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Fábio François Mendonça da Fonseca Universidade Federal do Rio de Janeiro

3. Remissão Epistêmica

Convém explicitar a evidência ordinária em seu caráter pro- posicional, verdadeiro e verificado. Seja uma remissão epistêmica or- dinária a composição do enunciado, a efetividade daquilo de que ele se trata segundo os parâmetros de descoberta [Entdecktheit] disponi- bilizados na mundanidade, e por fim sua respectiva verificação. Con- sidere-se ainda um déficit epistêmico entre situação de proferimento

e situação pretendida de verificação, que dá sentido ao proferimento do enunciado.

Heidegger discrimina com clareza a remissão tripla do enun- ciado (ST, 154-155) como remissão predicativa e categórica. Olhemos mais de perto. O enunciado é de saída [i] remissão no que tão somente refere ou menciona, seja de modo ocasional ou identificador. É [ii] re- missão predicativa, segundo algum aspecto geral normalizado a partir da lida, ou seja, a explicitação do “como” hermenêutico; tal aspecto precisa ser manejável entre a situação de proferimento e a situação de verificação e igualmente explicitável nas duas, do que decorre a sua generalidade. Por fim, ele é [iii] remissão categórica, segundo con- dições ideais de sentido que configuram um âmbito público, suposto pela comunidade, em que o objeto é pensado como dado em si mesmo, independentemente de qualquer ponto de vista ou situação concreta de proferimento. Podemos chamar este âmbito hipotético de ágora, o lugar visado pelo discurso “categórico”. Este é sentido tradicional de apófansis, é neste lugar hipotético em que qualquer enunciado “apon- ta” mesmo para coisas que não estão presentes na situação de proferi- mento. Em geral, dado o déficit epistêmico mencionado, este âmbito não se contém nos limites imediatos da situação de proferimento, mas é a partir dela presumido (o termo Vorhanden, neste pormenor, se mos- tra assim um tanto equívoco).

A evidência é um enunciado verdadeiro e verificado enquanto tal. Logo, além de uma remissão predicativa e categórica, é ainda correta e verificada. Em especial ela é [iv] remissão correta, no sentido tradicional da verdade real, aquilo de que se trata como se mostraria nas condições ideais de sentido presumidas na remissão categórica [iii]. Esta remissão é pensada como estabelecida em si mesma independente de uma veri- ficação concreta, dadas as significações sustentadas em comunidade e a independência em princípio do ente subsistente em relação a estas mes- mas significações, o que é implicitamente retido na possibilidade de ne- gação do enunciado. Ela é por fim [v] remissão verificada, na presunção de que o objeto foi trazido a uma situação de proferimento que atende às condições ideias pensadas na remissão categórica [iii].

As remissões [i], [ii] e [iii] são desempenhadas na situação de proferimento e não proveem por si só a situação de verificação, ainda

que a presumam. As remissões [iv] e [v] são aquelas que compõem a situação de verificação.

O que Heidegger entende ser a evidência fenomenológica é a re- missão tout court pensada em [i]. Ao tomá-la como meio epistêmico do desvelamento, e ao sustentar este último como gênero para a descober- ta, tornou-a igualmente o meio epistêmico de um tipo de descoberta do ente intramundano, o enunciado e sua verificação. Vê-se então da parte de Heidegger uma tendência a tentar reduzir a ela todas as ou- tras funções como meras explicitações sem o acréscimo de conteúdo epistêmico que intuitivamente se esperaria5. O exemplo mais notável e

que gerou maior repercussão desta tendência é a tentativa de elucida- ção da verdade empreendida no § 44-a (ST, 217-218).

A objeção de Tugendhat a respeito deste trecho se baseia funda- mentalmente na eliminação sub-reptícia do “como” e do “em si mes- mo” na definição do enunciado verdadeiro como enunciado descobri- dor do ente6. Descobrir o ente sem estes qualificativos pode resultar

também em enunciados falsos, justamente num modo bastante análogo à pretendida evidência fenomenológica. Neste caso, segundo nossa proposta, o que acontece é que não se completa uma remissão epistêmi- ca, cumpre-se tão somente a mera função referencial do termo sujeito.

Entra ainda aqui uma eliminação adicional do déficit epistêmico que dá sentido ao proferimento do enunciado, o que fica testemunha- do quando Heidegger propõe um exemplo não de todo natural, que lembra algum jogo de reminiscência. A manobra dá a entender que a verificação do enunciado é somente explicitação de um conteúdo com- pactado na evidência identificadora e não o acréscimo que se esperaria de conteúdo epistêmico novo num ato subsequente, o que é o mais frequente dado o deslocamento entre situação de asserção e situação de verificação que informa este déficit. De modo geral, há uma ten- tativa de se ler o enunciado como uma remissão ocasional (“o ente se descobre sendo o mesmo referido pelo enunciado”), para contornar a bivalência. Isto no entanto trivializa a fronteira natural entre situação imediata de proferimento e âmbito de remissão mediada para eventual situação de verificação. Este colapso, por sua vez, se dá em sintonia com uma tendência por parte de Heidegger em confundir de modo sis-

5 Heidegger, M., Os Problemas Fundamentais da Fenomenologia, p. 304-305. Tugendhat, E., Heidegger’s Idea of Truth, p. 87.

temático situação hermenêutica e mundo, de modo a que entes ausen- tes sejam pensados como “presentes”, “manifestos”, “vistos”, mesmo quando tão somente, imaginados, compreendidos ou considerados7.

De modo geral, Heidegger nestas ocasiões abusa de duas ambi- guidades da linguagem natural, ao eliminar a presunção realista do ente subsistente que as torna inofensivas. “Ver” e “mostrar” são com frequência tomadas como metáforas para “compreender” e “explicar”. O apelo desta analogia vem do mencionado ponto de vista hipotético da ágora impessoal que regula as condições ideais de verificação, e que é pensado como se fosse uma situação de verificação desempenhada por um observador abstrato, ideal e onipresente. Além disso, os senti- dos do verbo “conhecer” relativos a identificação, familiaridade e lida curadora sugerem por vezes que o conhecimento seja pensado como uma relação imediata com um objeto e não uma atitude proposicional, quer dizer, uma relação intencional com um estado de coisas. O enga- no aqui reside em perder de vista que os sentidos mencionados envol- vem conteúdo proposicional implícito, algo que se pode “saber que”.