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3. COMPREENDENDO AS PRÁTICAS DE REVISÃO E REESCRITA

3.4. Reescrita e suas operações linguísticas

O processo de produção textual na escola envolve diversas etapas, entre elas a reescrita. Fabre (2002) acredita que a reescrita de um texto é uma prática fundamental para o aprimoramento da produção escrita na escola, constituindo-se como uma ferramenta de intervenção que, infelizmente, só é utilizada em muitos casos quando há indicadores de que um texto é ruim. Contudo, assim como Fiad e Mayrink-Sabinson (1993), a autora defende que a reescrita se mostra didaticamente eficaz na medida em que possibilita ao aluno efetuar intervenções e, portanto, transformações em sua produção, embora ainda haja a ilusão de que escrever bem se refira apenas a escrever uma versão única de um texto (FABRE, 2002).

De acordo com Menegassi (2001), a reescrita pode ser compreendida como um produto da revisão, pois é resultado dela, mas que dá continuidade ao processo da escrita. Neste sentido, o autor alega que é um produto que origina um novo processo, possibilitando uma nova fase na construção do texto (MENEGASSI, 2001). Assim,

por meio da revisão, o autor analisa seu produto, reflete a respeito dos elementos escolhidos, observando se suas escolhas colaboram para que seus objetivos sejam atingidos e, se julgar necessário, reescreve seu texto, a fim de torná-lo mais claro” (MENEGASSI, 2013, p. 111). Neste sentido, revisão e reescrita são compreendidas como processos complementares (MENEGASSI, 2013) por auxiliarem a melhor construção do texto em conjunto. Na visão de Menegassi (2013), não poderia ser diferente, considerando que não há reformulação do texto sem antes refletir sobre o objeto de análise e não há finalidade em revisar um texto se não possuir como objetivo aperfeiçoá-lo, logo, não há como separar revisão da reescrita e vice-versa. Nesta dissertação, a separação destas duas práticas em seções diferentes somente busca uma melhor sistematização dos referenciais teóricos utilizados neste capítulo, sabendo que, para a análise do corpus, não é possível examinar uma desconsiderando a outra.

Além disso, Menegassi acredita que o processo da reescrita auxilia o aluno escritor a esclarecer quais são seus objetivos e propósitos para a produção de seu texto (MENEGASSI, 2001). Neste sentido, tal prática pode possibilitar ao aluno compreender e ajustar o que ele tem a dizer bem como de que modo o fará (GONÇALVES, 2013) e para quem, fundamentando-se em uma concepção dialógica da linguagem em que a interlocução e mediação pelo outro é fundamental. Para Gonçalves (2013), a escola, ao partir deste pressuposto para a realização de atividades de produção de texto, “contribui para a constituição do aluno enquanto sujeito que

diz o que diz para quem diz, bem como vai ajudar o aluno a escolher adequadamente as estratégias para realizar sua tarefa” (GONÇALVES, 2013, p. 23).

Na perspectiva adotada por Fabre, as diversas versões e rascunhos de um texto se caracterizam como testemunhas de um processo que não é visível quando a produção final é apresentada. Desse modo, revelam-se como importantes “objetos de estudo e de intervenção para todos os professores e alunos38” (FABRE, 2002, p. 15, tradução nossa), na medida em que tal processo manifesta-se aparente para os discentes no momento em que entram em contato com diferentes versões de um texto ou ainda quando reescrevem diversas vezes a sua própria produção. Logo, nesta perspectiva, a escrita é compreendida como processo.

Partilhando deste mesmo ponto de vista, Signorini (2013) defende que, no contexto escolar, o foco no produto da produção escrita deve ser alterado, considerando as inúmeras possibilidades de reconstruções do texto que a reescrita pode permitir:

(...) ao invés do foco na produção escolar como produto ou artefato destinado sobretudo à verificação ou diagnóstico de habilidades e repertórios individuais, passou-se a focar a escrita escolar como uma etapa de um processo complexo, dinâmico e recursivo que, através da relação entre escrita e reescrita, se desenvolve numa cadeia de re/con/trans textualizações sujeitas à intervenção do professor e de outros interlocutores, e não restritas ao espaço-tempo da sala de aula (SIGNORINI, 2013, p. 17 e 18).

Tal concepção de escrita como processo contínuo, complexo e dinâmico pressupõe que o texto do aluno é sempre provisório por estar sujeito a várias reescritas (GONÇALVES; BAZARIM, 2013). Nascimento (2013) alega que o texto pode ser compreendido como um ponto em uma teia de relações a ele associadas – o que se aproxima de uma visão dialógica da linguagem – tornando possível “despojá-lo da fixidez a ele tradicionalmente atribuída, passando a encará-lo como provisório” (NASCIMENTO, 2013, p. 67). Desse modo, a primeira versão de um texto não é fixa e nem permanente, portanto, não é única, viabilizando a prática de reescrita como uma alternativa que possibilita versões mais apropriadas no decorrer do processo de escrita (NASCIMENTO, 2013).

Fabre ainda afirma que a reescrita possibilita uma multiplicação dos papeis realizados pelo escritor (FABRE, 2002), considerando que ele torna-se não apenas aquele que escreve, mas também aquele que lê, comenta, critica e reescreve seu texto. A tomada de consciência de que há um “vai-e-vem” entre escrever, ler e reescrever o seu próprio texto, de

acordo com a autora, é capaz de transformar a atitude e o desempenho dos alunos durante o processo de produção escrita no contexto escolar. O discente, então, posiciona-se como escritor de seu texto, sendo a reescrita das primeiras versões constituída como um momento de descobertas e de (re)criação (FABRE, 2002).

Nesta mesma perspectiva, Leite e Pereira (2013) alegam que a prática de reescrita possibilita que o aluno explicite suas dúvidas, procure soluções, raciocine sobre o funcionamento da língua e reflita sobre as questões linguísticas, textuais e discursivas referentes à produção escrita, o que se relaciona à teorização realizada por Fabre (2002) em relação aos diversos papeis ocupados pelo escritor. Contudo, os autores realizam uma ressalva ao declararem que as questões relativas ao texto e seu contexto devem ser consideradas por serem de fundamental importância, permitindo, assim, reflexão e reescrita significativas (LEITE; PEREIRA, 2013). Para que isto ocorra, Leite e Pereira (2013) afirmam que os desvios corrigidos na reescrita devem corresponder aos diferentes níveis de uso da linguagem, “sem ficarem restritos apenas aos que contrariam a norma padrão da língua, como tem sido tradicionalmente focalizado nas correções de texto” (LEITE; PEREIRA, 2013, p. 40).

Além disso, Fabre reitera a importância de um interlocutor para as atividades de produção textual na escola, assim como também defende Black (2006), conforme já afirmado no capítulo anterior. Segundo a autora, no momento da reescrita, o escritor relê seu texto colocando-se no lugar de seu leitor (FABRE, 2002). Nesse sentido, a reescrita “é marcada pelos caminhos da interação: hesitações, modificações, retornos às partes que já foram escritas... A presença do outro é certamente simbólica, mas também materialmente inscrita; ela é visível nas alterações do discurso39” (FABRE, 2002, p. 39, tradução nossa). A prática de revisão realizada pelo beta-reader, desse modo, também se mostra materialmente inscrita na reescrita do

ficwriter, já que este último pode acatar, dialogicamente, as sugestões efetuadas na revisão ao

reescrever sua fanfiction.

Ainda teorizando sobre o papel do leitor, Fabre (2002) discute sobre a posição enunciativa do escritor ao ler seu texto visando uma reescrita, e, portanto, situando-se como um leitor crítico de sua própria produção. De acordo com Menegassi (2013), durante a reescrita, o aluno apropria-se do papel de leitor de seu texto, “percebendo problemas não vistos antes, notando que o texto está sempre aberto às modificações, podendo ser melhorado a cada reescritura” (MENEGASSI, 2013, p. 111). Nessas situações, o escritor passa a assumir um

39 (...) est marque par le chaminements de l’interactivité: hésitations, modifications, retours en arrière... La présence

posicionamento metalinguístico (FABRE, 2002), metadiscursivo e, consequentemente, reflexivo. Tal exercício se configura como um passo fundamental para efetuar na escola atividades que considerem a escrita como trabalho e como um processo.

Finalmente, partindo da observação de um corpus de textos produzidos por indivíduos em situação de aprendizagem da escrita, Fabre (2002) cria quatro categorias de operações linguísticas utilizadas na prática de reescrita: substituição, adição, supressão e deslocamento. Cada uma delas é especificada separadamente a seguir. Contudo, é necessário realizar uma ressalva: a distinção entre quatro operações linguísticas referentes à prática de reescrita caracteriza-se como uma abstração teórica (FABRE, 2002), já que raramente ocorrem modificações relacionadas somente a uma delas. Assim, a autora alega que é mais comum observar a presença de várias operações sendo realizadas conjuntamente durante a reescrita de um texto, ao invés de apenas uma ser efetuada em um trecho, por exemplo.

A substituição, como o próprio nome já indica, consiste em substituir um elemento por outro, na medida em que ao mesmo tempo em que o primeiro é eliminado, o segundo é adicionado ao texto em seu lugar. A autora ainda afirma que a substituição, dentre as quatro, é a operação considerada mais fundamental (FABRE, 2002), por ser a mais utilizada tanto pelos sujeitos que fazem uso da reescrita em situações profissionais quanto pelos alunos que estão inseridos em um contexto escolar de aprendizagem.

De acordo com Fabre (2002), há dois tipos de substituição: aquela que ocorre entre palavras equivalentes, isto é, entre sinônimos, acarretando em pouca mudança semântica, ou ainda aquela que modifica tanto a expressão quanto o sentido do texto, resultando em grande mudança semântica. Entretanto, a substituição é realizada em um momento de negociação de sentidos – considerando que a reescrita insere-se sobre um discurso em formação – não havendo, desse modo, uma neutralidade discursiva relacionada à substituição, como se esta última não interferisse no discurso por substituir termos similares, o que de fato não ocorre. É por este motivo que a equivalência consequente desta operação não precisa necessariamente concretizar-se como uma equivalência de termo a termo (FABRE, 2002), sendo necessário, em algumas situações, adequar outras expressões do trecho modificado para não prejudicar, por exemplo, a coerência discursiva e o sentido global do texto.

Por sua vez, a adição consiste em acrescentar um novo termo de modo que não substitua qualquer outro elemento do texto. Esta é a única operação dentre as quatro que não modifica ou elimina um termo que já está materialmente presente na escrita, considerando que seu foco é criar novos fragmentos para o texto. Assim, ao utilizar a adição no momento da reescrita, o sujeito novamente trabalha com a produção, conforme reitera Fabre ao argumentar

que o escritor “não se baseia apenas no texto que já está escrito, devendo adotar uma atitude criativa e não somente de aprimoramento40” (FABRE, 2002, p. 85, tradução nossa) do texto. Esta operação pode ser compreendida, de acordo com Fabre (2002), como uma variação da substituição, já que o termo acrescentado substitui um espaço onde antes não havia nada, isto é, um espaço nulo.

Além disso, a adição é a segunda operação mais utilizada pelos sujeitos que utilizam a escrita em contextos profissionais, ficando atrás somente da substituição (FABRE, 2002). Porém, o corpus de Fabre revela que os alunos não utilizam a adição espontaneamente, somente quando há a sugestão para fazê-la procedente do professor. Desse modo, a autora afirma que, no contexto escolar, é preciso realizar atividades de escrita que se aproximem ao máximo das situações de produção reais (FABRE, 2002), para que o aluno possa de fato atribuir sentido à revisão e à reescrita, evitando o uso artificial ou superficial das operações linguísticas. Este é um dos motivos que justifica a minha escolha ao tentar reproduzir uma situação de produção similar à vivenciada pelos ficwriters nos websites de compartilhamento de fanfictions.

Ainda em relação à adição, é possível notar que o aluno que faz uso desta operação pode se libertar, momentaneamente, da obsessão normativa (FABRE, 2002) em relação aos aspectos formais do texto, já que ela não se debruça sobre o que já está escrito. Não há como, por exemplo, o discente focar-se nas modificações ortográficas que devem ser feitas para adequar-se à norma padrão da língua ao criar uma nova expressão para o seu texto (embora seja possível que ele apenas acrescente um morfema que estivesse ausente na primeira versão, caracterizando-se como uma preocupação formal). Segundo Fabre (2002), nesta perspectiva, o estudante pode concentrar-se no texto como um todo, voltando sua atenção aos aspectos ligados ao conteúdo. Assim sendo, dentre as quatro operações, a adição é a que mais incide na reescrita como um trabalho vinculado ao sentido do texto, isto é, vinculado a uma visão discursiva, devido ao fato desta operação relacionar-se à dinâmica enunciativa da produção escrita (FABRE, 2002).

Já a supressão consiste em eliminar um elemento presente no texto sem substituí-lo por outro. De acordo com Fabre (2002), esta operação linguística é a mais radical dentre as quatro, já que ela extingue algo que havia sido escrito. Por distinguir-se desse modo, a supressão exige do escritor um maior distanciamento de seu texto, isto é, uma atitude que permita que ele seja capaz de se desvencilhar daquilo que havia sido produzido (FABRE, 2002),

40 Ne s'appuie pas seulement sur du texte déjà là et doit adopter une attitude créatice et non plus seulement

posicionamento difícil para todos os escritores, em especial para aqueles que estão em situação de aprendizagem.

Ademais, assim como a adição, esta operação também pode ser entendida como uma variação da substituição, já que um espaço nulo substitui um termo no local em que foi excluído. Em algumas situações, a supressão faz-se necessária quando há a repetição excessiva de determinados termos ao longo do texto. Nestes casos, esta operação funciona como uma espécie de correção (FABRE, 2002) realizada pelo escritor.

Fabre (2002) ainda alega que para alguns alunos a supressão pode ser utilizada para evitar uma dificuldade que tenha surgido durante a fase da reescrita. Assim, ao invés de tentar encontrar uma alternativa em relação ao problema detectado, o estudante pode simplesmente eliminá-lo, sendo este um caminho mais fácil (apesar de não necessariamente ser o melhor) para ele em algumas situações. Como resultado, é possível concluir que, na medida em que a adição relaciona-se aos aspectos da dinâmica da enunciação, a supressão relaciona-se ao silenciamento (FABRE, 2002) da produção.

Logo, qualquer supressão é suscetível a ocultar determinadas escolhas linguísticas e discursivas feitas anteriormente pelo escritor, o que pode ser positivo ou negativo, dependendo da ocasião. Segundo Fabre (2002), a supressão não se restringe apenas a uma fuga do aluno ao tentar solucionar as inadequações do seu texto. As eliminações parciais também podem conduzir a uma maior força retórica, sendo esta operação uma escolha, dentre outras possíveis, para tornar um texto mais pertinente, por exemplo. Assim, é o modo como o discente irá utilizar a supressão que fará dela uma forma de evitar lidar com os problemas encontrados ou uma maneira de aperfeiçoar seu texto.

Por fim, o deslocamento consiste em deslocar um termo de um lugar a outro no texto. De acordo com Fabre (2002), esta é a operação menos utilizada pelos alunos em situação de aprendizagem, sendo sua presença estatisticamente negligenciável. Além disso, é a intervenção mais complexa dentre as quatro observadas no corpus da autora, por ter sido possível realizar substituições, adições e supressões visando o deslocamento e também por ter sido a operação que mais suscitou comentários explicitamente metadiscursivos.

O deslocamento, para Fabre (2002), é a operação que atua de forma mais abrangente. Enquanto as outras três primeiras focalizam, em grande parte das vezes, em intervenções específicas do enunciado, sejam elas superficiais ou semânticas, o deslocamento age em modificações que englobam partes mais amplas do discurso. Ademais, esta operação é considerada pela autora como atípica, por obrigar o aluno a trabalhar ao mesmo tempo com o

eixo paradigmático e o sintagmático (FABRE, 2002), sendo este um dos motivos que justificam a sua rara utilização.

Tendo sido efetuadas as considerações metodológicas e teóricas, realizo, no próximo capítulo, a análise dos dados a partir da geração de um corpus, possuindo como foco as revisões e reescritas das fanfictions produzidas pelos sujeitos desta pesquisa.

CAPÍTULO 4

4. UMA ANÁLISE DIALÓGICA DAS REVISÕES E REESCRITAS PRODUZIDAS NA