• Nenhum resultado encontrado

Luso-tropicalismo: uma teoria do Estado Novo?

No documento Adriano Moreira e o império português (páginas 94-100)

Uma das críticas que amiúde é feita ao pensamento luso-tropicalista de Gilberto Freyre é a de que a realidade brasileira, como todas as realidades, é única na vastidão dos casos de descolonização e da construção de uma sociedade com características próprias. Justamente porque a construção social do Brasil foi única, dependente de factores endógenos e exógenos irrepetíveis, muitos autores apontam irrealismo no pensamento freyriano. Vários traços da re- alidade brasileira terão contribuído para que a antiga colónia portuguesa se tornasse indepen- dente ainda no século XIX e tivesse permanecido unificada. As miscigenações criadas naquele território, tanto culturais como raciais, formaram uma realidade única.

A instalação dos portugueses em África assumiu feições diferenciadas das verificadas na América ou na Ásia. Ao encontro de sociedades organizadas em pequenas comunidades tribais, os portugueses rumaram à África negra com o intuito superior da exploração de recursos. Aí, a fixação lusa foi muito tardia e de forma descontinuada no tempo e no espaço, não tendo, por isso, nada a ver com a instalação lusa em terra de Vera Cruz. Por outro lado, ao contrário da realidade asiática ou americana, no caso africano, é de notar que, até ao século XX, foram mais as influências de África em Portugal, que dos portugueses naquele continente. Esta troca de africanos, que se instalaram em Portugal, dando a uma boa parte da população lusa alguma tez escura, deveu-se, essencialmente, à vinda de escravos, o que não aconteceu com os povos das Américas ou da Ásia. A irregular instalação de portugueses em África limitou a criação naquelas paragens de repositórios da cultura lusa. A criação de um legado cultural e linguístico portu-

guês em África foi menos sistemático e pouco profundo, se comparado com o que se passou em terras brasileiras. A ocupação dos territórios africanos não teve a mesma intensidade, não de- vendo, portanto, ser comparada com a verificada no Brasil. Aqui, pela inexistência de materiais imediatamente comerciáveis, a instalação e exploração da terra foi a forma encontrada para a fixação dos portugueses. Na África, a realidade foi bem diferente – as capitanias deram lugar às feitorias e estas a formas de fixação branca muito mais aligeirada. Contudo, há que considerar que, tal como aconteceu com outras potências coloniais, o etnocentrismo luso contribuiu para a formação de uma comunidade alargada com traços culturais comuns. De entre esses traços, sobressai, justamente, a língua. Isto mesmo refere Jorge Dias:

“Eu creio que o grande êxito das relações que os Portugueses estabeleceram com popula- ções de todos os continentes, algumas das quais ainda perduram com o mesmo equilíbrio e vigor e outras deram lugar a sociedades novas e completamente originais na história da humanidade, como o Brasil, é a consequência de uma forma de etnocentrismo sui generis. De facto, o Português não tem necessidade de se afirmar negando, antes, pelo contrário, movido por um ideal de fraternida- de, afirma-se amando. Está nisso o segredo da harmonia que se observa em todos os territórios em que os Portugueses se fixaram”.158

Embora Dias considere haver similitude entre as várias formas de colonização feita pe- los portugueses, a verdade é que as diferenças entre a realidade brasileira e as restantes são grandes. De facto, ainda que tenha sido um sonho dos governantes do Estado Novo replicar em África a realidade brasileira, tal nunca seria possível. Adriano Moreira considera mesmo que, após a Segunda Guerra Mundial, e no momento em que a ONU pressiona Portugal no sentido de autonomizar os territórios sob a sua administração, Angola e Moçambique encontravam-se num processo de construção social e cultural semelhante ao criado no Brasil. Disto mesmo dá conta Adriano Moreira:

“Somos dos que acreditam ser a política chamada anticolonialista, não diremos oficial, dos Estados Unidos, mas de alguns dos seus políticos na África e no Oriente, uma preparação para seu domínio económico e veladamente político em áreas tropicais ainda sob governo ou influência europeia – inclusive hispânica: principalmente portuguesa – e onde se vêm formando, como em An- gola e Moçambique, sociedades ou culturas lusotropicais semelhantes à brasileira. Do mesmo feitio lusotropical de sociedades e culturas mistas, simbióticas, difíceis, por conseguinte, de poderem ser confundidas com domínios coloniais de ingleses, franceses e holandeses nos trópicos”.159

A colonização sistemática da África portuguesa por brancos da metrópole só se verificou

158 DIAS, Jorge - A Expansão ultramarina, p. 147. In Macagno, Lorenzo - Lusotropicalismo e nostalgia

étnica: Jorge Dias entre Portugal e Moçambique [em linha], pp.107 e 107. Disponível em http://www.

afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n28_p97.pdf. Consultado a 17 de Novembro de 2014.

a partir dos finais da década de 1940,160 o que não permitia ainda verificar o resultado dessa mesma ocupação nos inícios da década de 1960. Internacionalmente, a pressão sobre Portugal no sentido da descolonização era cada vez maior.

René Rémond retrata bem o ambiente internacional do pós-Segunda Guerra Mundial, relativo às emancipações coloniais que se verificaram:

“A evolução das relações internacionais nas duas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial foi largamente dominada pela luta dos povos colonizados pela emancipação e pelo apare- cimento de um terceiro mundo que aspirava a manter-se neutro entre os dois blocos antagónicos. Um dos acontecimentos mais importantes da história contemporânea é o acesso das colónias à independência e a entrada na cena das relações internacionais, como actores sujeitos, de povos que, durante muito tempo, apenas aí tinham figurado como objectos”.161

Até que ponto o Estado Salazarista aproveitou e legitimou a sua política colonial através das teorias de Gilberto Freyre? É disso mesmo que queremos tratar, agora introduzida que foi a ocupação lusa da África. Na verdade, para além das viagens realizadas por Freyre à África a expensas do próprio Estado português, a apropriação que este desejava fazer das teorias luso-tropicalistas conduziu mesmo o governo nacional a «encomendar» obras a Gilberto Freyre que pudessem legitimar a situação ultramarina portuguesa. Disso dá-nos conta Cláudia Castelo quando escreve:

“Gilberto Freyre vai escrever mais duas obras especificamente sobre a temática do luso- tropicalismo: Integração portuguesa nos trópicos (1958) e O luso e o trópico (1961). Importa su- blinhar que estas duas obras são «encomendas» e publicadas por organismos do Estado português. A primeira, pela JIU, na coleção ECPS; a segunda, pela Comissão Executiva das Comemorações do Quinto Centenário da Morte do Infante D. Henrique, no âmbito do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos. O Estado Novo utiliza estes livros, supostamente científicos, como instrumento de propaganda e de legitimação da sua política colonial. Se a manipulação político- ideológica é exterior aos textos, no interior dos textos radica a sua possibilidade. O autor não deixa de ser conivente com esse processo”.162

Que o regime português do Estado Novo absorveu na íntegra o essencial das teorias luso-tropicalistas de Gilberto Freyre já o afirmámos. Deve contudo vincar-se que algumas das parcelas do pensamento de Freyre foram fortemente instrumentalizadas pelo Salazarismo quer para consumo interno, quer para propaganda externa. Apesar dessa constatação as suas teorias acerca das mesmas e construíra um raciocínio lógico que terminaria na criação da teoria luso- tropicalista. Isto mesmo é afirmado por Jerry Dávila:

160 Já foi referido por nós anteriormente.

161 RÉMOND, René - Introdução à História do nosso tempo, do Antigo Regime aos nossos dias. Gradiva,

Lisboa, 2011, pp. 404 e 405.

“Apesar de não ter ido às colónias portuguesas na África e na Ásia e de não haver tido acesso a uma boa quantidade de material de pesquisa a respeito delas, Freyre estava convencido de que poderia interpretá-las da mesma forma que o Brasil. Como para ele os povos de cor desses con- tinentes eram indiferenciáveis naquele momento, suas culturas locais perdiam importância ante as virtudes portuguesas. Isso significava que Freyre podia generalizar suas descrições do Brasil, considerando-as válidas igualmente no caso do colonialismo lusitano em África e na Ásia, e perti- nentes não apenas no âmbito da longínqua conquista e do estabelecimento de colónias do século XVI, como também do colonialismo de meados do século XX”.163

Em boa verdade, o criador do luso-tropicalismo cometeu um erro de análise – extrapolou a realidade brasileira para a África, o que conduziu a generalizações que são sempre perigosas. Embora com pressupostos idênticos, as realidades coloniais das diferentes áreas ocupadas por Portugal não podiam resultar da mesma forma, pois que pertenciam, antropologicamente, a complexidades humanas diferentes na forma organizativa e igualmente nos lastros culturais. Contudo, seja como for, o certo é que a proposta teórica de Gilberto Freyre sofreu uma apro- priação por parte do Estado Novo. Dessa realidade não duvidamos e baseamos a nossa convicção na posição de autores como Yves Léonard. Este considera que as viagens de Gilberto Freyre ao Ultramar entre 1951 e 1952 representam, inequivocamente, o ponto de partida dessa mesma apropriação. Escreve Léonard:

“A viagem oficial - «de estudo e de pesquisa» - que Gilberto Freyre iria efectuar durante mais de seis meses pelas províncias portuguesas, de Agosto de 1951 a Fevereiro de 1952, a convite do ministro do Ultramar, Sarmento Rodrigues, deveria simbolizar o ponto de partida para a apro- priação das teorias do sociólogo brasileiro pelo regime salazarista. Um ponto de partida tanto mais simbólico quanto por ocasião deste longo périplo Gilberto Freyre iria utilizar pela primeira vez a expressão «Luso-tropicalismo», que já germinava nos seus trabalhos anteriores. Foi, de facto, em Goa, no início de Novembro de 1951, que o «Brasileiro em terras portuguesas» pronunciou uma conferência no Instituto Vasco da Gama sobre o tema «Uma cultura moderna: a luso-tropical»”.164

Infere-se desta posição que, mais importante do que a posição de Gilberto Freyre face à vontade de exportar a sua teoria colonial, foi a vontade do Estado Novo de se apropriar do Luso-tropicalismo como fundamento progressivamente construído pelo autor, para justificar externamente a posição portuguesa face ao Império que a ONU recusava admitir.Neste sentido escrevem Alexandre Luís e Carla Luís:

“(…) Perante o leque e a complexidade dos desafios que evoluíam, tornava-se imperioso,

163 DÁVILA, Jerry - Raça, Etnicidade e Colonialismo Português na Obra de Gilberto Freyre [em linha].

Disponível em http://desigualdadediversidade.soc.puc-rio.br/media/revista7_artigo7.pdf. Consultado a 15 de Janeiro de 2014.

164 LÉONARD, Yves - O Império colonial salazarista, in História da Expansão Portuguesa, Último Império

para o Estado Novo, promover e divulgar uma imagem nacional de natureza positiva que elevasse e identificasse o valor do País por via de uma série de referências históricas, culturais, mitológicas, entre outras. Ora a recuperação do luso-tropicalismo pelo Salazarismo operava, precisamente, como um engenhosa retórica de propaganda da lusitanidade (portugalidade), procurando firmar/ fortalecer o retrato vinculador do casamento exemplar e sentimental entre a Metrópole e as pro- víncias Ultramarinas (…)”.165

A Segunda Guerra Mundial estabeleceu um marco indelével na visão que o Estado Novo passou a ter das colónias. O antes e o depois aplicam-se com total propriedade. Na verdade, as visões internacionais do pós-1945, relativas à autodeterminação dos povos não autónomos, levariam o regime salazarista a alterar as suas nomenclaturas relativas às Colónias. A revisão constitucional de 1951 e a substituição da designação de Colónias pela de Províncias Ultrama- rinas pretende justificar internacionalmente a não existência de colónias nos territórios sob administração portuguesa. É neste pano de fundo que a progressiva aceitação das teorias de Gilberto Freyre se faz. Torna-se conveniente criar uma base argumentativa com lógica e subs- tância que permita a Portugal responder às questões levantadas nomeadamente pela ONU. A este propósito, escreve António E. Duarte Silva:

“A ‘boa ideia’ e o ‘bom momento’ para convidar Gilberto Freyre a visitar o Ultramar portu- guês foram sugeridos pelo referido José Osório de Oliveira (então chefe de divisão de propaganda da Agência Geral das Colónias) ao Ministro Sarmento Rodrigues, o qual teve a cautela de, antes de proceder ao convite formal, se certificar da sua receptividade junto de Salazar (a quem emprestou bibliografia) e do próprio Governo brasileiro. Não se conhecendo previamente, Gilberto Freyre sabia do papel de Sarmento Rodrigues, como ‘homem de estudo’, no CEGP. O convite (preparado em princípios de 1951) foi contemporâneo da fase final dos trabalhos da revisão constitucional e, à data, Gilberto Freyre ‘acabava de voltar do Peru’, tencionando visitar ‘a Europa com a família’. Sarmento Rodrigues convidou-o, então, ‘para, de volta da França, demorar-me em Portugal; e de Portugal ir ao Ultramar Português, numa viagem que ele deseja que dure um ano’”.166

O interesse de alguns dos membros do Governo de Portugal, certamente os mais ligados ao Ultramar, em se associarem às teorias gilbertianas, torna-se evidente. Mesmo conhecendo- se o processo imparável que era a descolonização iniciada logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, o Governo de Salazar orquestrava uma teoria fundada no pensamento de Gilberto Freyre e da qual nem o seu autor se desviava. Seria o próprio sociólogo brasileiro a construir em redor das possessões portuguesas a “muralha” do modo português de estar no mundo. Na

165 LUÍS, Alexandre António da Costa e LUÍS, Carla Sofia Gomes Xavier, A imagem de Portugal promovi-

da pela instrumentalização salazarista do luso-tropicalismo, p. 20, in CRISTINA Costa Vieira (et. Al.), PORTUGAL – BRASIL – ÁFRICA, Relações Históricas, literárias e Cinematográficas, edição dos Serviços

Gráficos da Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2014.

166 SILVA, António E. Duarte - Sarmento Rodrigues, a Guiné e o luso-tropicalismo [em linha], Cultura

(online), Vol. 25/2008, posto online no dia 24 de Janeiro 2013, consultado a 26 de Março 2014. Disponível em http://cultura.revues.org/586; DOI:10.4000/cultura.586.

verdade, após o convencimento de Oliveira Salazar, por parte de Sarmento Rodrigues, da bon- dade e do interesse das viagens de Gilberto Freyre ao Ultramar Português, o périplo por aqueles territórios inicia-se em 1951. Esta data marca, justamente, a verdadeira apropriação do luso- tropicalismo pelo regime político português. Relativamente a essas várias viagens às possessões lusas, Gilberto Freyre afirmava o seguinte:

“Em contacto com o Oriente e com a África portuguesa, (…) senti confirmar-se uma reali- dade por mim há anos adivinhada ou pressentida através de algum estudo e de alguma meditação (…) esta viagem, apenas, confirmou em mim a intuição do que agora, mais do que nunca me parece uma clara realidade: a da que existe no mundo um complexo social, ecológico e de cultura, que pode ser caracterizado como ‘Lusotropical’”.167

As observações e as teorias resultantes das viagens de Freyre explicando a existência de “um mundo criado pelos portugueses” não colheu apenas simpatias. Se é verdade que muitos intelectuais e políticos portugueses viram no Luso-tropicalismo os alicerces para a construção de uma unidade se não política pelo menos cultural, entre os territórios portugueses de além- mar, outros houve, que criticaram profundamente as teorias freyrianas, acusando o seu autor de mais não fazer do que propagandear o regime salazarista.

Por seu turno, a ONU rejeitava claramente estas justificações dadas por Portugal. Os processos de descolonização aceleravam-se não apenas no Oriente, mas, de igual forma, numa boa parte da África. A pressão dos novos países recém-entrados nas Nações Unidas aumentava na justa medida em que a concessão da independência ia sendo realidade em vários locais. Este sentimento expressa Lourenzo Macagno:

“É de se imaginar que o contexto internacional não estava muito disposto a dar as boas vindas a tal proposta. Num momento em que as Nações Unidas empreendiam uma campanha anti- colonialista na África, sugerir a existência de um estilo português não racista de estar no mundo” não resultava muito convincente. É precisamente nesta época, que o nacionalismo do Estado Novo português reforça seu discurso de cooperação racial na África e, neste caso, as formulações de Gil- berto Freyre se apresentam como uma justificativa ideal para a presença colonial portuguesa”.168

Cientificamente aceite por uns, objectivamente recusada por outros, a verdade é que a teoria de Gilberto Freyre, o luso-tropicalismo, pelo menos em parte, acabaria por servir de base à argumentação do Estado salazarista.

167 MACAGNO, Lourenço - Lusotropicalismo e Nostalgia Etnográfica: Jorge Dias entre Portugal e Mo-

çambique [em linha]. Disponível em http://www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n28_p97.pdf. Op. Cit.

Capítulo III

Adriano Moreira, o Ultramar Português

e os Organismos Internacionais.

No documento Adriano Moreira e o império português (páginas 94-100)