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A migração tem se constituído objeto de análise de estudiosos de diferentes áreas do conhecimento, podendo ser caracterizada como um campo multidisciplinar. As bases teóricas assentam-se em clássicos como os estudos de Ravenstein sobre as leis da migração, no final do século XIX e, mais recentemente, a teoria dos fatores push and

pull proposta por Everett Lee na segunda metade do século XX. Essas abordagens

enfatizam as determinações econômicas na decisão do indivíduo de migrar, analisam algumas regularidades e singularidades do fenômeno, bem como características tanto nos locais de origem como de destino que podem ser determinantes ao indivíduo na tomada de decisão. As concepções presentes nesses modelos de análise estão ancoradas na teoria econômica neoclássica, de cunho racionalista, em suas vertentes micro ou macro, que apontam os motivos econômicos como as principais razões para as migrações.

Desde a obra pioneira de Ravenstein, diversos estudos, em distintas áreas do conhecimento como a demografia, a economia, a sociologia, a geografia, dentre outras, têm tomado como objeto de análise a migração que, embora não seja um fenômeno recente, não é uma categoria de fácil definição. A dificuldade de elaboração do conceito de migração, de acordo com Martine (1980), pode ser reflexo de uma discrepância conceitual entre as diferentes áreas e paradigmas epistemológicos que se ocupam do fenômeno. Para outros autores como Oliveira e Stern (1971) e Baganha (2001), pode ser consequência da ausência de uma teoria geral dos processos migratórios. De acordo com Standing (1984), essa dificuldade deve-se ao fato de que, para definir migração, há que se considerar quatro dimensões cruciais: espaço, residência, tempo e atividade laboral. Para esse autor, também é importante pensar o tipo de mobilidade: permanente,

112 temporária, pendular (diária), período prolongado ou não migrantes. Essa miscelânea de classificações, embora não sendo suficiente para definir as diversas formas de mobilidade humana, constitui um ponto de partida interessante para uma aproximação do conceito, conquanto não ofereça ainda uma resposta satisfatória. Sendo assim, cabe perguntar: Quem é migrante, afinal?

Para a Organização das Nações Unidas (1997), o conceito de migrante não deve pautar-se apenas no fato de o sujeito atravessar ou não uma barreira política, mas há que se considerar critérios como duração da estadia, razões para o deslocamento e até as condições de cidadania de que dispõem o migrante na região ou país de acolhimento (ALVES, 2007). Assim, há que se compreender, dentro da pluralidade de características que marcam os movimentos populacionais, quem são os sujeitos que protagonizam tais movimentos que estamos chamando de migrantes.

As características do movimento de pessoas ao redor do planeta, em diferentes períodos históricos, têm feito emergir diferentes status para diferentes sujeitos que protagonizam os movimentos migratórios (MOSES, 2006). De acordo com esse autor, três etapas distintas no histórico dos movimentos migratórios podem ser identificadas: o período mercantilista, marcado pela migração forçada de africanos para a América; o período liberal, caracterizado pelo estímulo à circulação de pessoas; e o novo período liberal contemporâneo, que se caracteriza pela aceleração dos processos, por diversas razões e, paradoxalmente, pelo acirramento do controle das fronteiras. Ademais, esse grupo que protagoniza as migrações nos períodos mais recentes da história tem especificidades que diferenciam os movimentos contemporâneos dos períodos anteriores. “Estudos sobre os “novos imigrantes” do mundo pós-Segunda Guerra Mundial estão repletos de descrições da propensão do recém-chegado a firmar raízes no seu novo mundo, ao mesmo tempo em que mantêm laços vitais com o velho mundo” (BASCH et all, 1994, p. 31). É precisamente essa abordagem dos estudos do transnacionalismo - na perspectiva discutida por Basch et all (1994) e também por outros autores que dialogam com essa obra - que melhor caracteriza os sujeitos que protagonizam os movimentos migratórios no contexto aqui estudado.

Todavia, vencer o desafio de identificar o grupo a que nos referimos dentro desse guarda-chuva no qual se pode alocar essa categoria não é suficiente. Essa foi uma das conclusões a que cheguei em minha pesquisa de mestrado com crianças, filhos de

113 imigrantes brasileiros no contexto escolar português (ALVES, 2007). O que pude observar, naquele caso, é que as diferentes (e por vezes cruéis) formas de viver na sociedade de acolhimento depende, por um lado, do status legal do sujeito, mas, por outro, de aspectos identitários como o território de origem, o gênero e a cor da pele. Ou seja, naquele estudo ficou explícito que as variáveis “estrangeiro” ou “imigrante” isoladas não têm o mesmo valor que têm quando conjugadas a esses e outros aspectos da identidade.22

Embora no referido estudo eu tenha analisado um grupo de crianças brasileiras na relação com outros grupos (estrangeiros e autóctones), os estudos de Margolis sobre os brasileiros em Nova Iorque mostram que, até dentro de um mesmo grupo étnico, essas diferenças podem gerar status desiguais no país de acolhimento. A comunidade brasileira em Nova Iorque, por exemplo, discrimina negativamente os mineiros e descrevem-nos como “muito provinciais, sem requinte, astutos, exploradores e mercenários.” (MARGOLIS, 2009, p. 33). Ou seja, um mesmo grupo, com mesma origem territorial, mas marcados por diferenças como classe social, raça, geração, nível de escolaridade, domínio da língua inglesa, tempo de residência nos Estados Unidos, dentre outros. À variável imigrante acrescida de outras como: brasileiro, negro/branco, com ou sem diploma universitário, da capital ou do interior, com ou sem documentos, falante da língua inglesa ou não, dentre outros, fazem diferença na condição de migrante.

Dentro de alguns desses aspectos, há ainda outras categorias que podem afetar de forma diferente as experiências do migrante no país de acolhimento, por exemplo, o

status legal, como evidencia Cebulko (2009) em análise de migrantes vivendo nos

Estados Unidos. Essa autora classifica os migrantes no local de destino por status legal, de acordo com as seguintes categorias: indocumentados (que não têm permissão para viver no país); em legalidade limiar (que estão em processo para adquirir a permissão); residentes permanentes legais (que possuem documentos) e cidadãos (imigrantes que adquiriram a cidadania do país de destino).

Dada a dinamicidade do fenômeno da migração, tais categorias podem tornar-se insuficientes diante dos acontecimentos cotidianos que envolvem esse grupo. Por

22

Nesse estudo, analisei o caso de três crianças, duas meninas (uma negra e uma branca, identidade racial por mim atribuída) e um menino, na suas relações de sociabilidade dentro de uma escola que atendia crianças estrangeiras de pelo menos sete países diferentes.

114 exemplo, a análise de Cebulko (op. cit.) não abarca o mais recente status de imigrante que se pode identificar nos Estados Unidos. Trata-se dos jovens beneficiados com a publicação do Deferred Action for Childhood Arrivals23, no primeiro semestre de 2012,

pelo presidente Barack Obama. De acordo com essa legislação, publicada em 15 de junho daquele ano, podem se beneficiar dessa política aqueles que atendam aos seguintes requisitos:

Tinham menos de 31 anos de idade na data da publicação; chegaram aos Estados Unidos antes de completar 16 anos de idade; terem residido ininterruptamente no país desde 15 de junho de 2007; estavam fisicamente presentes no país na data da publicação; entraram no país sem inspeção antes dessa data ou seu estatuto legal expirou nessa data; estão estudando ou concluíram o ensino médio; integram as forças armadas e não tenham sido condenados por crime ou contravenção significativos.

Fonte: http://www.uscis.gov/portal/site/uscis

Comprovadas as exigências e após pagar uma taxa de $465,00, o jovem conquista o direito de estudar e trabalhar legalmente nos Estados Unidos por pelo menos dois anos, podendo solicitar prorrogação desse status por igual período. Importa ressaltar que a Ação não legaliza aqueles que vivem indocumentados no país, apenas suspende temporariamente a deportação dos sujeitos que se enquadram nos requisitos acima descritos. Trata-se, portanto, de uma política de governo, de caráter provisório e temporária e que tem como público-alvo o grupo numericamente mais significativo no fenômeno das migrações, os jovens24. Assim, essa iniciativa faz surgir uma categoria de

imigrantes que não são nem indocumentados, porque a legislação cessa a ameaça de deportação fornecendo-lhes documentos provisórios; mas também não estão em legalidade limiar, porque a Ação não prevê a possibilidade de residência permanente. Esses jovens estão em uma espécie de “limbo”. Eles saíram da ameaça infernal da deportação, mas não chegaram ao paraíso da residência permanente, nem da promessa.

23 Ação Deferida para Chegadas na Infância.

24 De acordo com McKanzie (2008), os jovens de 12 a 24 anos representam um quarto dos migrantes

internacionais. Esse grupo não é apenas numericamente significativo. Nos Estados Unidos, os imigrantes em situação irregular, dentre eles muitos jovens estudantes, têm organizado manifestações diversas, alguns cruzando o país em um ônibus (undocubus) pintado com a frase “No papers, no fear,” (sem papéis, sem medo), levando sua mensagem a diferentes partes do país e às convenções partidárias nesse ano de eleição presidencial.

115 Todo esse debate acerca do conceito de migração, de migrantes, de status diferenciados para os sujeitos dos processos migratórios evidencia a complexidade das migrações e acirra a discussão acerca dos processos migratórios, que Sayad denomina de “sistema”.

Por durar tanto, por se generalizar a ponto de se tornar um dado estrutural de todos os países desenvolvidos e, mais fundamentalmente, por se institucionalizar sob a forma de oposição intrínseca entre o mundo da emigração (que tende a se confundir com o mundo do subdesenvolvimento) e o mundo da imigração (mundo identificado como o mundo desenvolvido) e, dessa forma, por se universalizar, a imigração acabou por constituir-se um sistema. [...] É um sistema porque é igualmente dotado de uma lógica própria, porque tem seus efeitos e suas causas próprias, bem como suas condições quase autônomas de funcionamento e de perpetuação. (SAYAD, 1998, p. 105)

Para o autor, o fenômeno da imigração deve ser entendido como um “fato social total” (SAYAD, 1998), visto se tratar de algo que é ao mesmo tempo histórico e estrutural e tem na emigração uma de suas partes integrantes. Nessa perspectiva, falar de imigração é falar de emigração. Uma não existe sem a outra, já que o “movimento migratório” envolve os dois polos, em diversas etapas, desde o planejamento inicial até as diversas formas de inserção e adaptação nos locais de destino e, em alguns casos, mantém esses dois polos ligados a ponto de serem vistos como “desterritorializados” (BASCH et. all). Assim sendo, o sujeito do movimento migratório, o migrante, é ao mesmo tempo o emigrante, do ponto de vista do local de origem e o imigrante, quando está no local de acolhimento.