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[...] Eles dormiram num pasto. Não, primeiro dia foi tipo perto da floresta, e o pessoal caçando, passando de helicóptero, cachorro, mas não conseguiram achar eles. Acho que eram uns dez, tudo dentro de uma caminhonete, deitado um quase em cima do outro, assim. Aí depois eles ficaram lá e o cara veio, o cara voltou, foi lá na frente e esperou a polícia ir embora e no outro dia de manhã é que ele voltou e veio buscar eles. Eles tavam na estrada esperando que passasse um carro pra poder prender eles né, porque eles já não tavam mais agüentando, né? (Ernesto).

Histórias como essas são comuns na região, sobretudo de quem se aventurou na travessia pelo México, o que tem se tornado cada vez mais difícil. Durante o período em que lá estive, ouvi diversas histórias de pessoas que fizeram a travessia, umas relatadas com muita dor e sofrimento; outros, no entanto, talvez por vergonha, tentam minimizar

122 a experiência, afirmando que não enfrentaram qualquer dificuldade, o que é desmentido sistematicamente. Há quem se refira à travessia do deserto como “o inferno aqui na terra” e, em relatos mais emocionados, ouvi pessoas dizeram que pediram para ser pegos pelo serviço de imigração ou para morrer, pois não viam outro jeito de acabar com aquele sofrimento. A morte, aliás, em alguns casos, acaba por ser o destino de alguns que investem nessa empreitada. Quando cheguei à cidade, em setembro de 2010, os moradores da região ainda estavam aturdidos com a notícia dos dois jovens da vizinha Sardoá que haviam sido assassinados em uma chacina perto de cidade de San Fernando na fronteira do México quando esperavam pelos coiotes que os guiariam na travessia. Esses e outros casos malsucedidos de tentativa de emigrar são exemplos de que Minas Gerais pode até não ter fronteira e, nesse sentido, sair do estado ou mesmo do país pode até ser “fácil” como afirmam alguns agenciadores, o que não significa que entrar em outro país também seja.

A história de vida dessas pessoas guarda elementos importantes para se compreender a própria história desse estado e desse país. Apreender o significado do papel das migrações (internas e internacionais) para o estado brasileiro de Minas Gerais requer o entendimento da própria história desse estado, conhecido em alguns ditados populares como “terra de passagem”. Uma vez que o processo de colonização brasileiro deu-se a partir do litoral, as terras mais interioranas só passaram a ter valor quando alguma riqueza natural foi descoberta, depois que se iniciaram as expedições dos bandeirantes. No caso de Minas Gerais, rico em recursos naturais, as pedras preciosas que deram origem ao nome do estado, foram os primeiros recursos naturais a serem encontrados pelos bandeirantes e logo começaram a ser explorados. O ouro, tão cobiçado pela coroa portuguesa desde a chegada ao Brasil, em 1500, só foi descoberto com as primeiras expedições exploratórias ao interior do país, no final do século XVI, tendo seu ciclo consolidado no século XVII. No início do século XX, os recursos naturais da região mineira de Governador Valadares começaram a ser explorados. De acordo com Espíndola (1998, p. 158):

Ao lado da mica, destacaram-se as atividades de beneficiamento da madeira, cujo auge também se concentrou nos anos quarenta e cinquenta, quando assumiram o papel de motores do crescimento de Gov. Valadares. A indústria da madeira teve início nos anos vinte, com a produção de dormentes para a Estrada de Ferro Vitória a Minas.

123 Até os anos trinta, a exploração não se deu em bases racionais, de forma que se pudesse caracterizá-la como um empreendimento capitalista.

A exploração da mica, mineral utilizado na indústria bélica na Segunda Guerra Mundial e cujo domínio na exploração durante os anos trinta e quarenta foi feito por empresas norte-americanas, é apontada por diversas pesquisas26 como o principal fator que contribuiu para o início do ciclo migratório na região. Isso porque, terminado o ciclo exploratório, os cidadãos norte-americanos que ali haviam se estabelecido retornaram ao seu país, alguns levando consigo pessoas para trabalharem em suas casas. Ainda durante as muitas idas à região, na etapa exploratória da pesquisa de campo, já eram visíveis os sinais da cultura da migração e do transnacionalismo na região. Os primeiros olhares já deixaram claro a forte ligação da população local com contextos internacionais. São várias as histórias de parentes, vizinhos ou conhecidos que vivem fora do Brasil, que foram e já retornaram ou que estão se preparando pra ir. Nesse contexto, algumas pessoas demonstram certa familiaridade com termos alheios à realidade local. Por exemplo, falam de aspectos geográficos da região de fronteira dos Estados Unidos ou mesmo de aspectos financeiros, como a conversão monetária do dólar, de forma bastante familiar. Não que esses sejam temas estranhos ou desconhecidos de boa parte da população brasileira, mas se pensarmos em um pequeno município de 5.000 habitantes, com acesso restrito à internet, onde o melhor acesso à TV ainda é por meio de antena parabólica e o acesso à internet feito por rádio, as novidades trazidas ou contadas por telefone pelos parentes que vivem em Boston ou Nova Iorque podem chegar muito mais rápido lá que aos moradores da periferia de um grande centro urbano. Em visita ao município de Fernandes Tourinho, 50 km de Governador Valadares, chamou-me atenção uma jovem que estava limpando a igreja matriz da cidade. Ela me contou rapidamente a história de sua irmã caçula que já havia tentado entrar duas vezes nos Estados Unidos pela fronteira do México e, da segunda vez, já estava no Texas quando foi alcançada pelo serviço de fronteira e deportada. Falava com um conhecimento geográfico dessa região incompatível com o seu aparente pouco grau de escolaridade perceptível na linguagem utilizada.

124 Os modos de vida nesses locais de origem dos fluxos migratórios evidenciam características interculturais, em que o local e o global se fundem trazendo à tona elementos do que pode ser entendido como cultura da migração. Foi o que percebi em uma das primeiras incursões à região, em Sobrália, quando um dos mais antigos moradores locais, ao me apresentar a cidade, e seu patrimônio construído com os dólares enviados pelos filhos do exterior, enfatiza a forte influência dos que vivem fora na transformação da cidade e dos modos de vida dos moradores. As casas coloniais, de dois pavimentos, são o grande sonho de consumo. Essa é uma característica muito forte nos municípios da região, ou seja, os casarões luxuosos, construídos e decorados com o que há de mais moderno na indústria moveleira e na construção civil.

Nesse aspecto, os padrões de consumo também revelam o diálogo entre o global e o local. A primeira vez que estive em SGP, ainda sem ter definido aquele como local para pesquisa de campo, chamou-me atenção a história de uma família que contabiliza cerca de 40 membros com histórico de migração (emigrados ou retornados). A esposa de um desses membros construiu e mobiliou a casa com materiais e móveis “encomendados da cidade grande”, como faz questão de ressaltar, e “tudo de primeira qualidade”. Essa mesma família faz as compras de mantimentos em uma pequena mercearia e o acerto é feito ao final do mês, quando o marido manda as remessas. Nessa pequena mercearia, tanto pra essa família como para todas as outras que também são freguesas do local, tudo é anotado na caderneta, um antigo costume que tem resistido à chegada dos dólares e ao uso dos cartões de crédito.

Na cidade de Governador Valadares, durante uma dessas visitas, conheci uma profissional da educação que se apresentou como coordenadora pedagógica de uma das melhores escolas privadas da cidade. Em uma conversa informal na praça da matriz, por ocasião de uma festa junina, ela me relatou um grande desafio que sua escola vivenciava naquele ano de 2010, a presença de jovens retornados de países de língua inglesa nas turmas de ensino médio. O desafio dizia respeito ao precário – e em alguns casos até desconhecimento – da língua portuguesa. Disse-me que naquele ano estava com nove jovens que foram alfabetizados apenas em inglês e que nem ela nem a escola sabiam muito bem como lidar com a situação, que se complicava nos casos de alguns que não aceitavam a decisão do retorno imposta pelos pais.

125 Esse quadro geral evidencia a necessidade de uma análise para além da perspectiva local visto que, de acordo com os dados empíricos, esse contexto está impregnado por influências globais promovidas pelos movimentos migratórios transnacionais. Os dados coletados na pesquisa de campo evidenciaram que SGP é uma comunidade transnacional mas, ao mesmo tempo, não perdeu suas características de uma comunidade rural tradicional. Embora a economia local ainda tenha características rurais baseadas na criaçao bovina e na agricultura familiar, os sinais do uso de moedas estrangeiras estão em toda parte, como, por exemplo, negociar em dólares. Com relação aos costumes e manifestaçoes culturais locais, embora preservem festas tradicionais como a do “Boi de Balaio”, o “Festival da banana” ou mesmo as músicas sertanejas, elementos culturais de outros países são introduzidos em seu cotidiano, como a festa do “Halloween” que está se tornando uma tradição da cidade e os hits de artistas pops norte-ameticanos que têm lugar garantido nos bailes e cavalgadas. Esses casos ilustram um cenário de “hibridismo cultural” (GOLDRING, 1998; BASCH et all, 1994) ou de “sobrevivência cultural” (TURNER, apud SAHLINS, 1997) e pode ser uma resposta positiva a algumas visões apocalípticas sobre a influência da globalização para as comunidades tradicionais locais. Esse processo parece não ser recente, tampouco uma tendência apenas de SGP ou outros contextos transnacionais, mas vem sendo observado em outros contextos rurais, como observa Carneiro (1998, p. 68):

Tal processo implica um movimento em dupla direção no qual identificamos, de um lado, a reapropriação de elementos da cultura local a partir de uma releitura possibilitada pela emergência de novos códigos, no sentido inverso, a apropriação pela cultura urbana de bens culturais e naturais do mundo rural, produzindo uma situação que não se traduz necessariamente pela destruição da cultura local, mas que, ao contrário, pode vir a contribuir para alimentar a sociabilidade e reforçar os vínculos com a localidade.

Ressalto que a autora refere-se à relação rural-urbano e minhas análises nesse aspecto referem-se à relação global-local, mas a ideia é a mesma, ou seja, as transformações na comunidade rural provocadas pela intensificação das trocas com o mundo urbano (pessoais, simbólicas, materiais) não resultam, necessariamente, na descaracterização de seu sistema social e cultural como os adeptos da abordagem adaptacionista interpretavam (ibidem, p. 57), mas trata-se de um movimento de ressignificação da cultura local.

126 Os vínculos entre os transmigrantes e os não-migrantes têm influenciado não somente os aspectos culturais, mas também a economia local, a vida social e as decisões políticas em SGP. Um exemplo claro aconteceu nas eleiçoes locais de 2012 quando, depois de oito anos de mandato de uma família de tradição na política local, o prefeito eleito foi um imigrante retornado, também de uma família tradicional, que havia apoiado a candidatura da irmã no pleito de 2008, sem sucesso. Inconformado com os rumos políticos da cidade, retornou ao país em 2010 e decidiu candidatar-se. Teve imenso apoio da população e foi eleito com maioria absoluta dos votos.27 Situações

semelhantes, não só relativamente à política mas também a outras áreas, têm acontecido em outras comunidades transnacionais. Como mostraram Basch et all (1994), por exemplo, no caso da pequena ilha de Grenada, cuja população transmigrante influenciou, segundo as autoras, a população local nas discussões sobre o conceito de democracia nos anos de 1980, ou os casos de São Vicente e Grenada, que modificaram o período do carnaval para favorecer a participação dos seus endinheirados cidadãos emigrados.