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Portugal, o Império e a ONU

No documento Adriano Moreira e o império português (páginas 103-110)

A adesão de Portugal à ONU não se verificou nos tempos iniciais desta organização e não foi um processo pacífico. A questão tornar-se-ia um assunto de disputa entre as duas super- potências: Os EUA e a URSS. O tempo era de “guerra fria”179 e a competição entre o mundo bipolar era muito intensa, ao ponto de se jogar em todos e quaisquer palcos da política interna- cional. Por conseguinte, quando, em 1946, Portugal solicitou a adesão à ONU, essa entrada foi vetada pela URSS. Ainda assim, Oliveira Salazar desdenhara quando soube da não-aceitação de Portugal nas Nações Unidas. Questionava-se, mesmo, nos meios mais conservadores do regime salazarista, se a adesão a um Organismo que se preparava para pôr em causa a existência de possessões coloniais seria conveniente. É neste sentido que vai o pensamento de Duarte Silva quando escreve:

“A entrada de Portugal na ONU foi atrasada pelas peripécias da guerra fria e, vetada pela

a convite de António de Oliveira Salazar. Pretendia-se promover a «política do espírito» do «Estado Novo». Foi extremamente hábil na articulação da acção cultural com a acção política. In BARRETO, António; MÓ- NICA, Maria Filomena (coord.), Dicionário de História de Portugal, Suplemento 8, Porto: Livraria Figuei-

rinhas, 1999, artigo de Ernesto Castro.

178 TORGAL, Luís Reis - Estados Novos, Estado Novo. Coimbra, 2.ª Edição, Imprensa da Universidade de

Coimbra, 2009, p. 131.

179 Convencionou-se designar de “Guerra Fria”, grosso modo, as relações turbulentas vividas entre o Bloco

Capitalista e o Bloco Comunista constituídos após o fim da Segunda Guerra Mundial. Este período assim designado duraria até ao fim do sistema imperialista soviético, nos finais da década de 1980, com Michael Gobbachev. Tratou-se de uma “guerra de nervos” entre dois blocos antagónicos ideologicamente e que, devido à grande corrida aos armamentos, em especial aos nucleares, colocou por diversas vezes a paz mundial em perigo.

URSS a adesão em 1946, só se verificou em 14 de Dezembro de 1955, através do package deal que permitiu superar o beco sem saída a que haviam chegado Ocidente e Leste quanto à admissão de novos membros. No mesmo dia foram também admitidos a Albânia, Bulgária, Camboja, Ceilão, Finlândia, Hungria, Irlanda, Itália, Jordânia, Laos, Líbia, Nepal, Roménia e Espanha”.180

António de Oliveira Salazar, ainda que de forma velada, admitia o interesse na adesão do nosso país à ONU. Queria, com a presença nas Nações Unidas, poder influenciar o rumo do Império Colonial Português. Contudo, não contara com a crescente animosidade internacional face ao regime musculado que Portugal teimava em manter. Quando, em 1946, foi formalizado o pedido de adesão à ONU e de imediato recusado através do veto soviético, o regime portu- guês terá compreendido duas coisas: a primeira, que o mundo e a política internacional tinham mudado; a segunda, que os EUA já não comandavam o mundo, havendo, agora, um outro polo de poder supranacional igualmente forte – o bloco comunista. É esta a posição de Salazar que Bernardo Fustscher Pereira transmite:

“Em público e em privado, Salazar vinha sinalizando discretamente desde o fim da guerra vontade de aderir à Organização das Nações Unidas. No discurso de 18 de maio de 1945, em que fizera o balanço da situação internacional após a rendição da Alemanha, incluíra um longo desen- volvimento largamente favorável à organização, cujos princípios considerava plenamente compatí- veis com os do Estado Novo. Salazar começava por elogiar o facto de ela assentar na «existência de nações diferenciadas, independentes e livres, organizadas em Estados soberanos e iguais», em vez de optar por «federações artificialmente decretadas ou impostas» ou «super-Estados hegemónicos com os seus Estados-vassalos». (…) Por fim, salientava que «quem, como nós, proclama e aceita que o Estado é limitado pela moral e pelo direito achará que a sociedade internacional deve igual- mente considerar-se limitada pelos imperativos de uma justiça superior», os quais estavam na base e suportavam todo o edifício da nova organização”.181

Vetada a entrada de Portugal na ONU em 1946, Salazar acreditou que o apoio das Grandes Nações vencedoras da Guerra, como a Grã-Bretanha ou os EUA, se manteria inquestionável. Tratava-se de uma premissa pouco consistente como se viria a verificar mais tarde. De facto, não foi isso que aconteceu e Portugal foi sendo travado na vontade de aderir à Organização até 1955. Neste ano, o país foi, finalmente, admitido nas Nações Unidas. Desde esse momento, a pressão para que o Estado português desse resposta à questão contida no artigo 73º da Carta das Nações aumentou. Salazar optou, de imediato, por responder negativamente à pergunta sobre se o país administrava territórios não autónomos. Duarte Silva escreve a este propósito o seguinte:

180 SILVA, A. E. Duarte, - O Litígio entre Portugal e a ONU (1960-1974) [em linha]. Análise Social, vol. XXX

(130), 1995 (1.º), 5-50. Disponível em http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223379275O6tBL0an1Az23 CC9.pdf, consultado em 26 de Julho de 2014.

181 PEREIRA, Bernardo Futscher - A Diplomacia de Salazar (1932-49), Publicações D. Quixote, Alfragide,

“Considerando que Salazar, com esta resposta, ‘assume uma posição, coerente no plano interno, que desafia a corrente política mundial’ e, no plano internacional, ‘rompe as coordenadas em que se está movendo a comunidade das nações’, Franco Nogueira recorda não ter sido recebida ou enviada, a este propósito, mais nenhuma correspondência e acrescenta, numa interpretação ex- tensiva resumindo bem a próxima futura política portuguesa sobre a matéria. ‘Nesta simples troca de notas, todavia, Salazar acaba de tomar uma decisão de profundo significado, das mais sérias im- plicações e extensas consequências. Que querem dizer a atitude de Salazar e a resposta do governo de Lisboa? Indicam às Nações Unidas que as províncias Ultramarinas portuguesas não têm vocação para a independência separada; sublinham que o governo português se arroga o exclusivo de inter- pretar e aplicar a sua ordem constitucional e que neste domínio não admite interferências alheias; afirmam que Portugal não submeterá a sua administração ultramarina a qualquer sistema de censu- ra internacional e que, portanto, não transmitirá quaisquer informações à comunidade dos países; finalmente, notificam as Nações Unidas de que, se se respeita a letra do artigo 73º, é repudiada a prática política e processual que à sombra deste a ONU fora estabelecendo gradualmente’”.182

Duarte Silva recorre às palavras de Franco Nogueira183 para caracterizar nos planos inter- no e externo o valor da posição do Governo português face à questão contida no artigo 73.º da Carta das Nações Unidas. Não é por acaso que o faz. Franco Nogueira e também Adriano Moreira serão, doravante, os arautos dos argumentos que Portugal irá usar na defesa das suas posições face ao Ultramar.

Oliveira Salazar tentou que na ONU a resposta dada pelo governo português funcionas- se de forma mais ou menos equivalente àquela posição de neutralidade colaborante com o “Eixo”.184Esquecera-se, no entanto, que o tempo era outro e a posição política que havia adop- tado durante a Segunda Guerra Mundial não tinha sido propriamente apreciada pelos aliados. Ao mesmo tempo, o governo português acreditava que os pressupostos argumentativos base- ados nos direitos históricos continuariam a ser respeitados, mas não. Na verdade, o direito dos povos à autodeterminação tornara-se inalienável e justificava até a posição mais forte da nova Organização supranacional, a ONU. Nas palavras de Fernando Martins, que cita amiúde o Professor Adriano Moreira, a realidade internacional era outra após o fim da Segunda Guerra Mundial, refletindo assim:

“Como mais tarde afirmou Adriano Moreira, a ‘primeira resposta governamental portugue- sa’, no período de 1956-60, e portanto assente nos pressupostos políticos subjacentes à argu- mentação histórico-jurídica, era consequência da utilização noutras circunstâncias históricas ‘da doutrina da neutralidade colaborante». (…) Era uma ‘doutrina’ que «assentava na convicção de que seria respeitado o direito internacional clássico; na inviolabilidade da jurisdição interna; na

182 SILVA, A. E. Duarte, O Litígio entre Portugal e a ONU (1960-1974) [em linha], Análise Social, vol. XXX

(130), 1995 (1.º), 5 e 6. Op. Cit.

183 Nogueira, Franco - Salazar, vol. IV; O Ataque (1945-1958), Atlântida, s/l, 1980, p. 423.

184 De facto, embora Portugal se declarasse neutral na Segunda Guerra Mundial, a realidade é que colabo-

rou activamente com a Alemanha e os regimes fascistas. Fê-lo exportando minério (volfrâmio) e colaborou não dando guarida aos judeus refugiados.

permanência de uma vontade ocidental do domínio; na intangibilidade das fronteiras; na capaci- dade permanente de, a partir daquelas premissas» se poder conservar a estrutura interna (…) e, sobretudo, o regime’”.185

Adriano Moreira mostra a sua interpretação do momento e faz reflectir nela o seu próprio conhecimento sobre todo o processo diplomático que o país levou a cabo nas Nações Unidas, com o intuito de legitimar a posse de territórios não autónomos. Entre os anos de 1957 e 1959, o Professor Adriano Moreira, já tido como grande conhecedor dos meandros ultramarinos, e também dos das próprias Nações Unidas, é chamado pelo poder político para integrar a De- legação Portuguesa na ONU. Primeiro, integrando a Comissão liderada pelo Engenheiro Carlos Abecassis e, depois, com Franco Nogueira, esforça-se por explicar as razões de Portugal assen- tes, fundamentalmente, nas razões históricas, mas igualmente na teoria do luso-tropicalismo com a qual se identificava. Relativamente a Franco Nogueira, último Ministro dos Negócios Estrangeiros de Oliveira Salazar, Adriano Moreira confessou-nos nunca ter compreendido uma mudança radical no pensamento de Nogueira. Este fora, durante bastante tempo, um crítico de muitas das posições assumidas por Salazar e, depois dos finais da década de 1950, tornara-se admirador e defensor incondicional do Presidente do Conselho. Aliás, ainda segundo Adriano Moreira, Salazar, que não viajava, conhecia um mundo monocolor – era aquele que Franco No- gueira lhe apresentava. Se tivermos em mente aquilo que expusemos já, e que transcreve um apontamento do pensamento de Adriano Moreira, onde se lê que Salazar tudo lia e procurava saber sobre a política externa, ficamos com a ideia de haver aqui uma contradição. Porém, tal não se verifica. Se é verdade que, até finais da década de 1950, Oliveira Salazar lia e se infor- mava com empenho acerca daquilo que internacionalmente dizia respeito a Portugal, é de igual forma certo que, depois das eleições presidenciais de 1958, quando o regime estremeceu com o General Humberto Delgado, passou a fazê-lo cada vez menos. A partir daí, o Chefe de Governo fecha-se mais e mais sobre si próprio e em redor daqueles que lhe diziam aquilo que ele queria ouvir. É aqui que entra o papel do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira. De fac- to, nem sempre a política formal, aquela que é dada a conhecer, coincide com a política real. Esta é a mais importante e circula em gabinetes e corredores. Temos, portanto, dois períodos quanto aos meios de que Salazar se serviu para se informar: o primeiro, até aos inícios da dé- cada de 1960, tempo em que ocorreram vários reveses para o regime, a informação nacional e, sobretudo a internacional, chegam ao presidente do Conselho através das leituras que o próprio faz; o segundo, o período para lá desse marco cronológico, e que coincide com a decadência física e psicológica de Salazar, é, simultaneamente, o tempo da ascensão de Franco Nogueira à Sede do Poder. De facto, pelas leituras realizadas, nomeadamente as relativas ao vol. V. da obra de Franco Nogueira intitulada SALAZAR, A Resistência (1958-1964),186 evidenciam bem o

185 MARTINS, Fernando - A Política Externa do Estado Novo, O Ultramar e a ONU, Uma Doutrina Histó-

rico-Jurídica (1955-68) [em linha]. In Penélope fazer e desfazer a história, 1998, p. 189-206. Disponível

em http://old.www.cidehus.uevora.pt/textos/artigos/fmartins_polexterna_estadonovo.pdf, consultado em 2 de Dezembro de 2014.

“poder” que Franco Nogueira exercia sobre Oliveira Salazar nos inícios da década de 1960187. Consideramos, pois, não haver qualquer contradição. O estudo que realizámos e que constituiu a nossa dissertação de mestrado com o título “Leituras de Salazar”, encaminhou-nos para esta conclusão.

A proximidade entre Salazar e Nogueira foi perpetuada até ao fim da vida do primeiro. Essa cumplicidade criou em muitos espíritos, e também no do próprio Franco Nogueira, a espec- tativa de poder vir a suceder a Oliveira Salazar na chefia do Governo. Eram vários os “delfins” que se apresentavam à sucessão, entre eles, também, Adriano Moreira.

Para o velho Presidente do Conselho, a sua última missão era, eliminar, preservar o mun- do português. A sua última grande batalha foi, justamente, lutar pela preservação do Império Ultramarino, constituinte de um Portugal uno, historicamente justificado pelo espírito missio- nário e civilizacional. É isto mesmo que Adriano Moreira pensa quando escreve:

“O Ultramar foi a última das suas preocupações maiores. Como se, ao crescer em anos e diminuir em vida, quisesse guardar todas as energias para sublinhar a essência das coisas. Todos os cuidados para a trave-mestra. Doendo-se por cada jovem sacrificado. (…)

Voltando às sequelas da queda no mundo que foi o significado principal da entrada na ONU, uma das experiências mais ricas de ensinamentos foi a participação na delegação, liderada pelo Engenheiro Carlos Abecassis, que esteve na reunião da Comissão Económica para a África, da ONU, na Etiópia, iniciada em 29 de Dezembro de 1958, e que ali demorou cerca de um mês”.188

Adriano Moreira retrata bem o sentimento de Salazar, perante a herança ultramarina que considerava ser um “fardo” do qual não devia nem queria desligar-se. Era uma espécie de incumbência divina a obrigação de manter inviolável o vasto Império conseguido com sangue, lutas, tratados e demais acordos feitos pelos ancestrais precursores do Portugal uno e indivisí- vel.

A pressão sobre Portugal para que descolonizasse aumentava de dia para dia e tornava- se uma questão internacional de extrema importância, já que dela dependiam algumas das aspirações expansionistas das superpotências (EUA e URSS). Cedo, Oliveira Salazar adoptou a teoria luso-tropicalista, se não na totalidade, pelo menos na exacta medida em que ela expli- casse cientificamente a permanência de Portugal em terras de além-mar. Disto mesmo dá conta Adriano Moreira quando escreve o seguinte:

“Um dos pontos que me pareciam fundamentais para a definição e entendimento da políti- ca que o governo se proporia seguir dizia respeito à atitude adoptada quanto à legitimidade para estar no Ultramar. O Doutor Salazar não tinha hesitações em filiar tal política na vontade nacional.

187 vide Apêndice A, e LUCENA, Manuel de - vol. XXXVI (160), 2001, 863-891 [em linha], disponível em

http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1218729444Y3aQE3ub5Qn57SA0, consultado em 18 de Agosto de 2013.

188 MOREIRA, Adriano - A Espuma do Tempo: Memórias do Tempo de Vésperas - Almedina, Coimbra,

Entendia esta no sentido institucionalista que decorria da sua formação.

Nunca lhe ocorreria submeter a um plebiscito a definição da conduta do país em tal do- mínio. Não era a vontade popular que tinha em vista. Era a vontade da Nação, essa comunida- de sucessiva de gerações. Adoptou uma expressão minha, dando-lhe sentido pessoal –“a maneira

portuguesa de estar no mundo” - para acentuar que se tratava da essência da Nação. Gostava de

lembrar um conceito do Almirante Sarmento Rodrigues, segundo o qual – “Moçambique só pôde ser

Moçambique por ser Portugal”.189

Nas expressões que, segundo Adriano Moreira, Salazar usava, estão presentes três princí- pios essenciais: um, o valor do lastro histórico e a vontade da Nação no seu sentido colectivo; outro, uma certa afinidade do pensamento do Doutor Salazar com o luso-tropicalismo de Gil- berto Freyre; e, por fim, o de que não havia lugar a dúvidas quanto à manutenção do Ultramar nem a possíveis compromissos com referendos. A aceitação por parte do Presidente do Conse- lho, ainda que, em parte, das teorias ligadas ao luso-tropocalismo, consideramos que se deve, no essencial, à procura de uma explicação tão científica quanto possível para a expressão: “O modo português de estar no Mundo”, usado por muitos autores, nomeadamente Cláudia Castelo em obra já por nós citada. Numa entrevista dada por Salazar à Revista “LIFE”, de Nova Iorque, e publicada em Maio de 1962, o governante responde à seguinte questão:

“Pergunta:

Existirão factores que tornem o problema dos territórios portugueses em África dife- rente daqueles de outras regiões que pretendem ou receberam autonomia ou independência?

Resposta:

Nós temos sido criticados pela nossa persistente adesão ao ideal da sociedade multir- racial a desenvolver-se nos trópicos, como se tal ideal se opusesse à natureza humana, à ordem moral universal ou aos interesses dos povos, quando é o contrário que se verifica. Sem discutir o problema, direi que nós, portugueses, não sabemos estar no mundo de outra maneira, até porque foi num tipo social de multirracialidade que, há oito séculos, nos formámos como Nação, no termo de diversas invasões, oriundas do Oriente, do Norte e do Sul, isto é, da própria África. Daí nos ficou talvez um pendor natural – que citamos tanto mais à vontade quanto é certo tem sido reconhecido por notáveis sociólogos estrangeiros – para os contactos com outros povos, contactos de que sem- pre estiveram ausentes quaisquer conceitos de superioridade ou discriminação racial”.190

Quando Oliveira Salazar se refere a “notáveis sociólogos estrangeiros”, evidentemente que se está a referir ao brasileiro Gilberto Freyre e o “à vontade” que o Presidente do Conselho usa para citar os particularismos da colonização portuguesa advém-lhe da aceitação do luso- tropicalismo em que se fundamenta. A referência à realidade brasileira como paradigmática da colonização portuguesa volta Oliveira Salazar a fazê-la em entrevista ao Semanário U. S.

189 Id., Ibid., p. 187.

NEWS AND WORLD REPORT de Nova Iorque, publicada em 1962 no n.º9, “[…] Daí resultaram, com o decorrer dos tempos e com a naturalidade própria das verdadeiras evoluções históricas, as sociedades multirraciais do tipo da que tornou possível esse magnífico exemplo de grandeza material e espiritual que é o Brasil […]”191.

Não se equacionava a hipótese de perguntar ao povo se a manutenção do Império era ou não aceitável. As posições assumidas pelas Nações Unidas e a sua relutância em aceitar a diferenciação da situação colonial portuguesa, em comparação com outras potências, levan- tavam algumas perplexidades em muitos meios intelectuais portugueses. Estes não anteviam na posição da ONU nada de bom, já que, num processo de descolonização, haveria sempre a possibilidade de os territórios ultramarinos entrarem na disputa existente entre as superpotên- cias. Em 1961, quando caiu o Estado da Índia, a incompreensão foi total. Neste sentido, escreve Adriano Moreira:

“O caso do Estado da Índia (Goa) feriu mais profundamente a consciência popular, pela li- gação aos valores históricos, pela presença de Os Lusíadas na definição da identidade portuguesa. Ainda hoje é difícil compreender como é que a Carta da ONU foi tão levianamente interpretada neste caso, é misterioso o processo que até aos críticos nacionais fez ignorar a jurisprudência da Organização.

Este capítulo da História da ONU, que é o da descolonização, obrigou-me a criticar vivamen- te a maneira como ela estava a falsear os seus objectivos e as esperanças que lhe eram atribuídas. Primeiro com o abandonado factor tempo, a que a Carta obrigava para a desmobilização das sobe- ranias coloniais, com os resultados que hoje esmagam áreas vastíssimas da Ásia e da África; depois com a instrumentalização a favor da competição bipolar, como aconteceu no caso de Goa, e isso era responsabilidade das superpotências que verdadeiramente anularam a Carta da ONU”.192

Adriano Moreira confirma que Portugal sempre procurou alianças e compromissos exter- nos que o auxiliassem a manter a face perante as adversidades que iam surgindo. Tal ocorreu variadas vezes ao longo da sua história. No início da Nacionalidade, ao procurar apoio na Santa Sé; mais tarde, na Aliança com a Inglaterra e, durante o Estado Novo, dizemos nós, nos Estado Unidos da América. Acreditou-se, durante largo tempo, que era de todo vontade daquele país, tornado superpotência, aliar-se a Portugal no Pós-Segunda Guerra Mundial. Tratava-se do valor utilitário das bases em território português, nomeadamente da base das Lajes nos Açores. Os EUA serviriam como escudo de protecção na ONU contra aqueles que exigiam a retirada portu- guesa dos seus territórios ultramarinos. Nada de mais falso. Na verdade, embora existisse uma cooperação estratégica entre Portugal e os EUA, o certo é que, numa realidade bipolar como

No documento Adriano Moreira e o império português (páginas 103-110)