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3 – O tempo e o cuidado na conferência de 1924.

Sobre o texto O conceito de tempo (Der Begriff der Zeit) se pode dizer que é uma preparação ao projeto de Ser e Tempo, acentuando a perspectiva crítica que o programa viria a estabelecer com respeito à tradição cristã. A conferência pronunciada em 1924 para um conjunto de teólogos Marburguenses marcaria o conflito entre a filosofia de Hei- degger e a teologia. Heidegger anos mais tarde escreverá na Introdução à metafísica: “O pensamento do ser é uma loucura para a fé” (Citado por LOPARIC, 1990, p.168).

Em “Der Begriff der Zeit” alguns dos existenciais principais de Ser e Tempo já estão cunhados como o cuidado, a temporalidade, o ser-no- -mundo, a cotidianidade, porém, numa forma inicial que necessita ser desenvolvida e certamente será, em vista do grau de complexidade, que tais conceitos assumem em Ser e tempo. Neste caso, conceitos como cuidado e temporalidade, por exemplo, neste texto estarão bem longe da complexidade específica que assumirão em Ser e Tempo.

O próprio conceito de faticidade será um dos constituintes do cuidado em sua definição primária tal como aparece no parágrafo 41. Neste trabalho não defenderemos a hipótese de que a hermenêutica da faticidade é reduzida ao conceito de faticidade em Ser e tempo, o que levaria a considerar o cuidado como mais importante que a hermenêu- tica da faticidade, uma vez que, em Ser e tempo ele engloba o conceito de faticidade. Heidegger na sequência do Conceito de tempo entabula uma polêmica que terá amplas repercussões, pois alguns teólogos (LO- PARIC, 1990) claramente identificaram a inspiração cristã de alguns conceitos, como é o caso do conceito de propriedade/autenticidade (Ei- gentlichkeit). Este conceito terá implicações na relação do Dasein com o tempo, já que em última instância, o Dasein será definido como tem-

poral, porém, antes de qualificar o Dasein como temporal, Heidegger discrimina os modos em que o Dasein se relaciona consigo mesmo e com os outros. Há modos próprios/autênticos e modos impróprios/ inâutênticos do Dasein se relacionar consigo mesmo e com os outros.

Além disso, Heidegger tem pretensões de elaborar uma ciência prévia (Vorwissenschaft), ou uma ciência originária (Urwissenschaft) que explique os vários discursos que o Dasein elabora sobre si mesmo, so- bre o mundo e a ciência. Vemos claramente nesta passagem a retoma- da do curso (Zur Bestimmung der Philosophie de 1919) em que temos a idéia e o desenvolvimento da filosofia como ciência originária (HEIDE- GGER, 1987, p.13-108).

Se a filosofia deve ser estabelecida como ciência se coloca um problema, já que, os pressupostos para tal empresa ainda não foram suficientemente aclarados. Heidegger neste texto não continua a tecer considerações sobre o método e o procedimento de realização desta ciência prévia.

Ele apenas indica que: “As reflexões que serão apresentadas per- tencem talvez a uma ciência prévia, cuja tarefa engloba em si esta pers- pectiva: iniciar pesquisas sobre o que poderia finalmente significar isso que diz a Filosofia, a ciência e o discurso explicativo do ser-aí (Dasein) sobre si mesmo e sobre o mundo” (HEIDEGGER, 1997, p.09).

Na sequência da conferência Heidegger apresenta o tempo como o conceito mais geral, ou seja, ele é o horizonte de possibilidade toma- do como fio condutor da análise. Heidegger anteriormente (HEIDEG- GER, 1997, p.9) afirmou que a Filosofia e a ciência se movem através de conceitos. O conceito de tempo é o conceito principal do texto (HEIDE- GGER, 1997, p.7), porém, antes de discutí-lo propriamente, é necessá- rio tecer algumas considerações sobre como o tempo vem ao encontro na cotidianidade (HEIDEGGER, 1997, p.11) para chegar ao único ente que compreende o tempo, logo, o Dasein. Heidegger nesta perspectiva claramente desloca o fio de sua argumentação para redirecioná-la para o que quer introduzir, a saber, o tempo ligado ao Dasein. Este desloca- mento de sua argumentação é típico do modo como o filósofo concebe a filosofia, já que pelo método fenomenológico em sua parte destrutiva temos claramente, a exposição das teses tradicionais que serão discuti- das, e logo a seguir criticadas.

Heidegger começa sua exposição fornecendo exemplos de con- cepções conhecidas e tradicionais sobre o tempo, a saber, Einstein, Agostinho e Aristóteles. Ele parte do já pensado sobre o fenômeno do tempo, a partir destas teses tradicionais de autores já consagrados para afirmar que são insuficientes, que não pensaram o tempo na acepção que ele obviamente irá apresentar. O tempo ligado à cotidianidade foi algo esquecido pela tradição que pensou o tempo, e isto deve ser co- locado em relevo, logo, teremos a afirmação de que o tempo será o próprio Dasein. O Dasein, no final das contas será um ser temporal, determinado pelo tempo, constituído pelo tempo.

O Dasein por se relacionar com o tempo de algum modo – teo- rizando, contando, medindo – transmite algo que nas concepções vul- gares passa despercebido: todo Dasein, quer queira quer não, tem uma relação com o tempo. Esta relação com o tempo que todo homem tem é o que intriga Heidegger e que faz parte de sua meditação no texto, pois o homem desconhece ou não está de modo algum intrigado com a questão do tempo (HEIDEGGER, 1997, p.17-19).

O interlocutor privilegiado da ciência metafísica é Einstein. Na filosofia é Aristóteles que influi nas concepções tradicionais do tempo que duram até Bergson. A partir do confronto com estes dois intérpre- tes do tempo Heidegger apresentará a sua concepção de tempo que ao destruir tanto a concepção de Aristóteles quanto à concepção de Einstein relacionará o tempo com o Dasein. “Em resumo podemos di- zer: tempo é ser-aí. Ser-aí é o meu a cada vez ser, o meu ser respectivo que cabe a mim ser (Jeweiligkeit) e este, ser que cabe a mim ser, pode ser no futuro no antecipar ao passar consciente, mas indeterminado” (HEIDEGGER, 1997, p.37).

O tempo já não pode ser entendido –como fazia Aristóteles – como mera presença. O próprio relógio é interpretado como fato de presentificação do tempo, pois aquele que toma as horas às lê apenas como presença: agora são nove horas... Agora são dez horas. O tempo- -agora oculta o que Heidegger em Ser e tempo chamará de êxtases da temporalidade e que são, além do presente, o passado e o futuro.

A dependência na alegação Heideggeriana é invertida: não é o relógio que auxilia o Dasein a ter conhecimento do tempo, mas na verdade pelo Dasein ser essencialmente temporal é que algo como o

relógio pode aparecer e ter seu sentido. A possibilidade da datação do tempo nos relógios, a possibilidade de elaboração de teorias físicas so- bre o tempo, como por exemplo, a teoria de Einstein, só é possível pelo fato de que o Dasein é tempo.

É neste ponto de sua argumentação que Heidegger, com o tempo integrado ao Dasein, apresenta a série de existenciais que compõem o próprio ser do Dasein. O Dasein é ser-no-mundo. “O ser-no-mundo é caracterizado como cuidado”. (HEIDEGGER, 1997, p.19). O concei- to de cuidado apresentado pela primeira vez no texto, na página 18 da conferência é definido como um vasto campo de atividades, que expressa por sua vez, o trato que o Dasein estabelece com o mundo. Cuidar aqui é tomado tanto numa perspectiva de cuidar dos outros, como cuidar das coisas. O Dasein como cuidar lida com o mundo, per- manece no mundo, fazendo algo de um modo peculiar, realiza alguma coisa no mundo, sofre e ama no mundo. Mundo é a totalidade da sig- nificância que por sua vez é definida como cuidar.

O cuidado também se refere ao ser-com-outro (Mit-einander- -sein), ao encontro com o outro no modo de um ser-para-outro (Für- -einander-sein). Heidegger salienta que o cuidado se expressa também nesta relação com o outro (HEIDEGGER, 1997, p.21), porém, salienta que o Dasein também tem a qualificação de um ser-antes-da-mão/ser simplesmente dado (Vorhandensein). O Dasein enquanto ser-no-mundo está aí simplesmente dado como a pedra, o animal e a árvore, que como tais não possuem mundo, não têm cuidado (HEIDEGGER, 2001, p.19).

O parágrafo que tem o número seis é importante, pois nele, Hei- degger apresenta um novo matiz do conceito de cuidado no texto.

6. O ente assim caracterizado é tal que, em seu ser-no-mundo cotidiano e que lhe pertence a cada vez, importa-lhe o seu ser (auf sein Sein ankommt). Assim como no falar sobre o mundo re- side um auto-expressar-se do Dasein sobre si mesmo, do mesmo modo todo lidar-com que ocupa-se de (alles besorgende Umgehen )é uma ocupação do ser do Dasein (Besorgen des Sein des Daseins). Com o que lido, com o que me ocupo, a que se prende minha profissão sou de certo modo eu mesmo e nisso se desenrola meu Dasein. O cuidado (Sorge) pelo Dasein toda vez já estabeleceu um cuidado pelo ser, tal como isso é compreendido na explica- ção imperante do Dasein (HEIDEGGER, 1997, p.21).

Nesta passagem Heidegger acentua o cuidado ocupado. Sabe- mos pelo que será desenvolvido em Ser e tempo que o cuidado em sua definição secundária é tomado como ocupação (Besorge) e preocupação (Fürsorge) (HEIDEGGER, 2001, p.68-69; 71; 121-122), porém, aqui, no Conceito de tempo temos nesta passagem que acabamos de citar a expo- sição exemplar da ocupação.

O lidar-com/tratar de (Umgang) é descrito aqui como um tipo de conceito correlato ao conceito de ocupação, pois Heidegger afirma que aquilo de que me ocupo aquilo com que lido, aquilo que faço como profissão definem no final das contas o meu próprio ser. A ocupação é deste modo determinante na explicação do próprio ser do Dasein, sendo que o Dasein ao se ocupar com aquilo que deve fazer enquanto trabalho, profissão, produção de algum objeto determina seu próprio ser como cuidado. Ao realizar um determinado lidar-com/tratar de ocupado o Dasein faz algo, e ao fazer algo também faz, determina e interpreta a si mesmo.

O cuidado é introduzido nesta perspectiva, já que Heidegger distingue ocupação (Besorgen) do cuidado (Sorge). Nesta passagem da conferência podemos notar que Heidegger já distingue cuidado de ocupação, deixando a cargo da ocupação uma qualificação mais de- terminada do que o cuidado, já que o Dasein ocupado é que trabalha, tem uma profissão, faz um determinado produto. “O Dasein enquan- to presente que se ocupa, mantém-se àquilo que se ocupa” (HEIDEG- GER, 1997, p.31). Porém, nesta conferência não temos a distinção entre ocupação e preocupação.

A seguir Heidegger continua apresentando outros conceitos que também farão parte de Ser e Tempo, até se deter sobre a morte (Tod), que neste texto ainda não aparece como o ser-para-a-morte (Sein zum Tode) de Ser e tempo. A morte, porém, tem uma relevância fundamental nesta conferência, já que, Heidegger afirma que sendo a morte o fim do Dasein, ela é a extrema possibilidade do Dasein, na medida em que, o Dasein pode assimilá-la antecipadamente.

O futuro nesta medida assumirá uma importância central, pois é ele que possibilita a antecipação da certeza da morte. Heidegger ainda não apresenta toda a complexidade das implicações da reso- lução antecipada e angustiada com o poder-ser mais próprio que é

a morte, nem mesmo a liberdade angustiada para com a morte, que estarão presentes na segunda seção de Ser e tempo. Como já afirma- mos, na conferência sobre o tempo, os conceitos que serão centrais em Ser e tempo, ainda sofrerão um maior desenvolvimento das pre- leções seguintes, até a forma exemplar que assumirão em Ser e tempo. O tempo agora é relacionado ao próprio Dasein. Por saber que é um entre, uma passagem entre um ainda-não e um não-mais, a com- preensão do tempo assume uma importância fundamental. O tempo é o Como (Wie) do Dasein. O Dasein é tempo. O Dasein está autentica- mente junto a ele mesmo, é autenticamente existente quando se man- tém neste antecipar. Este antecipar nada mais é do que o autêntico e singular futuro do Dasein (HEIDEGGER, 1997, p.27). O futuro assume em “Der Begriff der Zeit” uma importância decisiva. O futuro é o que possibilita ao Dasein ser desta ou daquela maneira, atualizar esta ou aquela possibilidade de acordo com o seu poder-ser.

Procuramos apresentar o texto O conceito de tempo destacando a importância e tal texto irá desempenhar na escrita de Ser e tempo. Como salientamos, Heidegger está desenvolvendo a hermenêutica da fatici- dade e para tal, conceitos como o de ser-no-mundo, Dasein, tempo e cuidado já desempenham um interesse central nas reflexões que leva- rão o autor a desenvolver Ser e tempo com a complexidade específica que apresenta na elaboração e relação entre seus conceitos.

O futuro terá tal importância na conferência em vista de, pelo futuro, o Dasein poder retomar os dois êxtases do tempo que foram es- quecidos. O não ter tempo, o lançar-se na correria do dia-a-dia cotidia- no significa lançar o tempo no péssimo presente (HEIDEGGER, 1997, p.27). O passado por sua vez torna-se esquecido, sendo assim, o futuro se constitui no fenômeno autêntico/próprio fundamental do tempo.