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Adriano Moreira: a antevisão do futuro do Ultramar

No documento Adriano Moreira e o império português (páginas 150-153)

A década de 1950 marca, definitivamente, uma nova era nos conceitos internacionais acerca das relações das potências coloniais com os territórios não autónomos. A ONU estabele- cera novos pressupostos e exigira a descolonização, com base não apenas nos valores exarados na sua Carta, mas, igualmente, nos princípios estabelecidos na Declaração dos Direitos do Ho- mem de 1948.

Havia, assim, novas “balizas” nas relações internacionais que era preciso ter em conta. A justificação para manter territórios sob o regime colonial não poderia assentar mais nas razões históricas ou civilizacionais. A assunção de que todos os povos têm direito à sua autodetermi- nação e são iguais em direitos e deveres na cena internacional passou a ser a regra sagrada nos compromissos aceites nas Nações Unidas, quer pelos seus membros fundadores, quer por aqueles que iam aderindo à Organização.

O regime político português tinha assumido, com base na teoria de Gilberto Freyre – o luso-tropicalismo - a especificidade do mundo português. O próprio Adriano Moreira, íntimo de Freyre e partidário das suas teorias, embrenhou-se no esforço que Portugal desenvolveu para justificar a não existência de territórios não autónomos, segundo a designação oficial das nações Unidas. O Professor sabia que o tempo do colonialismo chegara ao fim e que na exacta medida em que os novos povos descolonizados fossem aderindo à ONU, havia de se formar um núcleo, cada vez maior, contrário ao colonialismo.

Franco Nogueira, Ministro dos Negócios Estrangeiros, pautava a sua actuação por prin- cípios bem diferentes dos de Adriano Moreira. Integrava-se na corrente realista. Isto mesmo escreve Jaime Nogueira Pinto:

“Franco Nogueira era um realista à Morgenthau: interesse nacional super omnia, num mun- do que seguia o paradigma de Hobbes e era regido pelas regras do egoísmo dos Estados e por uma balança de poder quase aritmética, feita do equilíbrio entre as forças próprias e os blocos de in- teresses agregados e consolidados à sua volta; um mundo em que as ideologias eram derivações, à maneira paretiana, ou simples discursos cosméticos para iludir as opiniões públicas e os ingénuos. (…) Neste mundo de ferozes egoísmos e interesses nacionais, o papel dos portugueses era fazerem como os outros, isto é, cuidarem dos seus interesses não se deixando comover pelos discursos ideo- lógicos, fossem eles o humanitarismo das Nações Unidas, o europeísmo das Comunidades Económi- cas Europeias, o socialismo de Moscovo ou Cuba, ou o liberalismo norte-americano”.253

A inevitabilidade da descolonização portuguesa passava ao lado do pensamento de Franco Nogueira, Ministro dos Negócios Estrangeiros. Para ele, as alianças internacionais que Portugal deveria criar iam muito para lá das históricas, como era a velha aliança com a Grã-Bretanha. Afirmava, mesmo, que, se para manter o Estado Português do Oriente fosse necessário uma aliança com a China contra a Índia, ambas rivais uma da outra, ela deveria ser feita. Era um esforço suplementar que, como no pensamento de Maquiavel, em o “Príncipe”, os fins justifi- cam os meios.

Franco Nogueira não incorporou sozinho, evidentemente, a vontade e o esforço para manter a unidade entre Metrópole e Ultramar. Houve outros dirigentes que elaboraram concei- tos, determinaram princípios e definiram estratégias para esse fim. Há, contudo, que estabele- cer os objectivos das várias correntes delineadas em relação ao problema. A questão não é a de saber se os argumentos para defender a posição portuguesa são mais ou menos fundamentados e realistas; a verdadeira questão prende-se com saber se as medidas e reformas levadas a cabo naqueles territórios objectivavam, ou não, aquilo que já se apresentava como inevitável - a autodeterminação.

Adriano Moreira tinha a convicção de que a manutenção da unidade política entre as Províncias Ultramarinas e Portugal, pelo menos nos moldes tradicionais, já não tinha futuro. O Professor seguira de perto os processos de autodeterminação das possessões inglesas no Oriente e observou idênticos processos relativos aos Impérios belga e holandês. À medida que ia enve- lhecendo e perdendo algum contacto com a realidade política internacional, Salazar construía uma visão própria do mundo baseada nas informações que recebia dos mais próximos. Havia, assim, uma grande diferença entre aquele período (anos de 1949 e de 1950) em que o Presiden- te do Conselho se informava avidamente de todos os assuntos internos e externos e o período da sua decadência em que, muito isoladamente, se foi afastando das evoluções nacional e mun- dial. Embora Salazar tivesse uma percepção limitada da política mundial, não se apercebendo claramente dos jogos geopolíticos, pelo menos na fase final do seu consulado, Moreira superava esse desconhecimento. Detinha uma visão muito mais ampla, o que lhe permitia equacionar possíveis alternativas à política seguida pelo regime. Em entrevista concedida a Adelino Gomes, publicada no Jornal “Público”, Adriano Moreira responde, em determinada altura, quando lhe é colocada a questão relativa ao rumo seguido pelo processo de descolonização, visto ter estado por dentro do processo:

“P. – Mas o senhor viveu por dentro o que se passou…

R. – Churchill (líder que muito admirei) disse no acto de posse que não tinha sido nomeado

para presidir à liquidação do império britânico, e não tinha sido nomeado para outra coisa… Já nessa altura Portugal era um país exógeno, isto é, dependente da pressão de factores externos. Provavelmente a perspectiva portuguesa, durante muitos anos, foi a de conseguir que a guerra de 1939-45 se resolvesse de acordo com o método antigo da balança de poderes: vencer o perturbador da ordem internacional (o Eixo, naquele caso) e depois recuperá-lo para a restauração da ordem

antiga. E até talvez (trata-se de uma hipótese, apenas) houvesse no governo quem entendesse, como (o ex-Presidente dos EUA) Richard Nixon, que a III Grande Guerra era inevitável, o que tor- nava útil para os aliados a manutenção das estruturas portuguesas”.254

Deste extracto da entrevista, concluímos duas coisas: a primeira é que Portugal, tal como hoje, dependeu sempre dos mais fortes que determinaram o rumo das relações internacionais; a segunda, talvez a que mais nos interessa, é que Adriano Moreira conhecia bem o terreno em que se movia, quer interna quer externamente. Conhecia, por conseguinte, os perigos quanto à discordância de alguns face às suas reformas. A consciência desse mundo que se pautava pelos medos de um novo conflito mundial, onde estrategicamente a situação geográfica de Portugal contaria, dava ao Ministro Moreira uma perspectiva global da questão colonial, o que o em- purrava para uma solução bem mais aberta e progressista que a da maioria dos seus pares no governo.

Era na linha da autonomia progressiva de África e auscultando opiniões de alguns prela- dos titulares em dioceses ultramarinas, como o bispo D. Sebastião de Resende, que o Professor orientava a sua visão sobre o futuro do Império. No seu pensamento, esteve sempre bem vinca- da a matriz católica resultante do Concílio Vaticano II que o Papa João XXIII decidira iniciar. É o que responde quando questionado sobre o rumo que defendia para o Ultramar, afirmando:

“Era necessário proceder-se a uma autonomia progressiva e irreversível de todos os terri- tórios para manter o povoamento europeu que já existia e sem o qual não haveria sociedade civil viável. Concordava com o vaticínio de D. Sebastião de Resende, bispo da Beira e um dos grandes interventores portugueses no Concílio Vaticano II, segundo o qual aquele continente vivia “as suas horas de decisão definitiva”, pelo que se necessitava de “audácia atrevida” ou se corria o risco de haver “no futuro muito sangue a correr em África””.255

A clareza com que Adriano Moreira se refere ao futuro da África após o rescaldo da Segun- da Guerra Mundial e a assinatura da Carta das Nações torna-se o prenúncio de uma realidade que, infelizmente, se veio a verificar. A ligação que o Professor vai criando à Igreja Ultramarina e a alguns dos seus mais proeminentes prelados, como é exemplo a amizade com o Bispo da Beira, D. Sebastião de Resende, permite-lhe o aprofundamento do conhecimento das várias realidades dos territórios ultramarinos. O conhecimento que ele tinha das pressões sobre Por- tugal e a política portuguesa do Ultramar tornavam-no mais responsável na procura de uma via alternativa, aquela que foi seguida por vários territórios conduzidos, de forma atabalhoada, à independência. As cautelas eram necessárias. Foi neste sentido que Adriano Moreira respondeu na entrevista a que temos aludido quando lhe é perguntado se, acreditando, como afirma, numa transição pacífica dos territórios do Ultramar para a independência, não a deveria discu- tir com os africanos:

254 Entrevista de Adelino Gomes [em linha], in Público, 22 Abril 1995, disponível em http://www.espolia-

dosultramar.com/n9.html, consultado em 19 de Maio de 2014.

“Convoquei o último plenário do conselho ultramarino da História de Portugal, onde vieram figuras de todo o lado. Foi lá que apareceu o célebre papel atribuído a Marcelo Caetano (mas por ele nunca reivindicado), defendendo a ideia da federação. Num mundo onde tudo evolucionou em guerra – a Argélia, ou o Vietname, a Índia, onde se esquecem que morreram 400 mil pessoas -, tentámos uma evolução em paz e esta ideia estava muito generalizada”.256

O afastamento dos EUA relativamente à questão colonial portuguesa torna-se crescente a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, já o escrevemos. Esta realidade torna-se cada vez mais visível, à medida que o bipolarismo e a guerra fria se tornam realidades duras e perigosas. A posse de novos territórios, nomeadamente as colónias portuguesas, interessava às duas super- potências: EUA e URSS. Dessa realidade dá conta Adriano Moreira quando escreve:

“Numa data em que a fadiga causada pela guerra do ultramar já estava a ponto de cau- sar a queda do regime da Constituição de 1933, e justamente quando os EUA revelaram de uma forma dura a decisão de não apoiar a política africana portuguesa, iniciou-se a chamada guerra Yom Kippur, quando o Egipto e a Síria atacaram Israel, municiados pela URSS. Estávamos em 1973, vésperas da Revolução portuguesa de 1974, com um governo inquieto e inseguro, que pouco tempo depois entregaria o poder ao General Spínola”.257

De facto, há duas ideias fundamentais que Adriano Moreira transmite: uma, o afastamen- to dos EUA da posição portuguesa em relação ao ultramar; a outra, não menos importante, a fraqueza enorme de que padecia o regime político português. Os dois factores acabaram por ser determinantes na perda de força de Portugal na cena internacional. Faltava coragem aos detentores do poder para avaliar os resultados destas realidades. O Professor, havia muito, en- tendera este perigo. Expusera-o com clareza quando defendeu reformas profundas no Ultramar que pudessem conduzir a uma autonomia alargada. Ninguém o ouvira e fora até substituído no Ministério do Ultramar. Em simultâneo, o poder político avaliava mal a sede do poder. Os mili- tares, ainda embrenhados na emergente guerra africana, não descuravam a ambição de deter- minar o futuro de um país que sempre comandaram. O “Príncipe” mantinha-se nos detentores das armas, aliás, como sempre acontece.

2. Adriano Moreira e as reformas ultramarinas

No documento Adriano Moreira e o império português (páginas 150-153)