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4.10 OS FILHOS DA MIGRAÇÃO E A TRANSIÇÃO PARA A VIDA ADULTA Lembro-me de um adágio popular muito comum no interior do Nordeste

brasileiro, que eu ouvi diversas vezes durante a minha infância: “São Paulo é terra onde filho chora e mãe não vê”. Só fui entender o que esse ditado de fato significava quando, aos 19 anos de idade, deixei a casa dos meus pais e me tornei uma migrante interna. A separação da família me fazia sentir, em alguns momentos, órfã de pais vivos. De fato, aquele foi o meu marco na transição para a vida adulta. Não foi apenas deixar a casa dos pais, mas deixar os pais para trás, afastar-me geograficamente, a uma longa distância, embora dentro do meu próprio país.

Analisando o caso dos jovens desta investigação que vivem longe das famílias, optei por identificá-los como “filhos da migração”, afinal, pelo menos em boa parte dos casos que tomei conhecimento, apesar da separação geográfica, eles não abandonam completamente o núcleo familiar. Eles se reorganizam, reestruturam a disposição dos membros da família de modo a se apoiarem mutuamente, criando arranjos tanto no local de origem como de destino. Dessa forma, não considero filhos da migração somente aqueles cujos pais partem e eles ficam sendo cuidados por outros membros da família, mas também os que partem, deixando os pais para trás. Em ambos os casos, o que pude perceber é que, apesar da separação física, os laços de afetividade, cuidado e solidariedade da família perduram. Um caso desses é de uma família de quatro filhos (um rapaz e três moças) dividida pela migração. O rapaz emigrou e levou, uma de cada vez, as duas irmãs mais velhas, deixando a caçula com a mãe. Ele foi deportado depois de dez anos vivendo nos Estados Unidos e as duas irmãs permaneceram, apoiando-se e dando prosseguimento ao sonho de juntar dinheiro para voltar ao Brasil. A mãe, zelosa tanto com os que ficaram como com os que partiram, mostra-se preocupada com o estilo de vida das duas filhas que vivem nos Estados Unidos:

134 Minhas filhas [que vivem nos Estados Unidos] não aproveitam nada da vida. Só ficam trabalhando. Tem uma que quando liga nem quer muito saber das festas por aqui, só pergunta como eu tô e pronto, desliga. Eu acho que ela se arrependeu muito de ter ido, mas agora não tem volta, não terminou os estudos, vai fazer o quê? (NOTAS DE CAMPO – 01/12/10)

Os filhos da migração quando não se separam dos pais ainda na infância, a separação se dá na juventude. A legislação brasileira considera jovens os sujeitos que compõem a coorte geracional compreendidos na faixa etária entre 15 e 29 anos de idade. O grupo de jovens desta investigação é composto por sujeitos que, além de pertencerem a uma mesma geração, também compartilham de outros aspectos da vida que os identificam como jovens. Todos estão vivenciando o processo de transição para a vida adulta e, nesse contexto, os marcadores principais, tradicionalmente utilizados nas pesquisas, parecem não dar conta de explicar. Isto é, a complexidade das sociedades contemporâneas trouxe à tona novos modos de viver a juventude e novos modelos de transição para a vida adulta, seja conjugando os marcadores tradicionais, seja alternando esses modelos dentro da “lógica da reversibilidade” definida por Pais (2001), seja criando formas próprias de transição, como acontece com os filhos da migração. Esses jovens têm vivenciado esse processo longe da família, instituição por excelência detentora de credenciais significativas nesse momento da vida (afetivas, materiais, culturais), sem a referência do pai, da mãe ou de ambos em alguns casos.

E assim meu tio foi... meu tudo. Aí meu... como é que fala? A minha figura masculina né ... Referência. Foi ele. Então eu aprendo andar de cavalo com ele, de bicicleta com ele. Aí eu... tipo quando ele ia sair, ele falava pra mim, quando ele ia sair. E sempre ele me levava porque, né, eu gostava demais, sei lá como é isso. Aí foi isso, né, essa convivência. Aí meu pai voltou, aí eu achei estranho, que eu não queria aquele pai não. Eu queria o outro. (Thalia).

No caso dessa jovem, o rearranjo familiar mencionado no tópico anterior é claro. A figura do pai é substituída pelo tio com quem ela conviveu mais de perto desde criança e que também emigrou quando ela estava entrando na puberdade. Ela se dizia bastante perdida, sem entender algumas situações que lhe afetavam. Os modelos de transição para a vida adulta marcados por lógicas próprias são problematizados por Pais, Cairns e Pappámikail (2005), por meio da ideia de “trajetórias fragmentadas”, para

135 referirem-se a um processo que se desenvolve a partir de uma lógica que remete às diferentes condições juvenis. Falam ainda de “múltiplas transições” que, embora não sejam diretamente para o mundo adulto, fazem parte do caminho como uma etapa da transição, por exemplo, a transição da escola secundária para o ensino superior. Os autores nos instigam a repensar e reelaborar modelos analíticos de transição na contemporaneidade.

A transição para a vida adulta no contexto desta pesquisa é marcada por especificidades na condição juvenil, já explicitadas em capítulos anteriores, e tem dois aspectos que são significativos e que, em alguns casos, são os marcadores principais da transição para a vida adulta: o término do Ensino Médio e o papel do jovem na família. O Ensino Médio, para muitos, é um rito de passagem importante, uma conquista para muitas famílias que se sacrificam para verem os filhos “formados” e conquistam esse objetivo no último fôlego.

Com a democratização do acesso ao nível médio de ensino no sistema educacional brasileiro, o término do ensino médio tem se mostrado como um momento crucial na definição dos projetos de vida dos jovens brasileiros de um modo geral. Para esse grupo de jovens do meio rural, esse rito de passagem é ainda mais claro. Concluir o ensino médio significa ter que tomar a principal decisão das suas vidas: permanecer em SGP ou emigrar, seja para uma das cidades da região, para outro país (as duas opções mais comuns), para a capital do estado ou para outro estado do Brasil. Quando indagados sobre os planos para depois do ensino médio, o desejo pela continuidade dos estudos, o que implica, na maioria dos casos, ter que sair da cidade, é significativo (55,9%), ao passo que os que intentam permanecer na cidade e/ou trabalhar na propriedade rural da família são a minoria (5,6%), contra 4,1% dos que manifestaram desejo de sair do país depois que concluírem a escolarizaçao básica.

Outro aspecto que marca a transição são os papéis assumidos na família pelos jovens. O trabalho, por exemplo, é uma realidade comum à maioria, seja o trabalho remunerado formal, seja o trabalho produtivo na propriedade da família (em geral não recebem salário, apenas o custeio dos gastos com lazer), seja o trabalho doméstico, considerado nesse grupo como uma “obrigação” das meninas e que não lhes rende qualquer remuneração. Isto é, a condição juvenil não se define pela moratória para o

136 período de estudos ou de momentos de lazer e sociabilidade, mas agrega esses aspectos ao trabalho e às responsabilidades no seio da família.

As discussões relativas à condição juvenil neste capítulo são essenciais para se pensar os projetos de vida dos jovens que serão tratados no próximo capítulo.

137 CAPÍTULO V – JUVENTUDE E PROJETO DE VIDA

“[...] Acho que gosto de São Paulo Gosto de São João Gosto de São Francisco e São Sebastião E eu gosto de meninos e meninas. [...]” Meninos e Meninas Legião Urbana 5.1 – POR QUE DISCUTIR PROJETOS DE VIDA.

Este capítulo tem o objetivo de apresentar e discutir uma parte fundamental desta investigação: a forma de organização dos projetos de vida dos jovens de SGP. Um grande esforço foi empreendido ao longo do capítulo no sentido de explicar o conceito de projeto e, consequentemente, de projeto de vida. Ao utilizar a categoria projeto de vida, não me limito ao recorte temporal de um tempo futuro, seja próximo ou distante, mas trato na perspectiva da narrativa biográfica, que envolve passado, presente e futuro. Isso explica porque utilizo o termo projeto de vida e não de futuro, pois este soaria redundante, já que o futuro está explícito quando se fala em projeto. Não tem como projetar o passado. Assim, compartilho da ideia de que “todo projeto, por meio da identificação de um futuro desejado e dos meios próprios para fazer com que aconteça, estabelece certo horizonte temporal no interior do qual evolui” (BOUTINET, 2002, p. 78). Nessa mesma perspectiva, também considero que ao conceito de projeto está ligado outro importante conceito, o de tempo, afinal, “o homem se faz na história” (MENESES, 1982, p. 35) e para o entendimento dessa história a dimensão temporal é imprescindível.

Por assim entender é que foi necessário delinear todos os aspectos levantados e discutidos nos capítulos anteriores, relativos a particularidades importantes da história de vida dos jovens, bem como aquelas relativas às suas famílias, às instituições em que estão sendo socializados, ao território onde nasceram e estão crescendo e ao período histórico em que estão vivendo. É ancorado nesse quadro, composto por elementos diversos relativos ao contexto e à identidade do sujeito, que seus projetos de vida estão se delineando.

Desvelar os projetos de vida desses jovens não foi um exercício fácil. Talvez pela forma como a concepção de projeto está presente na nossa sociedade, como algo

138 sistematizado e documentado, de uma maneira que a ideia de projeto de vida pode não fazer sentido a princípio. Eis a razão pela qual nos perguntamos: existe de fato um projeto de vida? Quando surge? Como podemos identificá-lo e caracterizá-lo? Todos têm projetos de vida? No que se assemelham e no que diferem de outros tipos de projetos? Essas são perguntas frequentes quando falamos em projetos de vida e algumas das respostas foram contempladas no âmbito desta investigação, relativamente aos projetos de vida dos jovens de SGP.