca Editorial, que se centra nos personagens como se eles fossem pessoas da vida real14 (BLACK, 2007, p. 124, tradução nossa).

Vale ressaltar o fato de que quando uma crítica à história é realizada, na maioria das vezes, vem seguida de elogios ou incentivos para que o ficwriter continue a escrever. De acordo com a autora, o feedback produzido pelo leitor geralmente apresenta uma constante estruturação: uma introdução, saudação pessoal, ou resposta à nota do autor; um comentário positivo sobre algum aspecto do texto; uma crítica construtiva; uma declaração que atenue a crítica; um comentário positivo ou um encorajamento para que o autor continue a escrever; e um fechamento ao final (BLACK, 2007). É possível perceber a importância que os sujeitos pertencentes às comunidades de produção de fanfictions dão ao encorajamento e apoio para que os ficwriters não encarem a crítica através de um viés negativo e, por isso, deixem de escrever, mas com o intuito de aprimorar suas práticas de escrita.

Desse modo, de acordo com Black, fica claro, por meio das notas dos autores e dos comentários dos leitores, que a escrita de fanfictions não tem como objetivo atingir um público passivo, anônimo e silencioso (BLACK, 2006). Ao contrário, os sujeitos da comunidade “aprendem a escrever e a realizar escolhas linguísticas como parte de uma participação autêntica em um processo ou evento dinâmico e sociocognitivo15” (BLACK, 2006, p. 178, tradução nossa). Assim, tanto a estrutura quanto o conteúdo destes dois recursos de interação explícita presentes nos websites de publicação de fanfictions evidenciam a natureza social e participativa (BLACK, 2006) da escrita nestes espaços, ilustrando também a conexão social descrita por Jenkins (1992, 2006) como reflexo da cultura participativa entre os leitores e autores de fanfictions, e também a presença de práticas metalinguísticas (BLACK, 2005), como

14 (1) the OMG [Oh my god] Standard, which is a simple form of positive feedback, (2) Gentle Critique, which

incorporates positive feedback with general suggestions for improvement, (3) Focused Critique, which incorporates positive feedback with specific suggestions for improvement, and (4) Editorialized Gossip, which focuses on the (…) characters as if they were real life personages.

15 Learning to write and to make language choices as part of authentic participation in a dynamic, sociocognitive

as sugestões de revisão realizadas nos comentários dos leitores e a consequente reescrita dos capítulos.

Ainda segundo Black, os websites de publicação de fanfictions podem ser considerados como bons exemplos da tecnologia constituindo-se como um suporte para os usos significativos da linguagem (através dos espaços destinados à interação explícita entre ficwriter e beta-reader) que são fundamentais para todos os estudantes em suas práticas de letramentos no contexto escolar (BLACK, 2005). A autora alega que “enquanto a ideia de acrescentar atividades de produção escrita autênticas ao currículo não é nova, as possibilidades que os ambientes de computação em rede oferecem para o desenvolvimento de atividades de escrita autênticas e interativas nas salas de aula são novas em muitos aspectos16” (BLACK, 2005, p. 126, tradução nossa). Assim sendo, o retorno imediato realizado pelos leitores por meio das comunidades online de fanfictions pode ser considerado um bom modo para auxiliar os escritores a aperfeiçoar seus propósitos (BLACK, 2005), objetivos e estratégias nesta prática de escrita. Finalmente, Black (2006) afirma que

as interações entre autores e leitores ilustram uma apreciação compartilhada por múltiplas linguagens, diferentes perspectivas culturais, e formas de textos alternativas. Os textos do website também demonstram a forte lealdade dos fãs com a cultura pop e enfatiza o valor da comunicação, da interação social, e do pluralismo neste espaço

online17 (BLACK, 2006, p. 172, tradução nossa).

Outra característica relevante no processo de produção de fanfictions é a presença de práticas de revisão realizadas por um beta-reader ou, em outras palavras, um revisor de texto que se dispõe a “betar” uma fanfiction voluntariamente. O escritor, sendo a primeira pessoa a ler a fanfiction, seria o alpha-reader e o revisor, suposta segunda pessoa a lê-la, o beta-reader, considerando que alpha e beta são letras do alfabeto grego que indicam a sucessão de elementos.

Em alguns websites de publicação de fanfictions, é comum que os moderadores peçam aos participantes que solicitem um beta-reader para revisar sua narrativa antes de

16 While the idea of adding authentic composition activities to the curriculum is not new, the possibilities that

networked computer environments offer for developing authentic, interactive writing activities in the classroom are novel in many ways.

17 Interactions between writers and readers illustrate a shared appreciation for multiple languages, different cultural

perspectives, and alternative forms of text. Texts from the website also illustrate fans’ strong allegiance to popular culture and emphasize the value of communication, social interaction, and pluralism in this online space.

publicá-la. Geralmente, há uma página destinada somente para que os beta-readers apresentem seu perfil (BLACK, 2005), dizendo quais tipos de universos ficcionais eles possuem mais facilidade em revisar, qual o tempo estipulado para retornar a narrativa ao autor, como se constrói seu estilo de revisão (se, por exemplo, o revisor interfere na produção escrita ou apenas oferece sugestões), entre outros aspectos. Black (2005) afirma que é apenas necessário que o

ficwriter escolha um dentre os perfis apresentados e solicite uma revisão que será feita

voluntariamente pelo beta-reader selecionado.

De acordo com Black (2005), beta-readers constituem-se como uma parte fundamental das comunidades online de fanfictions e podem revisar uma história de acordo com seu enredo, caracterização das personagens, gramática, ortografia, coerência com o universo ficcional a qual ela se baseia (BLACK, 2005), coerência entre os parágrafos, uso de recursos coesivos, entre outros.

Os beta-readers, em grande parte das situações, são escritores de fanfictions mais experientes e que, por isso, possuem um olhar mais crítico, o que pode indicar que os próprios escritores colaboram revisando o texto um do outro. Contudo, não é preciso que sejam profissionais da área da linguagem (BLACK, 2005). Assim, a revisão entre os pares, isto é, entre sujeitos situados em uma mesma posição hierárquica de poder (diferentemente das posições estabelecidas entre professor e aluno) caracteriza-se como mais um recurso disponível para a produção de fanfictions. Segundo Black (2005), a prática de revisão dos beta-readers

demonstra como uma forte ênfase na revisão entre os pares, críticas construtivas, e a colaboração dentro da comunidade fornecem andaimes [aos ficwriters] em direção a práticas de letramentos mais sofisticadas e lhes oferecem acesso seguro e não intimidante aos vários recursos desta comunidade de escrita18 (BLACK, 2005, p. 125, tradução nossa). Portanto, de acordo com a autora, a revisão entre pares nas comunidades de publicação de fanfictions é compreendida como uma prática significativa para aprimorar as habilidades de escrita, fazendo com que o ficwriter não se sinta intimidado ou constrangido ao ter sua narrativa revisada por outro sujeito, já que o revisor é reconhecido como um par. Para Black (2005), a revisão entre pares revela uma forte tendência da comunidade em construir e manter relações sociais por meio de críticas “com entusiasmo genuíno pelo conteúdo ou com

18 Demonstrate how a strong emphasis on peer review, constructive criticism, and collaboration within the

community scaffolds [ficwriters] toward more sophisticated literacy practices and provides them with safe and unintimidating access to the many resources of this writing community.

efeito retórico, desencorajando fortemente o feedback hostil19” (BLACK, 2005, p. 127, tradução nossa).

Além disso, a revisão permite que a prática de reescrita, pouco comum no ambiente escolar, seja realizada também de modo voluntário pelo ficwriter após receber o retorno de seu

beta-reader. A reescrita das fanfictions é uma prática valorizada pelos seus escritores por

assumirem um lugar como sujeitos que possuem um interlocutor com quem dialogar. Isto é, os

beta-readers agem como verdadeiros parceiros e interlocutores, na medida em que na escrita,

e também na reescrita desse gênero discursivo, um dos pressupostos fundamentais é a presença de um interlocutor e de um objetivo claro para escrever.

Portanto, para Black, a produção de fanfictions nestes espaços online pode auxiliar os jovens escritores a aprimorar diversas habilidades de escrita requeridas no ambiente escolar (BLACK, 2005), como a produção de gêneros discursivos narrativos, o direcionamento do texto de acordo com seus propósitos e também de acordo com seus leitores específicos e o engajamento em práticas de revisão entre os pares e de reescrita, por exemplo. Além disso, pode promover também o acesso destes jovens a práticas de letramentos digitais (BLACK, 2005), cada vez mais solicitadas por serem compreendidas como essenciais para uma participação plena em diferentes situações sociais, acadêmicas e profissionais. Finalmente, de acordo com Black (2010), é preciso considerar que grande parte das fanfictions é escrita voluntariamente por adolescentes que dedicam horas do seu tempo lendo e escrevendo em tais websites de compartilhamento online, mas que não possuem a mesma motivação e engajamento para a realização de atividades de produção escrita no espaço escolar.

Apresento, na segunda seção, a primeira teoria que sustenta a perspectiva de Black sobre as fanfictions: a teoria dos Novos Letramentos.