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Alexandre de Oliveira Ferreira Universidade Federal de São Paulo

Esse trabalho busca retomar a discussão entre Heidegger e Cas- sirer em Davos, mostrando como ambos interpretam Kant a partir de projetos filosóficos distintos. Para Heidegger a Crítica da Razão Pura é vista como uma tentativa de fundamentação da metafísica onde a lógica e a estética transcendentais seriam o correspondente kantiano da metafísica geral, ou seja, da pergunta pelo ente enquanto tal na to- talidade. Ao passo que a dialética transcendental seria o correspon- dente da metafísica especial relativa aos três domínios ônticos funda- mentais da natureza, do homem e de Deus. Assim, para Heidegger, a Crítica da Razão Pura não pode ser pensada como uma ontologia regional da natureza, devendo antes ser tomada como uma ontologia geral. Desse modo, para Kant, como para toda ontologia tradicional, o sentido do ser seria determinado mediante a categoria da subsis- tência ou substancialidade (Vorhandenheit), pensada agora a partir do projeto fisco matemático da ciência moderna, carecendo, como toda ontologia tradicional, de uma analítica da finitude humana enquanto origem da pergunta metafísica pelo ente na totalidade. Para Cassi- rer, ao contrário, a inovação do pensamento kantiano estaria precisa- mente no rompimento com a metafísica antiga, baseada na ideia do ser como subsistente, mostrando que cada domínio do ser (natureza, arte, moralidade, etc.) possui sua ontologia própria e seu modo de-

terminado de objetividade. Para Cassirer, não se trata de pensar o ser mediante uma origem comum, mas antes de concebê-lo como uma multiplicidade funcional de significados. Por fim, procurar-se mos- trar as vantagens e as limitações de cada uma dessas interpretações.

Em seu Kantbuch Heidegger deixa claro que o livro visa interpre- tar a Crítica da Razão Pura a partir do projeto de uma fundamentação da metafísica mediante uma ontologia fundamental da finitude humana. Longe de fazer uma exegese do texto kantiano, Heidegger buscaria retomar um problema fundamental da metafísica ocidental, a relação entre ser e finitude, entre ser e tempo, abrindo-o e liberando-o em suas possibilidades ocultas. Assim, a verdadeira interpretação não consis- tiria em reproduzir aquilo que foi dito por um determinado filósofo, mas antes em mostrar o ainda não dito naquilo que foi dito. Não se trata de repetir o que Kant expressou em sua obra, mas sim de mostrar o que ele deveria ter dito, o que implicaria necessariamente em exercer violência sobre o texto a ser interpretado.

Com isso, Heidegger parece proteger-se de toda crítica que quei- ra questionar a fidelidade de sua interpretação à letra do texto kan- tiano. Logo, uma avaliação da interpretação heideggeriana deve ser feita a partir dos pressupostos dos quais Heidegger se vale para pensar Kant. Ou seja, devemos questionar se o projeto heideggeriano de uma metafísica do Dasein, enquanto condição de possibilidade da funda- mentação da metafísica, expressa o não dito na obra de Kant. Para tan- to, faremos primeiramente uma breve exposição de Kant e o Problema da Metafísica e, então, apoiando-nos nos comentários de Cassirer sobre o Kantbuch, levantaremos algumas questões acerca da assim denomi- nada metafísica do Dasein.

Heidegger inicia seu Kantbuch questionando certa visão do neokantismo, segundo a qual a Crítica da Razão Pura deveria ser pen- sada como uma teoria do conhecimento baseada nas ciências matemá- ticas da natureza. Para ele, a Crítica da Razão Pura deve ser antes lida como uma tentativa de fundamentação da metafísica. Kant teria herda- do de Baumgarten a ideia de metafísica como a ciência dos primeiros princípios do conhecimento humano divida em ontologia, cosmologia, psicologia e teologia naturais. A ontologia se refere à metafísica geral que investiga o ente enquanto na totalidade, ao passo que as outras

três disciplinas se referem a divisão da totalidade do ente em Deus, Alma e Mundo.

Heidegger reconhece que para Kant a verdadeira metafísica é a metafísica especial, ou seja, o conhecimento do ente supra-sensível. Entretanto a possibilidade de tal conhecimento dependeria primei- ramente de uma investigação transcendental acerca dos princípios a priori do conhecimento humano nos quais nos são dadas as condi- ções de possibilidade dos objetos. Isso faz com que a pergunta pela possibilidade do conhecimento do ente enquanto tal, tarefa da me- tafísica geral, deva preceder toda metafísica especial. E aqui Heide- gger parte da definição kantiana de transcendental para introduzir sua pergunta pelo ser pensada a partir da ontologia fundamental. Como se sabe, Kant define o conhecimento transcendental como aquele “que em geral se ocupa menos dos objetos, do que do modo de os conhecer, na medida em que este deve ser possível a priori.” Para Heidegger essa definição indicaria que a metafísica geral não se ocupa com o ente, e sim com sua constituição de ser. A pergunta pelo que é o ente enquanto tal remeteria assim à pergunta pelo conheci- mento prévio do ser do ente fazendo com que Crítica da Razão Pura não possa ser vista como uma teoria da experiência, do conhecimen- to ôntico, e sim uma ontologia no sentido heideggeriano (HEIDEG- GER,1990, p. 17). A possibilidade do conhecimento transcendental estaria na transcendência do Dasein, na possibilidade de ultrapassar os entes compreendendo-os em seu ser. Assim, a pergunta “como são possíveis juízos sintéticos a priori?” é vertida para as perguntas sobre “como é possível a síntese ontológica? Como corre a compreensão de ser na essência finita do Dasein?”

Para Heidegger é um pressuposto da Crítica da Razão Pura que o campo orginário para fundamentação da metafísica seja a finitude do conhecimento humano. Isso se justificaria pelo fato de Kant afirmar que todo conhecimento é primeiramente intuição. Heidegger define o conhecimento como uma intuição pensante, buscando mostrar, ao contrário do que sustentam os neokantianos, que há em Kant (pelo me- nos na primeira edição da Crítica) uma precedência da intuição sobre o entendimento. Só pode ser pensado aquilo que primeiramente é dado na intuição. Entretanto, para que a intuição possa se tornar conheci-

mento, aquilo que foi intuído deve ser tomado como algo. “A intuição finita necessita sempre, para se tornar conhecimento (Erkenntnis), de uma determinação daquilo que foi intuído como isso ou aquilo”. Essa determinação geral do que foi intuído, mediante a qual uma multi- plicidade é submetida a um conceito, é função do entendimento. As- sim, à intuição humana finita, cujas formas puras são, como se sabe o espaço e o tempo, contrapõe-se o intelecto divino enquanto “intuitus originarius”. Deus não necessitaria de conceitos para pensar pois ele é intuição pura, intuição essa que é ato puro, pois ao mesmo tempo que conhece cria o objeto. Nesse sentido Deus não pensa, apenas intui, o pensamento seria uma característica da finitude humana, que não cria o objeto, para qual um objeto precisa ser primeiramente dado para en- tão ser pensado.

A referência ao primado da intuição permite a Heidegger intro- duzir o tempo como condição de possibilidade da síntese ontológica, da compreensão do ser para um conhecimento finito. Isso fica claro quando ele atribui um papel central ao esquematismo no corpo da Crítica da Razão Pura. Seria no capítulo dedicado ao esquematismo que Kant teria tocado, sem que soubesse, no problema fundamental da metafísica ocidental. Assim, a união entre pensamento e intuição, na qual o ente encontrado torna-se manifesto (verdadeiro) como ob- jeto, só é possível devido aos esquemas da imaginação que unem, mediante a forma pura do tempo, os dados na intuição às categorias do entendimento. Os esquemas da imaginação, enquanto determina- ções transcendentais do tempo, moldariam o horizonte da transcen- dência no qual os entes ganham sua objetividade. A imaginação não seria apenas mais terceira faculdade ao lado da intuição e do entendi- mento, mas antes a raiz que faz brotar e sustenta esses dois ramos do conhecimento puro e faz ver o tempo como horizonte transcendental da pergunta pelo ser.

Assim, Kant haveria tocado, sem que soubesse, no problema fun- damental da metafísica ocidental, ou seja, na necessidade de funda- mentar a metafísica, o conhecimento do ser do ente na totalidade, na existência finita do Dasein humano, indicando o tempo como horizon- te transcendental para a compreensão do ser. O passo seguinte dessa fundamentação seria, portanto, a investigação acerca do ser humano:

“ Mas toda pergunta pelo ser de um ente é metafísica e, sobre- tudo, a pergunta pelo ser daquele ente a cuja constituição de ser pertence a finitude como compreensão de ser. Assim, a funda- mentação da metafísica funda-se em uma metafísica do Dasein. Deveria nos causar espanto que uma fundamentação da metafí- sica deva ser ao menos também metafísica e mesmo uma metafí- sica assinalada?” (HEIDEGGER, 1990, p.230)

Entretanto, Kant não teria levado às últimas consequências sua descoberta, recuando do caminho aberto pela crítica, por tomar como evidentes as noções de ser e verdade herdadas da ontologia tradicional, sobretudo da metafísica de Descartes. Assim, o ser humano é visto pela perspectiva cartesiana como sujeito e os demais entes são pensados como objetos postos pelo sujeito que representa. Ambos, sujeito e obje- to, são tomados a partir da determinação do ser como subsistência. A verdade é vista como concordância, não mais do pensamento ao ente, mas do ente ao pensamento e o local da verdade é o juízo, o que indica uma primazia da lógica sobre a ontologia. Isso fica claro segundo Hei- degger, pelo fato o entendimento se sobrepor à intuição na segunda edição da Crítica da Razão Pura. Desse modo, Kant teria abandonado o solo que ele mesmo descobrira e não teria dado o passo decisivo em direção à metafísica do Dasein.

Qualquer bom leitor de Kant, como Cassirer, percebe os proble- mas que envolvem a interpretação heideggeriana. Cassirer não discor- da de Heidegger em relação ao papel central da imaginação na analíti- ca transcendental. Entretanto, discorda radicalmente da tese de que a Crítica da Razão Pura deva ser pensada como uma tentativa de funda- mentação da metafísica. Se a metafísica para Kant é o conhecimento do supra sensível, então ela não se perfaz na analítica transcendental, mas no todo do sistema kantiano, passando pela dialética transcendental e se estendo às outras duas críticas. “O tema ‘Kant e o problema da me- tafísica’ não pode ser tratado exclusivamente sub specie do capítulo do esquematismo, e sim sub specie da doutrina kantiana das ideias e, em especial, sub specie da doutrina kantiana da liberdade e de sua doutrina do belo.(CASSIRER, 1929, p.18)”

Seria sobretudo na Crítica da Razão Prática que a investigação so- bre a essência do homem se daria de modo mais radical, não como

uma antropologia, mas antes como uma doutrina da liberdade, a qual se aplica não apenas ao homem mas a todo ser racional em geral. Ali, a essência humana é pensada a partir da ideia de humanidade: “o seu verdadeiro alvo não é o Dasein no homem e sim o ‘substrato inteligí- vel da humanidade.(CASSIRER, 1929, p.19)” Seria, portanto, no campo das ideias da razão, as quais não encontram nenhum correspondente nos esquemas da imaginação, que a essência do homem deve ser bus- cada. No uso prático da razão o ser humano, mediante a lei moral, re- conhece sua essência inteligível, desapega-se das meras determinações temporais e vislumbra o atemporal.

Para Cassirer, ao reduzir todo ser à dimensão do tempo e à finitude do Dasein, Heidegger teria negligenciado a divisão funda- mental estabelecida por Kant entre um mundo sensível e um mun- do inteligível e passado ao largo do problema central da metafísica kantiana que não seria a relação entra ser e tempo, e sim entre ser e dever, entre experiência e ideia. Mais ainda, Heidegger teria visto na Crítica da Razão Pura a pergunta pelo ente enquanto tal na totalida- de, fazendo da doutrina do esquematismo a base de uma metafísica geral kantiana que remeteria, em última instância, a uma analise da subjetividade do sujeito, quando na verdade a doutrina do esquema- tismo seria um componente fundamental de uma ontologia regional da natureza e de uma teoria da objetividade do objeto da experiência. Cassirer concorda com Heidegger a respeito do fato de a per- gunta kantiana estar vinculada à questão diretiva da metafísica oci- dental, ou seja, a pergunta pelo ser do ente. Entretanto, ao contrário de Heidegger, que sustenta que Kant teria ficado preso a noção tra- dicional de ser como subsistência ou substancialidade, Cassirer acre- dita que Kant introduz uma nova metafísica e uma nova noção de ser mediante a assim denominada revolução copernicana. Ou seja, a pergunta pela determinação do objeto passa ser precedida pela per- gunta pela constituição de uma objetividade em geral. “ Aquilo que vale para essa objetividade em geral, agora deve valer para todo obje- to que se encontra no interior dessa estrutura de ser”. (HEIDEGGER, 1990, p.294). O novo aqui é que já não é possível pensar em uma es- trutura única de ser. Assim, se o ser da metafísica antiga era pensado mediante a ideia de substancialidade, o ser da metafísica kantiana

tomaria como ponto de partida uma multiplicidade de estruturas de ser, cada uma com seus pressupostos a priori e um mundo objetivo próprio. Desse modo, por exemplo, a arte e a moral constituem um mundo cujas leis não são as mesmas das do mundo físico.

A diferença fundamental entre Heidegger e Cassirer parece es- tar no fato de que o primeiro busca explicar todos os possíveis modos e determinações do ser como fundados na estrutura temporal do Da- sein, ao passo que para Cassirer as diversas regiões do ser possuem estruturas próprias e independentes umas das outras, as quais podem ser apreendidas no fato concreto das diversas formas simbólicas pelas quais elas são expressas.

A crítica de Cassirer não envolve apenas a interpretação heideg- geriana de Kant, mas também o próprio projeto da analítica existencial enquanto possibilidade da resposta à pergunta pelo ser, por seu mo- dos e determinações. Fundamentar a metafísica em uma fonte comum – ainda que esse fundamento não seja um fundamento inconcusso da metafísica tradicional, mas a finitude abissal do Dasein – não seria fi- car preso a uma ideia de fundamentação que Heidegger mais tarde irá combater e buscará superar? Não seriam ciência, arte, religião domínios próprios, irredutíveis à analítica existencial? Não seria mais produtivo pensar a analítica existencial como uma ontologia regional do homem e, em certo sentido, antropologia? Com isso, não se quer desqualificar a analítica existencial, mas apontar os seus limites, fazendo dela uma lógica produtiva, a qual abre novas possibilidades de compreensão do humano, mas se mostra insuficiente, como parece ter se mostrado ao próprio Heidegger, para responder à metafísica pelo sentido do ser em geral pergunta, se é que essa pergunta ainda deve ser feita.

Referências

CASSIRER, E. Kant und das Problem der Metaphysik. In Kantstudien XXXVI. pp.1-26 Bonn, 1929.

HEIDEGGER, M. Kant und das Problem der Metaphysik. Frankfurt a.M: Vittorio Klostermann, 1990 (GA 3).

Affonso Henrique Vieira da Costa