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Affonso Henrique Vieira da Costa UFRRJ

I

O caminho percorrido por Martin Heidegger no texto Que é me- tafísica? procura abrir um diálogo com a tradição, pensar junto com ela, encaminhar aquilo que nela ficou impensado e que se consolidou como evidente, o que permite ir ao encontro do mais originário, isto é, do lugar desde o qual tal pensamento pôde forjar-se, instalar-se e tornar-se medida para todo pensar.

Intentaremos seguir os passos do filósofo no que diz respeito ao encaminhamento da pergunta metafísica. Não daremos uma resposta objetiva à questão, mas, diferentemente, procuraremos conduzi-la de maneira a permitir que ela apareça em toda a sua plenitude de ser.

Para tanto, tal como Heidegger, colocaremos em questão o modo de ser da ciência para, a partir daí, poder pensar como é pos- sível que nossa época histórica seja determinada por um comporta- mento que só aceita como real aquilo que está disposto nos seus pro- cedimentos que pretendem transformar todos os entes em objetos de investigação científica.

Com isso, esperamos que seja aberto outro caminho, de maneira a possibilitar um ingresso em uma região em que o mais originário desperte-nos para o sentido da metafísica. Trata-se, sobretudo, de ir ao

encontro do que a filosofia de Heidegger denominou de Dasein, ser-aí. É na abertura do Da, no aí do ser, no aberto de possibilidades, revela- do na disposição fundamental da angústia, que a própria questão se colocará em exposição.

II

O texto de M. Heidegger, intitulado Que é Metafísica?, traz, desde o seu início, um projeto de constituição de um caminho que nos con- duz não à resposta propriamente dita, mas à pergunta por ele mesmo proposta. Trata-se de um poder perguntar, de um estar na medida da pergunta, que é sempre a instância no interior da qual uma determi- nada ausculta permite um acesso ao que poderíamos denominar de sentido da Metafísica.

Esse projeto de constituição de um caminho já se expõe no pri- meiro parágrafo do texto quando o pensador diz que não falará “so- bre” a Metafísica, mas que pretende ir ao encontro de “uma” questão metafísica. Este “sobre” evoca uma distância reveladora de uma au- sência de proximidade. Ele separa de uma vez por todas aquele que pergunta daquilo que por ele é perguntado. Com isso, percebemos que a Metafísica não é um objeto de investigação que possa ser manipula- do por qualquer sujeito. Aliás, ela não é objeto nenhum. Tanto é assim, que Heidegger não dá esperança alguma de que falará para aqueles que pretendem, por mera curiosidade, saber o que quer dizer Meta- física desde uma perspectiva de erudição. Ele não dará esse tipo de resposta perseguida por eles. Bem ao contrário, ele afasta-se dela. Ela não é essencial. Ela não permite que nos encaminhemos para as raízes da Metafísica. Diante disso, como nos indica o filósofo, “nos transpo- remos imediatamente para o interior da Metafísica. Somente assim lhe damos a melhor possibilidade de se apresentar a nós em si mesma.” 1.

Portanto, nada mais justo, quer dizer, nada mais ajustado, do que iniciar o texto, na primeira das três etapas propostas por ele – “O desenvolvimento de uma questão metafísica” –, com uma citação de Hegel, que nos diz que “sob o ponto de vista do saudável entendimen- to humano, a filosofia é o mundo às avessas” 2.

1 HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica? In: Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 113.

Essa lembrança da citação de Hegel não é qualquer coisa. Ela traz à tona o peso da pergunta, o peso com o qual todo aquele que ousa carregá-la precisa suportar, pois a pergunta não parte de um ponto em que o investigador encontra-se em segurança, posto que apartado dela. Diferente disso, justamente porque a filosofia é o mundo às avessas, quem verdadeiramente ousa questionar a pergunta, de antemão abdica de seu comodismo para deixar-se ser incomodado pela questão, pois, como nos indica Heidegger, a partir da compreensão da peculiaridade da pergunta, ela requer uma especificação preparatória, que surge de uma dupla característica da interrogação metafísica: Ela abarca a totali- dade da problemática metafísica e a existência de quem interroga.

Mas o que significa isso? O que quer dizer aí “totalidade”? Totalidade não indica a soma de tudo o que há e é. Antes é a amarra, o que liga, o que une, reúne e que dá sentido aos entes. Ela, por isso, envolve tudo, inclusive aquele que interroga. Queira ou não, o investigador já está sempre envolvido pela problemática metafísica. Seja como aquele que vai ao seu encontro ou como aquele que dela se distancia, a pergunta sempre lhe diz respeito. A pergunta não pergun- ta por um ente em particular. Ela também não transforma esse ente em um objeto de investigação científica. Ela se im-porta com o todo do ente, com o real propriamente dito. Daí o porquê de Heidegger afirmar que “a interrogação metafísica deve desenvolver-se na totalidade e na situação essencial do ser-aí questionador” 3.

Mas, voltamos a perguntar: Que situação essencial é essa? Na base dessa pergunta, outra ainda se faz presente: Onde nos encontramos? Heidegger nos dá uma pista. Diz ele: “Nosso ser-aí – na comunidade de pesquisadores, professores e estudantes – é determi- nado pela ciência.” 4.

O que quer dizer aí determinação? Determinação é delimitação, ação de dar uma forma, um contorno. A nossa existência, segundo o filósofo, é conformada pela ciência. É o que podemos ver também na pergunta nada inocente de Heidegger: “O que acontece de essencial nas raízes do nosso ser-aí, na medida em que a ciência tornou-se nos- sa paixão?” 5.

3 HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica?. In: Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 113.

4 Ibidem.

Nós somos tomados pela ciência, afetados, apaixonados por ela. A ciência é o nosso páthos. Toda a nossa existência encontra-se envolvida por esse páthos, com mais precisão ainda no seio da Universidade, na comunidade de pesquisadores, professores e estudantes. A medida para o real parece ser a própria ciência, a sua referência e o seu comportamen- to para com o mundo. Neste sentido, se é verdadeiro que todo o nosso modo de ser é por ela determinado, parece que o parâmetro para tudo o que é e há está disposto no interior do comportamento científico.

Essa descoberta, pois, é o que assinala o caminho escolhido por Heidegger nesse texto. Trata-se de um caminho que precisa ser trilhado no âmbito do pensamento científico que determina a nossa existência naquilo que ela mesma é, fazendo com que nós nos relacionemos, de maneira dócil, aos seus propósitos mais autênticos, com o próprio ente 6.

Entretanto, é justamente desde essa “docilidade” que Heidegger vai pensar todo comportamento, toda referência de mundo e o fato da irrupção do ente chamado homem na totalidade do ente.

O comportamento liga-se, por um lado, à submissão ao fato de que a ciência dá a primeira e a última palavra acerca do real 7. Nesta

tarefa, há também uma submissão ao próprio ente para que “ele re- almente se manifeste” 8. Todo o trabalho de investigação, peculiar na

ciência, traz consigo a delimitada referência de mundo que o lança na transformação dos entes em objetos de investigação científica. Na es- fera dessa atividade, um ente chamado homem irrompe, revelando-se naquilo que ele mesmo é.

O que está aí em jogo? O aparecer desse homem em sua tarefa de fazer ciência, mais propriamente o ser-aí científico, o modo de ser do homem iluminando-se nesse seu afazer.

Toda essa docilidade e submissão apresentam-se desde o fato de que todo o modo de ser do homem, ancorado nessa sua referência de mundo, com certo comportamento e irrompendo em seu afazer é, sobretudo, determinado pelo ente e mais nada.

Mas o que isso quer dizer? Que no âmbito dessa determinação o ser-aí não deixa que o ente se manifeste naquilo que ele é. O ente não se revela desde sua possibilidade de ser e de não ser. A distância me-

6 Ibidem, p. 114.

7 HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica?. In: Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 114.

nor existente entre o investigador e o ente, transformado em objeto de investigação científica, não diz proximidade. Essa menor distância faz com que o homem se afunde no ente sem a possibilidade de encontrar uma medida, uma distância necessária para que o ente se manifeste em seu ser.

Esse modo de ser do homem nos é apresentado por Heidegger da seguinte forma: “É o ente que está em jogo e nada mais.”. Como podemos ver, não é por um capricho que o nada entra em cena. Toda história da filosofia até então mantém afastado de si esse nada do ente. No âmbito das ciências, tomadas como resultado dos desdobramentos do próprio pensamento ocidental, isso se torna, como podemos obser- var, ainda mais evidente para o filósofo.

A questão metafísica, portanto, extraída da análise da ciência e de seu comportamento, traz o nada esquecido no fundo da determina- ção do ente. É justamente este fundo que retorna e cai sobre o ser-aí a partir da experiência de angústia, conforme falaremos mais adiante.

Porém, retomando o nosso passo, é preciso que se questione o que é esse nada que se revela a partir da investigação do ser-aí científico.

III

Com isso, o passo dado por Heidegger avança para uma segunda etapa de seu trabalho, que traz como título “A elaboração da questão”. É a questão do nada que está em curso. A pergunta que se apre- senta é a seguinte: O que é o nada? Tal pergunta, na perspectiva da lógica e também do senso comum, é estranha, para não dizer absurda, pois como pode o nada ser alguma coisa como um ente? Quando per- gunto acerca do que é o nada, já trago comigo, de antemão, a resposta: O nada é... alguma coisa. Mas, conforme nos indica a lógica, o nada jus- tamente não é. “O perguntar pelo nada – pela sua essência e seu modo de ser – converte o interrogado em seu contrário. A questão priva-se a si mesma de seu objeto específico” 9.

É importante destacarmos que o filósofo se permite ir ao encontro da lógica, tirando daí as suas últimas consequências, pois a questão es- sencial acerca do nada necessita, para ser colocada, de um esgotamento de todas as possibilidades de ser desentranhada da esfera do que se de-

termina como sendo o razoável, o racional, o senso comum. O que se põe em questão, na base de tal encaminhamento da questão, é se é possível que toquemos “no império da lógica”, pois se o pensamento é sempre pensamento de alguma coisa, “deveria, enquanto pensamento do nada, agir contra a sua própria essência” 10. Isso se torna mais agudo ainda

na discussão seguinte que gira em torno do que é mais originário, se o “não”, o “nada” ou a “negação”. Aparentemente dogmático, pois não poderia dar nesse momento uma resposta a essa questão, Heidegger diz que o nada é mais originário do que o não e a negação.

O que se passa aqui? Heidegger se prepara para dar um salto. E por que um salto? Porque a lógica não consegue atingir o que está em jogo na questão. Trata-se de um poder ir ao encontro do nada e não, como se poderia supor, de representá-lo a partir da negação do ente em sua totalidade. A representação do ente em sua totalidade não coincide com a experiência a partir da qual ele mesmo se dá. Não se trata da obtenção de um “conceito formal do nada figurado”. Por isso, quando chega ao limite em que toda lógica pode ir, o filósofo afirma: “Que tenha sido este o momento derradeiro em que as objeções do entendimento retiveram a nossa busca que só pode ser legitimada por uma experiência fundamental do nada” 11.

Justamente por ser impossível conhecer a totalidade do ente, Heidegger nos dá uma indicação de que nos encontramos postados em meio ao ente em sua totalidade, o que pode ser percebido na situ- ação em que nos encontramos entediados ou na presença de um ente querido. No tédio propriamente dito, quando não nos entedia este ou aquele ente, mas quando tudo nos entedia, nós nos afundamos no meio do ente e todas as coisas se revelam numa indiferença absoluta. O “todo”, a “totalidade”, caracterizada no “tudo nos entedia”, emerge do fundo da experiência do tédio no interior da qual estamos lança- dos. Por outro lado, o exemplo da presença de um ente querido, que nos põe diante da presença do “todo”, através da alegria de seu estar conosco, também manifesta essa “totalidade” de tudo o que é. No en- tanto, nestes dois exemplos, essa “totalidade”, esse sentimento de sua presença, põe-nos em uma disposição em que o nada mesmo se retrai. Escreve Heidegger: “Contudo, precisamente quando as tonalidades

10 Ibidem.

afetivas nos levam, deste modo, para diante do ente na totalidade, elas nos ocultam o nada que buscamos”12.

Ora, se estas disposições de humor ocultam o nada que é busca- do, qual seria, de acordo com esse texto, a disposição fundamental a partir da qual o próprio nada se manifesta? Trata-se da angústia. An- gústia não é temor. O temor é sempre temor de ou por... alguma coisa. Amanhã farei uma entrevista. Estou ansioso. Temo não ser aprovado para ingressar no emprego que tanto desejo. A angústia, bem ao con- trário, revela uma ausência de determinação. Não é nada propriamen- te o que me angustia. Esse nada é justamente, como diria Heidegger, o que trai todo aquele que se encontra nessa disposição, pois é exata- mente a sua presença que se manifesta aí. Não nos angustiamos por isso ou aquilo. Angustiamo-nos por... nada!

IV

A terceira etapa desse texto, que é denominada de “A resposta à questão”, procura ir ao encontro da seguinte pergunta: O que acontece com o nada?

Conforme vimos acima, a disposição da angústia, diferente do tédio, por exemplo, ao manifestar o ente em sua totalidade, põe esse mesmo ente em fuga. O angustiado presencia um recuo (afastamento) do ente, de tal maneira que aquilo que ele anteriormente tomava como sendo o seu mundo e, portanto, nele se acomodava e construía o seu modo de ser, agora, no âmbito dessa disposição, esse seu mundo pre- viamente estabelecido desaba, o que faz com que ele perca o seu chão.

O recuo do ente provoca estranheza. O homem, na abertura do aí do ser, não sabe mais o que é o ente. Por isso, Heidegger afirma que há aí uma quietude fascinada. Desse afastamento, em que se perde o mundo, tomado como algo dado, pronto e acabado, é que há a possi- bilidade de retomada da pergunta originária e fundadora da filosofia, tantas vezes repetida ao longo de sua história e, ao mesmo tempo, im- pensada: Que é o ente?

No entanto, Heidegger só consegue retomá-la desde a manifes- tação do nada da angústia. E é exatamente em seu seio que isso que é o ente, em toda a sua estranheza, se revela em sua possibilidade de

ser e de não ser. Diz-nos o filósofo que “O nadificar do nada não é um episódio casual, mas, como remissão (que rejeita) ao ente na tota- lidade que se evade, ele torna manifesto esse ente em sua plena, até então oculta, estranheza como o puro e simplesmente outro – em face do nada” 13. Ou ainda: “Somente na clara noite do nada da angústia

surge a abertura originária do ente enquanto tal: o fato de que o ente é – e não nada” 14.

Afinal de contas, após todo esse percurso, procurando acom- panhar o pensador, onde nos encontramos? Desde o início de nosso trabalho, isso que é propriamente o Dasein, o ser-aí, permaneceu in- questionado, como se nós, desde sempre, já soubéssemos o que tal termo significava. Agora, com o auxílio do texto, do caminho até aqui percorrido, podemos falar, tal como Heidegger, que “Ser-aí quer di- zer: estar suspenso dentro do nada” 15. Isto, em outras palavras, signi-

fica: transcendência. É no seio do nada que o ser-aí encontra-se para além do ente em sua totalidade. Somente por que ele se encontra já desde sempre na abertura de possibilidade de ser e de não ser é que ele pode “assumir um comportamento com relação ao ente e também com relação a si mesmo” 16.

Eis que nos transportamos para a questão propriamente metafí- sica, que quer dizer a interrogação que vai além (metá – trans) do ente enquanto tal 17. Pelo fato da questão do nada nos conduzir para além do

ente em sua totalidade, ela é uma questão metafísica. Esta, por sua vez, se instaura no “espaço” de liberdade conquistado desde a manifestação do nada na abertura do ser-aí. Somente aí, em sua transcendência, ex- perimentada como o acontecimento fundamental do ser-aí, é possível o filosofar, compreendido como o “pôr em marcha a metafísica, na qual a filosofia chega a si mesma e conquista as suas tarefas expressas” 18.

Somente aí, no seio da metafísica, experimentando o que se de- nomina de transcendência, pode o ser-aí, mais uma vez, sem represen- tar, retomar a pergunta originária da filosofia, a saber, “Que é o ente?”, a partir de um balanço, de uma tensão até então inquestionada, desde

13 HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica?. In: Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 124. 14 Ibidem.

15 Ibidem, 125. 16 Ibidem. 17 Ibidem, 129.

uma questão ainda mais originária que mobiliza o pensamento a ir ao seu encontro: “Por que há simplesmente o ente e não antes o nada?”.

Referências

HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

_________. Introdução à metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987. _________. Introdução a “O que é metafísica?”. In: Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008.

_________. Posfácio a “O que é metafísica?” In: Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008.

_________. Que é metafísica?. In: Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008. _________. Ser e tempo. Tradução de Márcia Schuback. Petrópolis: Vozes, 2006.

Rogério da Silva Almeida