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Evidência ordinária e evidência fenomenológica

Fábio François Mendonça da Fonseca Universidade Federal do Rio de Janeiro

1. Evidência ordinária e evidência fenomenológica

Heidegger trata nomeadamente do conhecimento para apontar seu caráter derivado e razoavelmente tardio enquanto um modo de curadoria [Besorgen] (ST, 61-62)1. Para fins de comparação, chamarei

o dado resultante deste tipo de tematização de evidência ordinária. Heidegger explica que alguma deficiência da lida interessada precisa dar contexto à percepção distanciada e demorada, o que coincide com a reconfiguração do ente intramundano, até então conduzido na con- dição de manual [Zuhanden], agora sob o teor de um subsistente deter- minado segundo a estrutura proposicional de algo como algo, o objeto real da tradição metafísica. Alega-se então que, dado este caráter de- rivado e já fundado no ser-no-mundo, este é um tipo de abordagem imprópria para se demonstrar a mundanidade. Todas as abordagens que conduziram esta questão como um problema de intangibilidade de uma suposta esfera interna da consciência em relação a um mundo externo falharam em compreender que a intencionalidade já implica um estar dirigido espontâneo para as coisas ordinárias da atitude na- tural, à luz da qual este problema só se coloca numa manobra artificial que não interpreta apropriadamente o modo de ser do próprio conhe- cimento enquanto comportamento.

Um aspecto importante da evidência ordinária já havia sido an- tecipado um pouco antes no entanto, a título de uma deficiência em re- lação ao que seria uma condição ideal de verdade (ST, 34). Dado o seu teor predicativo, o conhecimento articulado e retido em enunciados não é um puro “deixar e fazer ver”, mas um “deixar e fazer ver algo como algo”, ou seja, um composto. Isto implica uma bivalência que expõe a pretensão de verdade aqui sustentada à possibilidade do falso. Ao longo de todas as considerações metodológicas de Ser e Tempo (ST, 28-38), Heidegger parece estar tentando contornar este dado cognitivo

1 Ser e Tempo será citada no corpo do texto pela abreviação “ST”, seguida da paginação da

obstruído e deficitário, restaurando um “deixar e fazer ver” puro, cujo dado respectivo chamarei de evidência fenomenológica.

Heidegger propõe nos atermos ao sentido estrito de “fenômeno” como “o que se mostra em si mesmo”, que seria a condição para algo mostrar-se “como” o que é ou “como” o que não é. Teríamos assim a condição transcendental da evidência ordinária. O dado epistêmico pretendido aqui seria imediato, não-predicativo e inarticulado, do que resultaria sempre certo, mesmo por ocasião da aparência falsa. Ou seja, teríamos então um modo de evidência insuscetível de bivalência para o falso, uma vez que não se presta a nenhum tipo de comparação ou correspondência.

A doutrina do noein de Aristóteles é mencionada para sugerir um modo privilegiado de verdade que seguiria o teor da apreensão do simples, e que seria dotado de uma valência imanente, cuja contingên- cia residiria somente na mera inocorrência (ST, 33). Heidegger então especifica sua pretensão metodológica: chegar ao lugar originário da verdade com sua noção de fenômeno, considerada num sentido privi- legiado, e cujo eventual “não mostrar-se” dar-se-ia no modo do vela- mento, da distorção e do esquecimento. Os fenômenos privilegiados que ele tem em mente são o ser e, num momento preliminar, a exis- tência do ser-aí, e o que se pretende é ter obtido um meio de exibição apodítico e direto para estes temas.

A evidência fenomenológica reivindica um dizer “apofântico” num sentido literal que Heidegger julga mais apropriado do que aque- le do enunciado ordinário, um logos cuja função primária não é pre- dicar mas desvelar: deixar e fazer ver, retirar do encobrimento. Mais adiante, este proceder exibidor é retomado como “apontar” [Aufzeigen] para explicar o sentido do enunciado (ST, 154) e seu modo respectivo de verdade (ST, 218).

Logo, uma mesma ideia de evidência imediata e inarticulada parece orientar todos os parâmetros de verdade pretendidos por Hei- degger a partir da noção de desvelamento [Unverborgenheit], que em outras obras chega a ser exposto como um gênero comum para o des- cerramento [Erschlossenheit] do ser-aí e a descoberta [Entdecktheit] do ente intramundano2. Sem a presunção realista da evidência proposi-

cional, este modo privilegiado de conhecimento parece contornar a on-

tologia do ente subsistente que atropela a diferença ontológica e impõe o domínio da impessoalidade e da ontologia do ente subsistente.

Três problemas já podem ser traçados.

O primeiro é que, num passo não de todo claro, a investigação que supostamente faz uso destes dados epistêmicos fenomenológicos e seus respectivos modos de expressão é definida como hermeneien, interpretar. Dada a mencionada contingência da distorção ou do esquecimento, as ideias que parecem se insinuar aqui dizem respeito a tirar da inconspi- cuidade, chamar a atenção para, explicitar, expressar, sublinhar.

O segundo ponto é a impressão de que temos afinal um meio epistêmico para demonstrar os existenciais, em especial, a mundanida- de. Neste caso, pode-se já perguntar se a crítica mencionada acima não se torna impertinente. Não era justamente este tipo de dado epistêmi- co imanente que Descartes reivindicava ao seu cogito mesmo diante da vertigem da dúvida hiperbólica?

Por fim, uma implicação curiosa diante da presunção ordinária acerca da verdade real. O discurso predicativamente correto que é veri- ficado na evidência ordinária é tido por inferior e até mesmo deficitário em termos de verdade quando comparado com o meio epistêmico que Heidegger considera fundamental, invertendo-se a ordem de funda- mentos que usualmente atribuímos à verdade em relação à verificação. De modo surpreendente, é porque se mostra em si mesmo para a consi- deração de quem tematiza que algo é verdadeiro, e não o contrário:

“Uma determinação conceitual exata como uma indicação enu- merativa dos traços característicos do que deve ser determinado permanece vazia e inverídica enquanto não perfizermos real- mente uma vez mais o caminho disso de que trata o discurso e o trouxermos ante a visão interior”.3

2. Remissão

As três dificuldades acima inspiram a seguinte proposta inter- pretativa das pretensões de Heidegger nestas considerações: a suposta evidência fenomenológica não tem o teor epistêmico alegado e deve ser explicada como remissão [Bezug], meio discursivo do compreender

[Verstehen] que sustenta e articula tanto o ente manual (ST, 84) quanto o teor dito “apofântico” do enunciado (ST, 224), e que consiste num ato de menção e explicitação de algo até então implícito, presumido, esquecido ou desapercebido. Trata-se da articulação discursiva fun- damental que instaura a cada vez uma configuração de sentido e se confunde com o próprio desempenho de um proferimento situado, vivenciado e responsabilizado segundo pronomes e demonstrativos, no que Heidegger chama de “ser o seu “aí””, e que sustenta intuições modais numa compreensão de ser.

A remissão pode assumir uma densidade semântica mais abran- gente e grave do que a referência categórica do enunciado em seus mo- dos ordinários de circulação, pois expressa, juntamente com o que é ex- pressado, a suscetibilidade de quem assim se faz expressar em relação a este expressado como algo que lhe diz respeito em alguma medida. O enunciado em especial é uma remissão composta que além de refe- rir, sublinha um aspecto geral do que é referido e postula em relação a este um âmbito público de acesso ideal. Há portanto no enunciado três remissões desdobradas, as duas últimas importando num movi- mento de deslocamento que pode e na maior parte das vezes acarreta uma perda de vinculação e singularidade da remissão originária em seu contexto ocasional de situação concreta e relevante.

Quando Heidegger especifica o sentido de “apofântico” como um apontar, está se atendo àquela remissão articulada na função do termo sujeito: remeter a algo que pode vir ao encontro numa situa- ção e sustentar simultaneamente um campo de possibilidades que o enunciado então especifica numa asserção. Mesmo esta função, no entanto, abrange desempenhos discursivos eventualmente diversos: remissão ocasional (“Esta é uma boa montaria”), nomeação (“Bucé- falo é uma boa montaria”), descrição identificadora de um particular ou de um tipo (“O cavalo de Alexandre é uma boa montaria”, “O cavalo árabe é uma boa montaria”).

Na fenomenologia de Husserl estas competências parecem estar reunidas sob a ideia de expressões nominais, as quais elas próprias têm um valor de verdade e um preenchimento intuitivo num ato de identi- ficação4. Esta é a ideia de evidência que inspira Heidegger.

4 Husserl, E., Investigações Lógicas: Sexta Investigação (Elementos de uma Elucidação Fenomenológi-

Ora, dos atos nominativos visados por Heidegger, só a identifi- cação por descrição envolve conteúdo epistêmico. Por isto mesmo, no entanto, ela presume uma articulação predicativa colhida numa situ- ação de proferimento anterior e que fica implícita no desempenho da remissão. Logo, admite bivalência e, portanto, erro. Na ocorrência da expressão “O cavalo de Alexandre” na sentença “O cavalo de Alexan- dre é uma boa montaria”, fica presumido que o enunciado de identifi- cação “Este é o cavalo de Alexandre” é verificável em alguma situação. O mesmo vale para nomes quando seu uso articula descrições para uma identificação bem sucedida. A verificabilidade da sentença “Este é Bucéfalo” em alguma situação segue implícita em “Bucéfalo é uma boa montaria”.

Dêiticos não tem teor epistêmico quando usados como estrito meio de referência. Ninguém presume saber nada ao usá-los, mas apenas referir, sublinhar e destacar para uma subsequente asserção. De fato, eles são isentos de bivalência e erro e são inarticulados, como Heidegger espera, mas isto se dá justamente por não terem pretensão de verdade real. Um modo comum de tentar distorcer isto é justa- mente a manobra cartesiana que toma este tipo de remissão como uma espécie de evidência imanente (noema, idia, sense data etc.), de modo a se poder dizer que alguém sabe que intui um dado sensorial imediato. Na verdade, esta manobra é proposicional, os dados intui- tivos são atribuídos predicativamente ao sujeito. Logo, ela também não serve às intenções de Heidegger.

Resta então concluir que somente evidências ordinárias são re- missões epistêmicas propriamente ditas. O conhecimento é sistemati- camente predicativo e bivalente.