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5.3 – DEFININDO PROJETO, UMA CATEGORIA MULTIDISCIPLINAR Uma das referências mais importantes neste trabalho para o debate sobre

projetos foi a obra “Antropologia do Projeto” do francês Jean Pierre Boutinet para quem o projeto é muito mais do que um simples conceito, mas trata-se de um regulador cultural e por isso mesmo demanda uma abordagem antropológica. Para o autor, é importante que se analise o lugar e as diferentes funções do projeto em uma determinada cultura e entre diferentes culturas, visto que se trata de uma referência simbólica significativa nas sociedades contemporâneas ocidentais.

Independente do contexto ou área do conhecimento em que é utilizado, projeto está relacionado à projeção, à antecipação. Boutinet (2002) define projeto como uma antecipação justificada em experiências prévias. Para esse autor:

Um grande número das realizações que concretizam a experiência humana são anteriormente interiorizadas, refletidas, antecipadas e orientadas pelo mecanismo do projeto. Este evitará que o indivíduo se deleite na compulsão da repetição, esforçando-se para criar o inédito, um inédito que mantenha um secreto parentesco com a experiência já realizada do indivíduo, com sua história pessoal. É esse parentesco, essa conivência não confessa – porque dificilmente observável – que dará significação ao projeto. (p. 270).

141 Nesse inédito que se busca conquistar por meio do projeto está implicado o desejo de mudança, de sair de uma determinada situação rumo à outra, em um futuro próximo ou distante, antecipando ações das mais simples às mais elaboradas. Por exemplo, se eu sei que tenho que ir à escola ou a um baile, fazer uma viagem ou mesmo fazer compras no supermercado, eu me planejo, ou seja, eu tento, de alguma forma, antecipar o que está por vir. É bem provável que por serem ações mais simples, cotidianas, nem sempre denominamos tais ações de projetos. Pode ser que chamemos isso de organização, planejamento, preparativos, mas a ideia é a mesma visto que se trata de “condutas de antecipação”. Nos termos de Schutz (Apud Velho, 2004, p. 26), “quando há ação com algum objetivo predeterminado, ter-se-á o projeto.” É isso que diferencia as condutas humanas dos comportamentos de outros animais, de natureza instintiva e apetitiva porque a capacidade de ter projeto é própria do humano (MACHADO, 2004; BOUTINET, 2002).

Boutinet (2002) identifica quatro modos característicos de antecipação: as antecipações adaptativas, alocadas nas figuras de previsão e previdência; as antecipações cognitivas, manifestadas por meios de adivinhações e profecias; as antecipações imaginárias, manifestadas pelas utopias e ficção científica; e, por fim, as antecipações de tipo operatório, estas organizadas com vistas a objetivos, a alvos, à realização de desejos, a planos, a projetos propriamente ditos. Diferente das anteriores, são justamente esses tipos de antecipações que definem o futuro pessoal que o autor da antecipação tentará realizar. Boutinet (Ibidem) as definirá como antecipações de tipo racional ou determinista (o alvo, o objetivo e o plano); de tipo volitivo formal (o desejo e o voto) e de tipo vago ou parcialmente determinadas (o projeto registrado, a intenção).

Por meio de uma discussão acerca das origens e evolução da concepção de projeto ao longo da história e do seu funcionamento tanto para os indivíduos como para os grupos culturais, Boutinet (2002) busca desvelar, em uma perspectiva multidisciplinar, o conceito de projeto abordando-o em diversas áreas, inclusive na educação. O autor advoga que o uso das noções de projeto nas sociedades modernas, marcadas por uma cultura tecnológica, tem se intensificado em oposição ao que se podia perceber nas sociedades tradicionais. Desafiando a si mesmo no debate sobre a forte presença da figura do projeto na nossa vida cotidiana, o autor questiona: “Esse capricho, no mínimo linguístico, que faz com que usemos e abusemos agora do termo projeto, é

142 afinal um puro capricho, ou revela questões psicológicas e sociais presentes em toda cultura, mas mais intimamente ligadas à nossa cultura tecnológica?” (BOUTINET, 2002, p. 31).

Segundo esse autor, o termo projeto surge, de maneira regular, no século XV, já com a conotação de perspectiva, de lançar-se para frente, embora ainda não utilizado no sentido amplo e multidisciplinar que tem hoje, somente adquirido a partir do século XIX. A história do conceito de projeto tem raízes na arquitetura, mas ganha lugar de destaque nas produções filosóficas na primeira metade do século XX, embasado no conceito de intencionalidade. Nessa perspectiva, “o projeto traduz a capacidade de devir do homem, o que ele pode ser em razão de sua liberdade” (Ibidem, p. 50), demarcado por dimensões objetivas e subjetivas, por tempo passado e futuro.

A centralidade da categoria projeto para a condição humana também é apontada por Machado (2004) para quem nós, seres humanos, alimentamo-nos dos projetos que realizamos. Para ele, o projeto é o que vai nos permitir fugir aos determinismos e improvisos, organizando e planejando nossas ações futuras. Esse processo não é linear tampouco singular. Ou seja, realizamos projetos diversos simultaneamente (pessoais e coletivos) e o fazemos em movimentos de ida e volta, de avaliação e reavaliação das nossas ações, orientando-nos por metas que foram atingidas (ou não) e por perguntas que foram respondidas (ou não). Nas palavras de Machado:

A fecundidade de uma pergunta é a garantia de que a resposta à mesma significará um esclarecimento e muitas outras dúvidas. Novas metas devem decorrer daquelas que foram atingidas, não como uma determinação, mas de modo natural. (MACHADO, 2004, p. 16). A ideia de projeto discutida pelo autor apresenta aspectos centrais para esta análise, às quais recorrerei mais adiante, e um deles é a noção de que projeto está diretamente relacionado a valores. Ou seja, um sujeito, em uma determinada sociedade e tempo histórico, vai desenvolver projetos embasados nos valores que orientam seus modos de ver o mundo. Por exemplo, um projeto de lei (que depois de analisado e aprovado torna-se legislação) que embasa a educação nacional de um país carrega, explícita e implicitamente, os valores que orientam essa sociedade e os sujeitos que se pretende formar. Da mesma forma, os projetos de vida são carregados de valores, tanto individuais quanto dos grupos sociais nos quais vivemos.

143 Ademais, Machado (Ibidem) argumenta ainda que os projetos apresentam alguns ingredientes fundamentais sem os quais não é possível seu entendimento. Assim, uma característica fundamental é a dimensão da novidade, a abertura para o novo. Ou seja, “se o futuro existe, mas já está totalmente determinado, também não se faz projeto.” E ainda, o autor aponta outra característica essencial para o entendimento dessa categoria que é o caráter indelegável e intransferível da ação projetada, no sentido de que “não se pode projetar pelos outros.” (p. 7). O entendimento dessa dimensão é fundamental, sobretudo no que tange aos projetos individuais ou de grupos, no sentido de que, por exemplo, os pais não podem (ou pelo menos não deveriam) projetar pelos filhos; ou uma escola não pode (ou não deveria) adotar para si o Projeto Político-Pedagógico de outra instituição ou elaborado por pessoas externas; ou ainda um professor não pode querer que seus alunos cumpram projetos que são seus (ou da escola).30 Nesse sentido, acredito que se o projeto é parte da condição humana, é necessário que seja pessoal, intransferível e indelegável. Cada um com seu projeto, mesmo que cada projeto não seja, necessariamente, exclusivo de cada um. Por fim, é importante ter sempre em mente que falar em projeto é tomar como referência o futuro, visto que estamos falando de antecipação de ações. Nas palavras do autor, “não se faz projeto se não há futuro – ou não se acredita haver.” (MACHADO, 2004, p. 6).