• Nenhum resultado encontrado

Instituto de Filosofia e Teologia de Goiá

2. O esquecimento do ser

Como fenômeno histórico-essencial, o abandono do ser possui seu correlato, o esquecimento do ser. Conforme os Beiträge, “o aban- dono do ser é o fundamento do esquecimento do ser”23, mas “ambos ao

fundo são o mesmo”24. Na referida obra, as considerações específicas

ao esquecimento do ser não vão muito além da afirmação dessa in- terdependência entre os dois fenômenos. Por outro lado, deve-se ter em vista a substancial meditação a respeito das ciências, realizada em conexão com a Fügung da ressonância, com o propósito de mostrar que essas últimas são fenômenos da modernidade responsáveis por consolidar o abandono do ser25. É acentuado, então, que, em razão da

próxima citação.

22 Cfr. M. Heidegger, Besinnung, p. 218; tr. por., p. 182.

23 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 114; tr. esp., p. 104: „Die Seinsverlassenheit ist der

Grund der Seinsvergessenheit“. Tradução minha, grifo de Heidegger.

24 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 113; tr. esp., p. 103: „Beides ist im Grunde das selbe“. Tradução minha.

essência das ciências serem um arranjamento que erige um saber cons- tituído por um contexto de correções (verdade como Richtigkeit)26, por-

tanto, por faltar a elas um genuíno saber histórico e criativo-transfor- mador da verdade do ser, é inevitável às ciências se afirmarem como um saber maquinador. De acordo com tal meditação, essa essência maquinadora seria reconhecível, sobretudo, no fato que seu método e sua específica exigência de rigor e exatidão conduzem a atestar a neces- sidade de si mesmas somente por meio de uma crescente obtenção de resultados27, portanto, não pela experiência de uma constrição gerada

na ausência da verdade do ser. Sendo as ciências um fato e um feito do existir humano, aquele que caracteriza o estar em meio ao ente na época moderna, nessa perspectiva, entrevê-se ao longo dessa medita- ção uma concreta manifestação do esquecimento do ser, no sentido de que as ciências forçam o definitivo olvido do abandono que reina no interior da ἀlήqeia, no fundamento da metafísica. Assim, devido a este papel decisivo das ciências (enquanto designação do modo de ser humano na modernidade) na consumação do abandono, é por sus- peitar que entre as expressões “abandono do ser” e “esquecimento do ser” há a passagem de um genitivo subjetivo para um objetivo. Nesse último caso, o esquecimento salientaria para uma “particular” respon- sabilidade e implicância humana na ocultação, embora permaneça um evento da história do ser.

À parte dessa meditação do esquecimento operado pelas ciências e o papel delas na preparação da ressonância do abandono do ser na existência na passagem para o outro princípio, afirma-se concisamente sobre o esquecimento nos Beiträge: “esse esquecimento do ser, porém, corresponde à dominante compreensão do ser (Seinsverständnis), ou seja, aquele, antes, é completado por meio dessa e, por meio dela, es- conde a si mesmo”28. Ora, desde Sein und Zeit, qualquer compreensão

do ser não é identificada com nenhum conjunto de teses e doutrinas, mas sim com um sentido da existência humana ao se situar em meio ao ente. Mesmo que a afirmação acima não se remeta diretamente ao exis- tencial da compreensão (Verstehen), mas sim aos traços específicos da

26 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 145; tr. esp., p. 127. 27 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 147-48; tr. esp., p. 128-29.

28 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 116; tr. esp., p. 106: „Dieser Seinsvergessenheit aber

entspricht das herrschende Seinsverständnis, d.h. sie wird als solche erst vollendet und sich selbst verdeckt durch dieses“. Tradução minha.

interpretação metafísica do ser a partir da universalidade e como o ca- ráter comum a todos os entes – portanto, não diferenciado, equivalente -, ela deve ser encaminhada para a experiência das relações do homem com os entes ao longo da história da metafísica. Desse modo, o esque- cimento do ser, como é colocado em relevo em Besinnung (1938/39), é o lugar da decisão da permanência ou não nessa interpretação e, cor- respondentemente, do envio da história vindoura do homem29. Nesta

ótica, em todo lidar ou não lidar com o ente, está em jogo se o ser con- tinua sendo o que há de mais comum nos entes ou se passa a ser um acontecimento único e insólito, um evento singular a cada época, que é cada vez um diferenciar-se, em síntese, abissal e, portanto, que de quando em quando abala as certezas sobre as quais o humano constrói suas pontes para os entes. Enfim, enquanto decisão, o esquecimento do ser seria a possibilidade de um autêntico questionar da verdade do ser: “este esquecimento seria, então, um mergulho na ausência de questionamento em relação ao que há de mais questionável – o que há de mais ingente a se estender de maneira abissal sob a superfície fina do homem esquecido do ser”30.

Contudo, suposto que se cumpra uma decisão em favor de outra e mais originária interpretação do ser e, com isso, se dê aquele saber que transforme o homem na sua essência enquanto animal rationale a partir da experiência do abissal que se abre no abandono do ser, não é certo que o esquecimento do ser será superado. Assim como o abandono do ser é um fenômeno inextricável da história do ser, do mesmo modo é o esquecimento em relação à experiência humana de ser em meio aos entes. E isso porque toda apropriação da existência humana é abertura do tempo-espaço (o Da-), em que o ente pode aparecer e que sustenta a clareira de ocultação do ser, portanto, um acontecimento que o impele a voltar-se para o ente e esquecer-se do ser. Nesse sentido, o esquecimento é o modo de ser privilegiado para experimentar a recusa do ser na forma de uma permanente ausência, como esclarece Heidegger:

“No pensar da história do ser (Seyn) só se rompe a superfície do esquecimento do ser, mas nunca se supera o próprio esquecimento.

29 Cfr. M. Heidegger, Besinnung, p. 218; tr. por., p. 182-83.

30 M. Heidegger, Besinnung, p. 219; tr. por., p. 183: „Dieses wäre dann ein Versinken in der Fraglo-

sigkeit gegenüber dem Fragwürdigsten – das Unheimlichste, was unter der dünnsten Oberfläche der Selbstgewißheit des seinsvergessenden Menschen sich abgründig ausbreitet“.

Ao contrário, o esquecimento é ‘apenas’ aberto em sua abissalida- de. Esse esquecimento pertence à insistência na clareira do ente; ser o Da, no interior do qual se encontra o ente, significa ao mesmo tempo, no interior da clareira do Da, estar ausente do ser (Sein) mesmo e de sua verdade. Esse estar ausente pertence ao Da-sein, possibilitando e obrigando o homem como aquele ser que, na con- servação, configuração e descerramento do ente, consegue assu- mir a custódia da verdade do ser. O estar ausente da recusa velada mantém o homem afastado do fundamento de sua própria essên- cia, um fundamento que é, por isto, a-bismo que mantém aberto o esquecimento. Esse esquecimento do ser, porém, é ao mesmo tempo o fundamento para a possibilidade e a necessidade de todo aquele esquecimento que impera inteiramente, como a não reten- ção do ente, através do comportamento do homem”31.

Daí, conclui-se: a ressonância do ser, que provoca a passagem para outro princípio e a transformação do homem é o existir do hu- mano vibrando no necessário esquecimento do ser, no sentido acima de pertinência ao aberto da recusa e da ausência do ser. Para tanto, desde o princípio, Heidegger deve admitir que o existir se determina (be-stimmt) como se fosse um canal de ressonância, isto é, no vibrar em que soa a “voz (Stimme) silenciosa do ser”32 em determinada repercus-

são (Stimmung, tonalidade afetiva). Dita e pensada a partir da fatici- dade histórica atual, essa experiência traduz-se numa afinação (Ges- timmtheit) com o nada ou recusa do ser, um estar atentamente absorto na abissalidade do ser33, retendo-se pensativo nesse acontecimento, em

31 M. Heidegger, Besinnung, p. 219-20; tr. por., p. 184: „Im seynsgeschichtlichen Denken wird nur

die Oberflächlichkeit des Seinsvergessenheit durchbrochen, niemals jedoch die Vergessenheit selbst überwunden, sondern »nur« in ihre Abgründigkeit eröffnet. Diese Vergessenheit gehört zur Instän- digkeit in der Lichtung des Seienden; das Da zu sein, in das das Seiende hereinsteht, bedeutet zu- gleich, innerhalb der Lichtung des Da weg zu sein von dem Sein selbst und seiner Wahrheit. Dieses Wegsein gehört in das Da-sein und ermöglicht und nötigt den Menschen als jenes Wesen, das im Bewahren und Gestalten und Erschließen des Seienden die Wächterschaft für die Wahrheit des Seyns zu übernehmen vermag. Das Wegsein von der verhüllten Verweigerung hält den Menschen ab vom Grund seines eigenen Wesens, der in sich deshalb der Ab-grund ist, den die Vergessenheit offenhält. Diese Seinsvergessenheit aber ist zugleich der Grund für die Möglichkeit und Notwendigkeit all jenes Vergessens, das als Nicht-Behalten des Seienden das Verhalten des Menschen durchherrscht“. Tradu-

ção ligeiramente modificada, grifos de Heidegger.

32 M. Heidegger, Nachwort zu: ‚,Was ist Metaphysik?“, in Wegmarken, GA 9, Frankfurt a.M., 2004, p. 306, 310; tr. por., Posfácio a “O que é metafísica?, in Marcas do caminho, Petrópolis, 2008, p. 319, 322. 33 O que caracterizará o sentido próprio de estar ausente de si (Weg-sein), como se descreverá na

síntese, poder-se-ia dizer, em um próprio esquecimento do abandono do ser. Nesse modo de propriamente esquecer, atuaria, em modo de- cisivo, “a tonalidade afetiva condutora da ressonância: o assombro e o receio, mas surgindo, cada vez, da tonalidade afetiva fundamental da retenção”34. Se o homem se esquece de esquecer propriamente do ser,

isto é, se o pensar não é recordação obrigada, entonada e afinada com o abissal do ser, as suas referências com os entes se tornam experiências de retê-los mediante a violência e o poder arbitrário.

Referências

BOuTOT, Alain. Métaphysique et nihilisme. Le trois paradoxes de l’histoire de l’être, in Heideggers Beiträge zur Philosophie (Internationales Kolloquium). Frank- furt a. M.: Vittorio Klostermann, 2009, p. 181-91.

HEIDEGGER, Martin. Nachwort zu: »Was ist die Metaphysik?«. In Wegmarken, GA 9, Frankfurt a.M. : Vittorio Klostermann, 2004, p. 303-12; tr. por., Posfácio a “O que é metafísica? In Marcas do caminho. Tradução de E. P. Giachini, E. Stein. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 315-25.

______ Grundfragen der Philosophie. Ausgewählte »Probleme« der »Logik«, GA 45. Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann, 1992; tr. it., Domande Fondamentali della filosofia. Selezione di «problemi» della «logica». Tradução de u. M. Ugazio. Mila- no: Mursia, 1990.

______ Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), GA 65. Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann, 2003; tr. esp., Aportes a la Filosofía. Acerca de evento. Tradução de D. V. Picotti C. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2006.

______ Besinnung, GA 66. Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann, 1997; tr. por., Meditação. Tradução de M. A. Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010.

______ Die Überwindung der Metaphysik, in Metaphysik und Nihilismus, GA 67. Frankfurt a. M.: Vittorio Klostermann, 1999, p. 3-174; tr. por., A superação da metafísica. In Nietzsche. Metafísica e niilismo. Tradução de M. A. Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 14-177.

HERREN, Michel. Heidegger et l’essence du nihilisme. In Heideggers Beiträge zur Philosophie (Internationales Kolloquium). Frankfurt a. M.: Vittorio Klostermann, 2009, p. 193-202.

34 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 107; tr. esp., p. 99: „Die Leitstimmung des Anklangs:

MAGRIS, Aldo. I concetti fondamentali dei «Beiträge» di Heidegger. In Annuario filosofico, 8 (1992). Milano, p. 229-68.

SCHüSSLER, Ingeborg. Le système et la fugue: deux modes de penser. In Heideg- gers Beiträge zur Philosophie (Internationales Kolloquium). Frankfurt a. M.: Vitto- rio Klostermann, 2009, p. 85-102.

PöGGELER, Otto. Heideggers logische Untersuchungen. In Martin Heidegger. Innen- und Außenansichten. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1989, p. 75-100.

RuGGENINI, Mario. L’essenza della tecnica e il nichilismo. In Guida a Heideg- ger. Roma/Bari: Editori Laterza, 2012, p. 235-76.

VON HERRNANN, Friedrich-Wilhelm. Effetti e aspettative. Uno sguardo re- trospettivo e uno sguardo prospettico sull’Edizione Completa delle opere di Martin Heidegger. In Heidegger e ‘I problemi fondamentali della fenomenologia. Sulla «se- conda metà» di ‘Essere e tempo’. Tradução de C. Esposito. Bari: Levante Editori, 1993, p. 73-89.