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Transcendência e compreensão de ser

Enquanto ser-aí, o ser humano é simultaneamente aberto para o mundo e para o fenômeno do tempo. No entanto, só o é na medida em que ele mesmo se revela sendo uma realidade em dinâmica, aberta por uma temporalidade (Zeitlichkeit). Com efeito, porquanto o modo de ser do ser-aí tenha sido estabelecido por Heidegger como existência (Exis- tenz) – o que significa dizer que o ser-aí se realiza sempre numa sob movimentações e mudanças, sempre se encontrando fora de si e numa relação espontânea com esse fora –, é preciso considerá-lo à luz do fe- nômeno do deslocamento temporal. Embora não tenhamos ensejo de nos aprofundarmos nas estruturas da temporalidade, analisadas em Ser e tempo e alhures, retemos aqui o sentido fundamental daquilo que Heidegger chamou de as ekstases temporais (a estrutura da temporali- dade do ser-aí, relativas ao passado, presente e futuro) e seu intrínseco esquema horizontal.

Em outras palavras, as ekstases temporais são a estrutura elemen- tar da temporalidade e o esquema horizontal e sentido, a direção dessa estrutura. Segundo Heidegger, esse “tempo originário é em si mes- mo – esta é a essência de sua temporalização (Zeitigung) – fora de si” (2012a, p. 388) Como fora de si - daí seu caráter ekstático - o fenômeno da temporalidade de antemão nos remete à transcendência. No entan- to, o sentido aqui de transcendência não deve ser concebido tal como a orientação natural de concepção de mundo, pela qual se alega que as coisas possuam em si mesmas uma realidade subsistente, sendo a nós transcendentes, muito menos se trata de uma transcendência de ordem sobrenatural ou qualquer coisa assim. Antes, o único ser que se carac- teriza por isso é o homem: “O ser-aí é o transcendente. Objetos e coisas nunca são transcendentes. Na constituição fundamental de ser-no-mundo anuncia-se a essência originária da transcendência.” (HEIDEGGER, 2012a, 436) Acima, demonstramos que a o fenômeno originário da verdade ti-

nha por base a constituição de ser-no-mundo. O mesmo aqui vale para a transcendência. Na característica humana de ser-no-mundo instala- -se ao mesmo tempo o fundamento para o fenômeno da verdade e a es- sência da transcendência. Transcendência aqui não deve caracterizar o que se encontra para além, como fora da relação fenomenológica com o ente, mas como o transcender enquanto tal. Que sentido tem isso? O de que a transcendência é, na verdade, um deslocar-se no, com e pelo mundo. Mundo não diz respeito ao ser das coisas, elas simplesmen- te aparecem aí no interior do mundo e eventualmente desaparecem. Mundo, no entanto, é a pedra fundamental sobre a qual se erige o ser humano. Somente o ser que é em sua essência assinalado pelo atra- vessamento de mundo pode ser transcendente: “Transcender significa ser-no-mundo.” (HEIDEGGER, 2009, p.326) Nesse transcender, o ho- mem reside como aquele que se mantém como formador de mundo e transcende o ente em sua totalidade, deslocando-se como ser-descobri- dor através dos seus horizontes em direção a outras e outras descober- tas, horizontes que não são apenas espaciais, mas também temporais. Nesse deslocamento o ser-aí se mantém a si mesmo como formador de mundo. Significa então que o fenômeno da transcendência, na verda- de, define-se pelo poder de permanecer sendo a si mesmo, ainda que residindo fora de si mesmo, atravessando o tempo e, na proporção em que o atravessa, permanece sendo transcendência.

Transcendere significa ultrapassar (Überschreiten); o transcendens, o transcendente, é aquele que ultrapassa enquanto tal e não aqui- lo em direção ao que eu ultrapasso. O mundo é o transcendente, porque, pertencendo à estrutura do ser-no-mundo, ele constitui o ultrapassar em direção a... (Hinüberschreitend zu...) enquanto tal. (...) Somente um ente dotado do modo de ser do ser-aí (Da- sein) transcende; e isto de tal modo que a transcendência caracte- riza essencialmente o ser. (2012a, p. 434-435)

A transcendência, portanto, é um fenômeno fundamental, uma vez que caracterize essencialmente o ser, na medida em que diz repeito à constituição do ser do ser-aí e de mundo. Ambos, sendo propriamen- te transcendentes, copertencem a uma mesma estrutura de configura- ção no âmbito da qual o ente vem ao encontro. Como o ultrapassar, ser-aí e mundo, que vêm a ser temporalizados na e pelas ekstases da

temporalidade, se caracterizam por se darem sob a forma de um “des- locamento para” (Entrűckung nach), cujo sentido se orienta por um “em direção a algo” (auf etwas hin).

Na medida em que este caráter ekstático caracteriza a temporali- dade, reside na essência de toda ekstase, que só se temporaliza na unidade de temporalização com as outras ekstases, um deslocamen- to para (Entrückung nach)... em direção a algo (auf etwas hin) em um sentido formal. Todo deslocamento é em si mesmo aberto. (...) O horizonte é a amplitude aberta, para o interior da qual o desloca- mento está enquanto tal está fora de si. O deslocamento abre e man- tém aberto esse horizonte. (HEIDEGGER, 2012a, p. 388-389)

A temporalidade (Zeitlichkeit), na medida em que é o fundamento da existência (Existenz) humana, a estabelece como um fora de si, daí seu caráter ekstático. Fora de si, o ser-aí se mantém. Como? Transcendendo, isto é, permanecendo resiliente como ser-no-mundo em toda passagem de tempo. Em outras palavras, continuar como descobridor, formador de mundo, inalterável em seu poder de abrir e descobrir horizontes. Na estrutura do deslocamento para (Entrückung nach)... em direção a algo, ecoa aquela do poder de (Vermögen zu)... mostrar o ente enquanto ente. Em ambas há uma direcionalidade pela qual se caracterizam (marcadas pelo nach ou pelo zu). O poder apofântico da linguagem (em sentido pré-lógico) de mostrar o verdadeiro, de fazer acontecer a verdade, ma- nifestá-la, possui uma estrutura similar à da temporalidade (Zeitlichkeit), que é o fundamento do ser-aí. O deslocamento temporal, em sua dinâ- mica ekstática tripla (de passado, presente e futuro, em que este último se revela a direção para onde o tempo se desloca), “abre e mantém aberto o horizonte” no qual o ente possa vir de encontro ao ser-aí. O que equivale a dizer: para que o ser-aí o descubra.

Essa abertura põe em íntima relação o poder da linguagem e o deslocamento da temporalidade. Ambos, na realidade, são dimensões diversas de um mesmo horizonte: a relação entre ser e ente. Em que sentido? No de que a linguagem, como formação de mundo, é lugar em que a verdade manifesta-se, o ente vem a ser descoberto; no en- tanto, isso não seria possível sem que o fenômeno de tempo se desse, pois toda descoberta pressupõe, pois, uma passagem de tempo, um deslocamento temporal. O tempo, porém, possui para Heidegger uma

estrutura temporal ekstática, em cujo caráter de deslocamento um hori- zonte é aberto em direção a algo. Esse algo não é outra coisa que o ente em sua totalidade. Desta forma, linguagem e tempo articulam-se como o espaço-lugar, o bosque metafísico, o mundo, em cujo interior o ente temporalmente vem ao encontro e ganha sentido. A temporalidade é o fundamento ontológico para o acontecimento da linguagem. Ela é que lança a base do ser-no-mundo, sobre o qual se pode dar o fenômeno do descobrir. Tanto o deslocamento quanto a descoberta apontam para a mesma coisa: que o ente na sua totalidade é apenas um horizonte a ser explorado indefinidamente. Se o ente pode chegar a ser definido, a sua totalidade jamais. O ente traz sempre consigo uma esfera de inde- finibilidade, que remete à sua originariedade, ao seu permanecer e ao seu fim. Ente necessariamente remete ao ser, mas ser nunca pode ser senão entrevisto como esse horizonte no qual temos lugar como ser- -aí, horizonte pelo qual nos deslocamos e lançamos alguma possível compreensão a partir do poder que nos é dado: a formação de mundo. Formação de mundo e compreensão de ser revelam-se como uma só projeção dessa diferença entre ser e ente, a diferença ontológica.

Em tudo isso repousa não apenas o aspecto da transcendência, mas também uma estrutura intencional. Sobretudo pela direcionalida- de do deslocamento, que possui uma direção projetiva para o futuro, ou seja, para a possibilitação das possibilidades, que precisamos ver que em tudo isso subjaz uma estrutura intencional que lhe é imanente. Com efeito, a temporalidade em si mesma não responde por completo a questão do tempo e, tampouco, responde pela formação de mundo. Como essa temporalidade vem a ser? Como ela se articula intimamen- te à compreensão de ser?

É importante compreender como, com base na temporalidade (Zeitlichkeit) que fundamenta a transcendência, a temporialidade do ser-aí possibilita a compreensão de ser. Temporialidade (Tem- poralität) é a temporalização mais originária da temporalidade enquanto tal. (HEIDEGGER, 2012a, p. 439)

Temporalização da temporalidade é o que Heidegger chamou de temporialidade (Temporalität), que diz respeito à estrutura temporal do ser em geral e acabou por não ser desenvolvida em Ser e tempo, por-

quanto tenha ficado como promessa para a segunda parte do livro, que jamais foi escrita. Contudo, em Os problemas fundamentais da feno- menologia aparece diante da problemática que envolve o conceito de intencionalidade e sua relação essencial com a diferença ontológica. Temporialidade, sendo temporalização, revela-se como essa espécie de ato intencional que reúne numa síntese originária a temporalidade (comas ekstases que se projetam) àquilo para onde ela se dirige, o que determina o seu horizonte esquemático, a presença (Praesenz). O es- quema horizontal das ekstases, através do qual a temporalidade é tem- poralizada em vista da presença, é a direcionalidade do tempo, cujo projetar tem no futuro sua direção. A intencionalidade, portanto, da estrutura temporal em Heidegger abrange mais do que o ato de ligação ontológica entre temporalidade e presença. Nela há, além dessa síntese originária, também uma direção, um intentio.

A temporalidade tomada assim tomada assim primariamente com vistas aos esquemas horizontais da temporalidade como condições de possibilidade da compreensão de ser perfaz o con- teúdo do conceito universal de temporialidade. Temporialidade é temporalidade com vistas à unidade dos esquemas horizontais que lhe pertencem (...). (HEIDEGGER, 2012a, p. 446)

A temporialidade estrutura-se como uma junção entre tempora- lidade e a presença, sendo no entanto uma junção dinâmica, não ape- nas espacial, mas também temporal, posto que envolva um desloca- mento projetivo de um “lado para o outro” – ou melhor, de uma ekstase para outra – lançando na ekstase do futuro o horizonte pelo qual e no qual o ente em sua totalidade surja e adquira sentido. Temporialidade, então, consiste em um projetar do horizonte espaço-temporal. O que, contudo, é aí projetado não é uma presentidade (Vorhandensein, o estar presente à vista) dos entes, mas a dimensão (Dimension) de abertura que possibilita o ente vir ao encontro e encontrar sentido. Essa pre- sença não é outra coisa que aquela formação de mundo, o bosque me- tafísico, que se funda sobre o poder da (Vermögen zu) linguagem. Sob esse poder, através do qual o fenômeno da compreensão se dá, o ente mostra-se em seu ser:

(...) o ser do ente que vem ao encontro no interior do mundo é presencial, o que significa fundamentalmente que ele é projetado temporalmente. Por conseguinte, nós compreendemos ser a partir do esquema horizontal originário das ekstases da temporalidade. (HEIDE- GGER, 20212a, p. 445-446)

A compreensão de ser funda-se ao mesmo tempo no desloca- mento das ekstases e em sua unidade esquemática. Essa unidade ho- rizontal só é possível porque uma síntese e uma direção intencionais possibilitam que a temporalidade do ser-aí e a presença do ente em sua totalidade se articulem para a formação desse aberto no qual o ente tem lugar, o mundo. No entanto, isso não pode ser pensado ape- nas espacialmente. Tempo é o pressuposto necessário para a formação dessa espacialidade, no qual se dá a verdade. O descobrir da verdade se funda não apenas no espaço que é aberto, mas também na abertura temporal em que esse aberto se mantém como espaço para a descoberta. O lógos apofântico, a linguagem pré-lógica do ser-aí, possui por base o ser-no-mundo. Mas ser-no-mundo aponta para a transcendência. Por isso, a espacialidade do ser-aí (Dasein) – seu lugar, sua localidade, sua aí (da) – deve ter lugar sob o fundamento das dimensões temporais. Com isso, a intencionalidade se alicerça na transcendência. No entan- to, ambas são dois polos de um mesmo mundo: a interação, no âmbito ontológico do ser humano – e, por extensão, do ser mesmo – entre tempo e linguagem, ser e ente. Deslocamento e poder respondem por essa estrutural intencional-transcendental de compreensão de ser: ho- rizonte em que se dá a diferença ontológica.

Considerações finais

Sendo possuidor de mundo, o ser humano reside constante- mente numa transponibilidade. Essa transposição caracteriza-se pela acessibilidade, obstruída aos animais, ao território ontológico do ente, penetrando na dimensão em que ele se mostra enquanto tal e, por con- seguinte, como horizonte de sua compreensibilidade. A transposição, então, ao ente reverte-se para o ser humano em ultrapassagem para além do ente enquanto tal, para o seio do próprio ser do qual todo ente necessariamente emerge e do qual lhe é possível um horizonte de

compreensibilidade. No entanto, esse horizonte de forma alguma é-lhe intrínseco. No fundo, esse horizonte só possível graças à assunção que o ente não pode por si mesmo fazer ao ser, mas que se realiza no âm- bito mesmo em que o ente e o ser apresentam-se sob a forma de uma tensão: o homem. Ser-aí é, acima de tudo, como possuidor de mundo, a forma tensional entre ser e ente, forma cujo sentido é o fenômeno de compreensão (Verstehen). Por ela e nela torna-se possível mundo como horizonte a partir do qual o ente em sua totalidade possibilita o que o ser seja projetivamente desentranhado. Compreensão, que remete ao âmbito do poder da linguagem, na esfera temporal não significa ou- tra coisa que projeto (Entwurf). Diz Heidegger: “O projeto enquanto estrutura originária do acontecimento citado é a estrutura originária da formação de mundo.” (2011, p. 465) No entanto, não basta apenas o projeto enquanto estrutura antecipatória. Tal como a temporalidade necessita de uma temporalização em vista da presença, é preciso que a esse projeto ocorra um projetar, a fim que, com ele, o projeto aconteça como formação de mundo. “O projetar enquanto este retirar do vela- mento a possibilitação é o próprio acontecimento daquela diferença entre ser ente. (...) O projeto desentranha o ser do ente.” (2011, p. 467)

Visto que esse projeto e esse projetar se consolidam enquanto formação de mundo, vemos neles então o fenômeno da linguagem e da compreensão de ser, sem a qual não pode ser projetado. O fenô- meno do projeto envolve, deste modo, ambos, mas sob a dinâmica de um deslocamento que se direciona pra a doação de sentido. Porém esse transcender se instala intencionalmente, quer dizer, direcionado, correlacionado: a uma presença, mundo. Formação de mundo é o es- quema horizontal da compreensão de mundo enquanto projeto. Todo ente que vem de encontro no seio desse mundo é, pois, intramundano, que se dá no interior do mundo, como a árvore no bosque. O projetar temporial é a irrupção dessa relação e dessa diferença: “A diferença entre ser e ente é temporalizada na temporalização da temporalidade.” (2012a, p. 463)

Sendo temporalização da temporalidade e o projetar do proje- to, o acontecimento dessa diferença ontológica inaugura o horizonte transcendental e intencional da doação de sentido. E, com isso, a com- preensão de ser.

Referências

HEIDEGGER, Martin. Introdução à Filosofia. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

_______. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo – finitude – solidão. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

_______. Os problemas fundamentais da fenomenologia. Petrópolis: Vozes, 2012a. _______. Ser e tempo / Sein und Zeit. (edição bilíngue). Petrópolis: Vozes; Cam- pinas: Editora Unicamp, 2012b.

ORTEGA E GASSET, José. Meditações de Quixote. Rio de Janeiro: Livro Ibero Americano, 1967.