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Embora tenham dado mais de uma resposta a essa pergunta, de um modo geral as respostas dialogam e parecem convergir para o entendimento de que ser jovem não é se preparar para o futuro, mas viver o presente sem perder de vista a dimensão do futuro. Uma das respostas dadas por muitos deles a essa pergunta foi: “ser jovem é aproveitar a vida”. Essa foi a explicação que ouvi em diversas ocasiões de meninos e meninas, de diferentes idades, da sede e da zona rural. Mas, afinal como eles aproveitam a vida?

O que percebi foi que naquele período os jovens que ali viviam tinham modos próprios de dar significados à sua juventude e, portanto, de aproveitar a vida. Aproveitavam de todas as formas possíveis, dentro dos limites impostos pelo contexto em que viviam. Driblavam a falta de dinheiro, organizando bailes, gincanas, cavalgadas, campeonatos de truco, festas e resenhas nas casas dos amigos ou mesmo fazendo “bicos” para conseguir a grana para a cerveja do fim de semana. Burlavam o toque de recolher dos pais, reunindo na porta de casa os amigos que não precisavam cumprir

19 Trata-se de um material educativo abordando o tema das sexualidades, desenvolvido pelo Ministério da

Educação, em parceria com algumas entidades e organizações da sociedade civil, que seria distribuído nas escolas públicas de ensino médio no ano de 2011. O material, que alguns manifestantes contrários à sua distribuição passaram a classificar vulgarmente de “kit gay”, foi motivo de polêmica e acabou por ter sua distribuição vetada pela presidência da república.

105 horário de chegada, assim os pais não tinham como acusá-los de não estarem em casa na hora marcada. Criavam modos próprios para lidar com a falta de espaços de lazer e sociabilidade, reinventando o território, fazendo da praça, da casa dos amigos, da casa da avó ou mesmo da escola, locais em que fosse possível fazer coisas interessantes, se divertir e aproveitar a vida. Faziam de espaços como a igreja e os eventos de manifestação religiosa espaços de cumplicidade, de sociabilidade e de troca de experiências juvenis, respeitando os limites da fé e exigindo das autoridades religiosas respeito às suas demandas por formas próprias de manifestação da fé. Alguns eram capazes de utilizar-se até dos momentos de trabalho doméstico para promover encontros com os amigos, alegando que ali estavam para ajudar, com o intuito de garantir momentos de diversão e, claro, de aproveitar a vida. O mesmo faziam, e com respaldo institucional, com os trabalhos escolares, uma boa oportunidade para os “da roça” ficarem na cidade depois da aula, na casa dos amigos, estudando e aproveitando a vida.

Além disso, ser jovem para eles também estava relacionado a uma etapa de amadurecimento físico, emocional e intelectual, quando já não podiam mais fazer o que quisessem sem pensar nas consequências, ou seja, ser jovem para alguns era ter consciência e assumir responsabilidade por seus atos, como dizia essa jovem:

Ser jovem também é ter consciência daquilo que a gente vai fazer. Igual, criança não tem noção, o que manda ela faz, é aquilo mesmo. Jovem não. Jovem sabe o que é certo e o que é errado, né? Já tem sua própria escolha. (Luci)

Além da dimensão autonomia, das escolhas e da responsabilidade pelos seus atos, como enfatizam os que acham que ser jovem é assumir ter consciência dos seus atos, para outros a juventude é identificada com estilo próprio, em geral demarcado por diversas dimensões das culturas juvenis, como as roupas da moda, acessórios que usam, tipos de música que ouvem, entre outros aspectos.

As meninas, assim nós na fase de 15,16 anos, 17... a gente gosta mais de usar bermudinha curta, camisetinha, essas coisas. Tem gente que critica, porque fala que a gente gosta de andar pelada, mas não é. É porque a gente se sente jovem desse jeito. Eu mesmo, se for pra colocar uma bermuda que pega no joelho e uma blusa que tampa a cintura da bermuda, eu me acho assim, uma pessoa tipo assim, que tá com mais de 20 anos. Eu me acho velha. (Thainá)

106 Nesse aspecto, algo que me chamou atenção foi como que a moda jovem, mesmo nas comunidades rurais, pouco, ou nada, difere dos grandes centros urbanos. Ou seja, para esses jovens o corpo é um importante agente para expressar elementos próprios das culturas juvenis e dos modos de ser jovem, o que não é específico apenas desse contexto. De acordo com Feixa (1999), as culturas juvenis expressam a forma como as experiências sociais dos jovens são expressas coletivamente e podem ser analisadas tanto sob a perspectiva das condições sociais como sob o plano das imagens culturais, que se traduzem nos estilos juvenis. Em SGP, tanto os estilos locais que caracterizam a moda, que são identificados, sobretudo, pelo uso de chapéus, botas e roupas que podem ser identificadas com o estilo “country”, como também a moda dos grandes centros (incluindo marcas internacionais de roupas e calçados, como já apontado) é muito forte entre eles. No caso dessa jovem do depoimento anterior, para se sentir jovem ela precisa se vestir como jovem, ou seja, não basta ter uma determinada idade, é preciso expressá-la.

Também não passa despercebido a esse grupo o fato de que as juventudes são muitas e as formas de viver a juventude são também variadas, inclusive dentro de uma pequena comunidade rural, como diz essa jovem moradora do Vinhático:

Agora, Zenaide, tipo assim, igual eu sei, eu gosto muito de curtir, eu gosto muito de usar as roupas da moda, eu acho bonito, eu gosto de usar. Eu gosto de sair, entendeu? Isso é o meu modo de viver a juventude. Mas tem gente que acha que o jeito de viver a juventude também é mexendo com droga, roubando, matando. Mas é... tá certo, que se ele acha que é assim que tem que viver a juventude dele, beleza. A gente vai criticar? Não! Mas a gente sabe que tá errado. Porque assim cê não tá vivendo, cê ta se acabando. (Thainá)

Além de mencionar elementos importantes das culturas juvenis expressas nos estilos, ela chama também atenção para um aspecto da condição juvenil que não foi abordado neste estudo por não serem significativos entre os jovens que compuseram os informantes desta investigação, de acordo com os dados levantados. Falo da questão das drogas ilícitas que estão presentes neste município e tem levado muitos jovens à dependência. Os casos mais graves, não só de consumo, mas também os principais

107 pontos de venda de drogas, estão localizados na comunidade rural do Vinhático, onde vive a Thainá. E ela fala de amigos e parentes dela que são viciados e a família pouco tem a fazer para tirá-los dessa situação.

Por fim, foi possível perceber que para alguns (talvez mais para as meninas) o critério idade é um aspecto importante da condição juvenil e muitas aguardam ansiosamente completar 18 anos. Embora no caso brasileiro idade não seja um marcador preciso para se discutir transição para a vida adulta, visto que juridicamente falando, são várias as idades para conquistas de direitos e cumprimento de deveres, no caso aqui analisado os 18 têm um significado importante. Por exemplo, um jovem tem direito de votar aos 16 anos, embora a obrigatoriedade só se aplique a partir dos 18 anos. Tem direito de dirigir a partir dos 18 anos, mesma idade que também passa a poder consumir bebida alcoólica. Pode casar-se sem o consentimento dos pais a partir dos 18 anos, embora possa praticar sexo consentido se for maior de 14 anos de idade.

Durante o período da pesquisa de campo duas jovens informantes (a Thainá e a Thalia) completaram 18 anos e eu estive com elas no dia do aniversário conversando sobre o assunto. Percebi que a expectativa era que os 18 seria uma espécie de rito de passagem, embora elas não tivessem clareza se a passagem seria para algo melhor ou pior. Lembro-me da Thalia me perguntando: “enfim 18, e agora? O que muda na minha vida?”, e eu devolvi-lhe com uma pergunta. Então, qual é a sensação? E ela me respondeu:

Ah, agora eu posso chegar no bar e dizer: “Oi moço, eu posso beber, eu tenho dezoito anos.” Aí ele vai falar: “O quê que você quer beber?” “Nada não, e só pra falar que eu posso. Quero nada não. Mas tá avisado que eu posso, viu? Caso eu queira. (Thalia).

Quando eu... quando eu tinha dezessete anos, eu ficava aquela coisa assim, é... se eu fizer alguma coisa de errado é... os pais que vão assumir, né? Aí, quando eu tava um dia pra fazer dezoito anos, fiquei assim... Nossa depois de amanhã eu vou tá de maior, nossa, totalmente de maior. Mas tudo que eu fizer vem em cima de mim, entendeu? As consequências vão vim em cima de mim. Aí comecei a ficar com medo... (Thainá)

108 A Thainá confirma algo que também foi apontada pela Thalia, quando lembrou que agora, embora seus direitos tenham aumentado, seus deveres também. Assustada, ela faz um comentário semelhante: “nossa, agora eu também posso ser presa!”, lembrando que há coisas boas e ruins em fazer 18 anos e evidenciando um sentimento ambíguo entre as perdas e ganhos de chegar à maioridade.20

A maior autonomia em relação ao mundo adulto também é mencionada como um ganho da maioridade. Alguns pais, como a mãe da Thalia, ainda têm os 18 como uma referência para permitir os filhos fazerem determinadas coisas, como sair à noite sozinho, pilotar moto ou viajar. Sobre isso a jovem diz:

[Agora que fiz 18] se eu disser que eu vou, ela pode dizer: “Não vai.” Mas ela não vai poder falar que é porque eu sou de menor. Ela vai ter que arrumar uma desculpa... Na verdade, ela não vai ter desculpa. Porque a desculpa dela muito era essa. Agora ela não vai ter mais essa desculpa. (Thalia).

Embora comemore o status legal conquistado com a maioridade, ela também lembra que ainda que mude no papel, na prática tudo continua igual, já que mora com os pais, não trabalha e depende deles para tudo, portanto, a obediência a eles deve continuar. Completar 18 anos, então, é mais uma condição pública que privada já que, perante as leis do país, a partir dessa idade o jovem é responsável por seus atos, na prática, todavia, o status legal quando não vem acompanhado de condições socioeconômicas que respondam às demandas dos jovens, pouco ou nada muda suas vidas com a chegada da maioridade.

20 Em estudos com jovens atendidos por programas sociais no interior de São Paulo, Malfitano (2011)

também identificou esse sentimento de medo e ambiguidade em relação aos 18 anos entre os jovens investigados, além de um sentimento por parte dos jovens de que não queriam fazer 18 anos e receber de presente o não direito de ter acesso à instituição que frequentaram durante anos e de conviver com as pessoas com quem criaram laços nesse período.

109 CAPÍTULO IV – JUVENTUDE E TRANSNACIONALISMO

“[...] Todos os dias é um vai-e-vem A vida se repete na estação Tem gente que chega pra ficar Tem gente que vai pra nunca mais Tem gente que vem e quer voltar Tem gente que vai e quer ficar Tem gente que veio só olhar Tem gente a sorrir e a chorar E assim, chegar e partir São só dois lados da mesma viagem, O trem que chega É o mesmo trem da partida. [...]”. Encontros e despedidas. Milton Nascimento 4.1 – PARTIDAS E CHEGADAS

Quando ele foi embora pros Estados Unidos, eu vi que ele foi embora. Ele ficou lá dois anos e voltou. [...]. Alguma coisa assim. Aí, antes ele já tinha ido pra Alemanha, só que eu não lembro bem, porque eu era muito novinha. Mas, quando ele foi pros Estados Unidos, eu lembro. (Bruna).

Histórias como essas não são incomuns em SGP. Pessoas que vão e vêm, que cruzaram fronteiras, buscando reencontrar os familiares ou simplesmente emigraram em busca de seus próprios sonhos e retornaram, não se adaptaram, voltaram a emigrar. Pessoas que protagonizam (embora na época em que a pesquisa foi realizada esse movimento já não fosse tão comum) o que chamo aqui de transnacionalismo. Tal movimento tem significativa influência na condição juvenil, visto que muitos vivenciam etapas essenciais de transição da infância para a adolescência e juventude longe de membros importantes da família nuclear.

Esses são alguns dos aspectos que justificam a importância deste capítulo, cujo objetivo é apresentar uma discussão relativa a uma categoria fundamental para este estudo, o transnacionalismo. Esta emerge quando os dados empíricos evidenciaram que não só a migração é uma característica central do contexto analisado, como trata-se de uma movimento marcado pela estreita relação entre o local de origem e os locais de

110 destino dos emigrados. Essa relação ocorre de diversas formas, evidenciando no local de origem fortes traços desse fenômeno que é caracterizado pela “fluidez de ideias, objetos, capital e pessoas que se movem através das fronteiras” (BASCH et all, 1994, p. 27).21

Sendo o transnacionalismo caracterizado por eventos que acontecem nos dois polos da migração, a análise deste estudo centra-se apenas nos eventos que se sucedem no local de origem, que pode ser identificado como uma comunidade transnacional.

No meu entendimento, “comunidade envolve um senso de história e identidade compartilhadas e significados mutuamente compreendidos.” (GOLDRIN, 1998, p. 173). À primeira vista, SGP poderia ser apenas mais uma comunidade rural como tantas outras no interior do Brasil, todavia, as características da dinâmica migratória internacional nesse contexto imprimem-lhe peculiaridades que têm influenciado sua história, identidade, costumes, valores e os modos de vida da população local. Os fortes vínculos com os locais de destino das migrações internacionais é uma característica importante na região de Governador Valadares e evidenciada sob diversos aspectos que serão apresentados neste capítulo.

Dada a complexidade do contexto analisado, meu entendimento coaduna com o que defende Patarra (2006) de que a dinâmica das migrações internacionais envolve fenômenos diversos e seu entendimento exige olhares multidisciplinares. O entendimento dos processos sociais envolvidos nos fluxos de pessoas entre países, regiões e continentes passa pelo reconhecimento de que sob a rubrica migração internacional estão envolvidos fenômenos distintos, com grupos sociais múltiplos e implicações diversas. Se, de um lado, interessa aos estudiosos da mobilidade humana reter o termo migração como forma de legitimar e garantir a visibilidade do que está sendo tratado, também está posto o desafio de concretizar, em termos teórico- conceituais, “as diversas e complexas interligações de instâncias sociais, econômicas, culturais, jurídicas e institucionais, entre outras, que envolucram os movimentos de pessoas que cruzam fronteiras de Estados-nação.” (PATARRA, 2006, p. 09).

Essa complexidade ficou bastante explícita durante a pesquisa de campo, o que me levou a buscar outros aportes teórico-conceituais que dessem conta de auxiliar na análise dos fenômenos ali observados. Assim, o esforço analítico empreendido nesse capítulo é no sentido de buscar responder: por que o conceito de migração não é

21 Todas as citações cujos originais estão em inglês foram traduzidas por mim exclusivamente para fins de

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suficiente para analisar o contexto estudado? De que forma o transnacionalismo pode ser percebido no local de origem? Quais são as principais características do transnacionalismo nesta comunidade? Qual a influência desse fenômeno na cultura local e na dinâmica familiar dos jovens de SGP? Como se caracteriza a experiência da transição para a vida adulta que esses sujeitos estão vivenciando nesse contexto transnacional?