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Instituto de Filosofia e Teologia de Goiá

1. O abandono do ser

Em virtude do estilo de argumentação de Heidegger e, princi- palmente, da ambiguidade que se preserva nas noções fundamentais de seu pensamento, é necessário, de antemão, afastar o perigo de uma má compreensão: os fenômenos do abandono e do esquecimento do ser não são o resultado da negligência de sujeitos particulares que, no exercício de suas representações, teriam ignorado o ser e, ao longo dos séculos da idade moderna, o teriam mantido como uma temática des- curada ou até desnecessária. Contra isso, resumidamente, deve-se afir- mar: os dois fenômenos pertencem à vigência do ser mesmo. Também não são fenômenos que atestariam o falimento da verdade, o que de- correria numa deplorável situação ético-moral da humanidade atual, enfim, uma crise cultural-política. Mesmo se a intenção somente fosse diagnosticar o tempo crítico e atual, segundo o pensamento da histó- ria do ser, não seria confirmada nenhuma “crise”, no sentido estreito de estado de incertezas, vacilações e declínio. Antes, acentuar-se-ia o excesso de certeza e de confiança a respeito de quem somos ou qual suposta decisão é atualmente exigida. Desse modo, o núcleo da crise não seria tanto a abolição ou degradação da(s) verdade(s), mas uma pretensão que consistiria nisso: “que se sabe o que é o verdadeiro sem que se precise saber para tanto o que é a verdade”4. O ponto crucial,

portanto, seria uma sobreabundância de certezas.

Mediante esse predomínio da autocerteza se pode conquistar uma via para o reto entendimento do abandono e do esquecimento do ser conforme Heidegger os expõe. Nos Beiträge, essa é apresenta- da como a faticidade histórica caracterizada pela extrema ausência de constrição (Not-losigkeit) para o questionamento da questão fundamen-

4 M. Heidegger, Die Überwindung der Metaphysik, in Metaphysik und Nihilismus, GA 67, Frank- furt a. M., 1999, p. 147; tr. por. A superação da metafísica, in Nietzsche. Metafísica e niilismo, Rio de Janeiro, 2000, p. 153: „[...] was das Wahre sei, ohne daß man zu wissen brauche, was die Wahrheit

sei“. Para evitar confusão com a conferência de título semelhante, publicado no volume Weg- marken (GA 9), a citação será acompanhada da indicação do volume da GA.

tal da verdade do ser5. Tal falta nomeia, antes de tudo, não a inexistência

de recursos metodológicos ou tendências de pesquisas dessa questão, mas sim do tempo-espaço necessário, isto é, da abertura da existência humana, que determinaria o homem propriamente como o ente inteira e essencialmente coagido a questionar a questão da verdade do ser. Sendo que esta ausência ultrapassa o tempo presente, retroagindo-se ao início da metafísica e avançando a um término ainda indefinido, ela cunha o tempo da completa ausência da questionabilidade6. Desse

modo, a Notlosigkeit é a experiência histórica da metafísica enquanto o acontecimento fundamental do Ocidente.

Nesse sentido, não se carece de questionar a questão da verda- de do ser, porque, metafisicamente, a essência humana se consolida na relação com o ente guiada pela compreensão do ser (Seinsverständ- nis), segundo a qual o ser é interpretado como o mais universal e o mais corrente7. Na indiferença do maximamente universal, o ser não

é experimentado em sua essência histórica, é esquecido pela metafísi- ca8. Consequentemente, o ente permanece como presença constante e

representável: “aparece como objetualidade (Gegenstand) ou simples- mente dado diante da mão (Vor-handenes), como se o ser (Seyn) não se essenciasse”9. Por falta daquela constrição, portanto, o ente vigora

abandonado pelo ser (Seyn) e de tal modo que pode aparecer como o pu- ramente efetivo, cuja efetividade pode-se conhecer sem necessitar sa- ber do viger da essência da verdade. Para conhecê-lo, pois, é suficiente o modo metafísico predominante de mascarar a diferença entre ser e ente e esconder o abandono do ser, a saber, estabelecendo de determi- nada relação entre a causa e a realidade efetivada segundo os padrões usuais de compreensão do ente de cada época10. E assim se dá, porque

naquela compreensão de ser a história se desdobra. Mas qual história? Aquela que toma o ser nessa aparência e a enrijece em cada momento dos desdobramentos, portanto, a história da longa desconsideração da questão da verdade do ser. Em síntese, “do entulhamento da essência

5 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 112-13, 125; tr. esp., p. 103, 112. 6 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 108; tr. esp., p. 100.

7 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 116; tr. esp., p. 106 8 Cfr. M. Heidegger, Besinnung, p. 218; tr. por., p. 182.

9 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 115; tr. esp., p. 105: „[...] es [das Seiende] erscheint

sich als Gegenstand und Vor-handenes, als ob Seyn nicht weste“.

da verdade como o fundamento do Da-sein e da fundação da história provém a ausência de constrição”11.

Contudo, o abandono e o esquecimento somente correspondem a uma superficialidade e a uma indiferença da parte dos homens, se o ser continua sendo considerado como o indubitável, inquestionável, por ser tido como um vazio, já que o mais universal e mais corrente. A falta de constrição, justamente no seu caráter deficitário, isto é, de dissimular sua proveniência na verdade do ser, porém, pode tornar-se, segundo Heidegger, a constrição mais alta e mais oculta, desde que trazida à meditação histórica12 e visto que o abandono do ser é o nú-

cleo fenomênico da história da metafísica. Desse modo, ela se converte na constrição da falta de constrição (Not der Notlosigkeit), porque, pela primeira vez, obriga o homem a transformar sua essência metafísica no tempo-espaço de ressonância da abissalidade do ser. Assim, mudar- -se-ia a referência para com o ser como o universal e mais corriqueiro e usual na experiência de uma recusa em meio aos entes e, portanto, como o que se deixa apreender unicamente no abandono e no esque- cimento. Segundo a linguagem evocativa de Heidegger: o abandono e o esquecimento do ser, a partir de si mesmo, isto é, por intermédio de sua essencialização e correspondente à apropriação da essência hu- mana, provocam a constrição, “que só coage a partir da distância mais distante”13 e, assim, “traz para a ressonância a mais distante proximi-

dade para com a fuga dos deuses”14. Todavia, essa é outra faticidade

histórica, possibilitada somente no fim da metafísica, em que a com- preensão do ser que rege a referência para com os entes é invadida por uma ausência, proveniente da recusa do ser (Seyn). Pressentida

11 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 125; tr. esp., p. 112: „Aus der Verschüttung des

Wesens der Wahrheit als des Grundes des Da-seins und der Geschichtsgründung kommt die Notlo- sigkeit“. Tradução minha, grifos de Heidegger.

12 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 107, 112, 113; tr. esp., p. 99, 103, 104. Nessas páginas, a meditação, na realidade, há por tema o abandono e o esquecimento do ser. Em que modo a meditação histórica conduz ao reconhecimento da constrição (Not), isso foi ex- plicitamente exposto, mediante a confrontação com a consideração historiográfica, em M. Heidegger, Grundfragen der Philosophie. Ausgewählte »Probleme« der »Logik«, GA 45. Frankfurt a.M., 1992, p. 33-7, 39-43; tr. it., Domande Fondamentali della filosofia. Selezione di «problemi»

della «logica», Milano, 1990p. 32-5, 36-9.

13 M. Heidegger, Die Überwindung der Metaphysik, GA 67, p. 147; tr. por., p. 153: „[...] die Notlo-

sigkeit die höchste und verborgenste Not ist, die aus der fernsten Ferne erst nötigt“.

14 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 113; tr. esp., p. 103: „die Notlosigkeit in dieser Not,

aufbreche und die fernste Nähe zur Flucht der Götter zum ersten Anklang bringe“. Tradução mi-

desde o pensamento de Nietzsche e reconhecida como niilismo, essa ausência, porém, não teria sido fundamental-historicamente determi- nada em modo suficiente. De acordo com as anotações sobre o niilismo presentes nos Beiträge, não se percebeu o acontecimento que destina toda a história da metafísica: o abandono do ser15. Em todo caso, a ex-

periência do estar ausente do ser é tida como fundamental e imprescin- dível, para que emerja a necessidade de criar em meio ao ente o tempo- -espaço, em que a divindade e a humanidade possam vir ao encontro e se essencializarem em mútua pertinência16.

Na travessia do Dasein ao Da-sein17 e, mediante ela, a fundação da

história do outro princípio pressupõe, no pensamento da história do ser, um fundamento histórico-ontológico. Este é compreendido como o suporte da experiência fático-histórica da ausência do ser por toda parte, assim como do esquecimento do ser na forma de equivalência do ser ao vazio do conceito universal. Consequentemente, nesse fun- damento também se sustentam desde a evidência e a certeza absoluta da compreensão metafísica do ser até a negação e a desconfiança nii- listas que haja algo como ser. Esse fundamento é o abandono do ser. Por isso, as várias tentativas do Beiträge de conceber esse fenômeno insistem na retração como sendo o traço fundamental do ser (Seyn).

15 O problema do niilismo é afrontado, nos Beiträge, a partir da Fügung da ressonância, nas me- ditações 55, 57 e 72. Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 115, 119-20, 138-41; tr. esp., p. 105, 108-09, 122-23. Em M. Heidegger, Die Überwindung der Metaphysik, GA 67, p. 147; tr. por., p. 153, resume-se que o abandono do ser é a essência histórico-ontológica do niilismo. Sobre o problema no niilismo a partir do pensamento da história do ser, cfr. A. Boutot, Méta-

physique et nihilisme. Le trois paradoxes de l’histoire de l’être, in Heideggers Beiträge zur Philosophie

(Internationales Kolloquium), Frankfurt a. M., 2009, p. 181-91; M. Herren, Heidegger et l’essence

du nihilisme, in Heideggers Beiträge zur Philosophie (Internationales Kolloquium), Frankfurt a. M.,

2009, p. p. 193-202; M. Ruggenini, L’essenza della tecnica e il nichilismo, in Guida a Heidegger, Roma/Bari, 2012, p. 235-76.

16 Cfr. M. Heidegger, Besinnung, GA 66, Frankfurt a.M., 1997, p. 219; tr. por., tr. por., Meditação, Petrópolis, 2010, p. 183.

17 Com a grafia Dasein, indica-se o ente, ao qual pertence a possibilidade de compreender o todo a partir de uma compreensão por mor de si e, portanto, que possui o privilégio realizar seu ser nessa autocompreensão, conforme descrito em Sein um Zeit. Com a grafia Da-sein, ao contrário, coloca-se em relevo o sentido do ser desse ente consonante ao pensamento da his- tória do ser: que essa compreensão de si depende, antes de tudo, de estar-lançado na clareira histórica que a possibilita (o Da-) e, portanto, acontece em íntima conexão com a experiência histórico-fática de cada época. Sobre essa segunda elaboração, como é terminologicamente apresentada nos Beiträge, acentuando o caráter de oscilação e contraimpulso entre ausência do ser e projeto, cfr. F.-W von Herrmann, Wege ins Ereignis, p. 59-60.

É o ser mesmo que se retrai do ente em seu acontecimento histórico. Em síntese, “que o ser (Sein) abandona o ente quer dizer: o ser (Seyn) se oculta na manifestação do ente. E o ser (Seyn) determina a si mesmo e essencialmente como este ocultar que se subtrai”18. Então, é no ocul-

tamento do ser que devem ser procuradas as verdadeiras razões da situação histórica da humanidade atual, que Heidegger descreve na forma de um desenraizamento da faticidade humana da verdade do ser19, acompanhada por um intenso obscurecimento do mundo20. Esse

contexto histórico atual, que encobre o abandono do ser, anunciar-se-ia nas relações com o ente marcadas pela tendência ilimitada de calcu- lar (no significado específico de antecipar em teses e regras o sentido da totalidade dos entes e dele se certificar por meio de planificações e organizações) em oposição a uma autêntica disposição ao questiona- mento; pela rapidez dos processos fugazes em vez da postura resis- tente na espera que respeita o ritmo temporal próprio do medrar dos acontecimentos existenciais e históricos; enfim, pela predominância do massivo, segundo o qual tudo deve ser conhecido por todos segundo o sentido mais comum e no modo mais rápido possível, favorecendo a intensificação do cálculo. Em síntese, a tendência para o cálculo, a ra- pidez e o massivo, determinante do modo de ser do homem hodierno, funda-se na ocultação do ser.

Contudo, tal situação histórico-fática desenha esse estado de de- sarraigamento, porque a história do primeiro princípio o preparou e nele vigorou desde os seus inícios. Em vez de uma repreensão moral à tradição metafísica, com essa tese defende-se que, sendo aquela a his- tória da alethéia (ἀlήqeia), a toda ela também pertence essencialmente o abandono do ser, não obstante o pensamento da história do ser dos Beiträge precise o abandono do ser como sendo “uma época singular da história do ser”21, isto é, explicitamente, o final da metafísica. Entretan-

18 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 111; tr. esp., p. 102: „daß das Sein das Seiende verläßt,

besagt: das Seyn verbirgt sich in der Offenbarkeit des Seienden. Und das Seyn wird selbst wesentlich als dieses Sichentziehende Verbergen bestimmt“. Tradução minha, grifos de Heidegger.

19 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 116-7; tr. esp., p. 106.

20 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 119, 120-22; tr. esp., p. 108, 109-10. Inclui a argumentação a respeito dos fenômenos constituintes da maquinação: o cálculo, a rapidez e o massivo.

21 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 120; tr. esp., p. 108: „Die Seinsverlassenheit bestimmt

ein einzigartiges Zeitalter in der Geschichte der Wahrheit des Seyns. Es ist das Seynsalter der langen Zeit, in der die Wahrheit zögert, ihr Wesen ins klare zu geben“. Tradução e grifos meus. Inclui a

to, sendo a metafísica o desdobrar do abandono, esse é o caráter emble- mático toda a sua história. Por isso, a citação acima segue: o abandono do ser “é a idade do ser (Seyn) de um longo tempo, no qual a verdade hesita em por às claras sua essência”. Nesse sentido, o esquecimento operado pela metafísica é uma consequência esperada, o aceno que aponta para seu próprio fundamento22, no sentido que o abandono do ser vigora

no interior da ἀ-lήqeia, por ser essa, por princípio, o desocultamento da clareira que se vela. Por outro lado, como a ἀlήqeia se consolidou na correção do re-presentar (Vor-stellen), não se questionou justamen- te o traço do ser enquanto “ocultação que se subtrai”, privilegiando somente o que dele se desvela e aparece no e como ente, do qual a determinação platônica do ser como ἰdέa seria o impulso e primeiro testemunho. Em síntese, em razão do abandono do ser ao longo da experiência que desdobra a história da metafísica, algo que é somente perceptível no seu acabamento, acentuou-se a manifestação do ente, deixando de questionar aquilo sem o qual não haveria essa manifes- tação. Daí o porquê o ente foi entregue à maquinação que, na situação extrema e final, opera-se por meio do cálculo rápido e massivo.