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CAPÍTULO 2 COMO ESTUDAR SOCIOLOGICAMENTE OS ADOLESCENTES

2.2 ERVING GOFFMAN, AFIF FOUCAULT, JAMES SCOTT E ANTHONY GIDDENS

2.2.4 A agência do sujeito

isso, tornou-se central pensar a agência que os adolescentes possuem e como a utilizam para resistir, conforme demonstraremos abaixo.

A partir do que Scott compreende por resistência, podemos voltar ao problema de pesquisa proposto para entendermos como se dão essas resistências cotidianas, por parte dos jovens, dentro dessas instituições de cumprimento de medida socioeducativa de internação e quais significados os adolescentes atribuem aos seus atos quando resistem a determinadas demandas impostas por essas instituições.

É importante perceber, destarte, que os adolescentes não estão apenas aos “cuidados” do Estado quando em contexto de internação. Eles também se encontram em uma situação “ilegítima” perante a sociedade, uma vez que cometeram um crime. Talvez pudéssemos pensar, guardando as devidas proporções, nos escravos trazidos no exemplo de Scott (2011, p. 224) – uma vez que o sistema escravocrata era legítimo e os subordinados àquele sistema se encontravam em uma posição desfavorecida nesse jogo de poder.

A intervenção, nesses adolescentes, não se dá apenas em nível corporal, como no suplício, eles não são apenas corpos nus. Há histórias, trajetórias e relações que atravessam esses corpos que, muitas vezes, não são consideradas pelos agentes que compõem a última fase da execução da medida/pena. Apresenta-se a eles uma forma correta de “ser”, ambiciona-se transformar esses adolescentes em conflito com a lei em “bons cidadãos”, que não mais desrespeitarão as normas impostas pela sociedade, legitimadas enquanto normas. Acontece que a vida social, (in)felizmente, não opera em categorias fechadas. E essa tentativa de regular os corpos se torna, mesmo que não meramente formal, mais uma forma de controle.

2.2.4 A agência do sujeito

Partindo, então, para a análise dos sujeitos como indivíduos que refletem acerca de suas condutas, foi importante trazer ao bojo deste trabalho o conceito de agência desenvolvido por Anthony Giddens (1999). Isso porque, durante toda a realização da parte empírica da pesquisa, foi percebido que os adolescentes tinham liberdades de ação, que não haviam sido pensadas anteriormente na formulação do anteprojeto que originou esta tese. Assim, partindo das ideias do autor de romper com o imperialismo

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do objeto social e o imperialismo do sujeito, ou seja, do todo sobre as partes e das partes sobre o todo (funcionalismo e estruturalismo, respectivamente), mobilizamos alguns de seus conceitos para a presente tese.

Quando observada a produção intelectual dos sociólogos com relação às possibilidades de os indivíduos agirem de maneira subordinada às restrições impostas pelo sistema ou estrutura social, enxergamos uma série de diferentes explicações. É por isso que, para esta tese, a teoria da estruturação de Anthony Giddens foi utilizada: para explicar as relações de interdependência que existem na estrutura e nas ações que ocorrem dentro dos complexos de internação de adolescentes, considerando que o autor é um dos intelectuais contemporâneos que tenta propor uma resolução teórica para a antinomia estrutura-ação.

Uma de minhas principais ambições na formulação da teoria da estruturação é por um fim a cada um desses esforços de estabelecimento de impérios. O domínio básico de estudo das ciências sociais, de acordo com a teoria da estruturação, não é a experiência do ator individual nem a existência de qualquer forma de totalidade social, mas as práticas sociais ordenadas no espaço e no tempo (GIDDENS, 2013, p. 2).

Nesse sentido, Giddens conceitua a sua teoria da estruturação como o processo de relações sociais que se estruturam no tempo e no espaço via dualidade estrutural. Não é possível, de acordo com Giddens, conceber os sistemas sociais e a ação individual de modo separado, por isso a razão de ter dedicado sua obra a explicar a conexão entre esses conceitos. Assim, para ele, tanto os sistemas sociais como a ação individual não podem existir ou serem admitidos na realidade pura/imóvel, exceto em relações recíprocas entre si. Essa necessidade recíproca de existência é a própria dualidade da estrutura.

[...] esta dualidade da estrutura é a característica mais integral dos processos de reprodução social, que, por sua vez, podem sempre ser analisados em princípio como um progresso dinâmico de estruturação. Analiticamente, três elementos das formas de interação podem ser distinguidos: toda interação envolve comunicação (tentativa), a operação do poder e relações morais. As modalidades pelas quais os atores participantes ‘trazem’ esses elementos para a interação também podem ser tratadas como meios pelos quais as estruturas são reconstituídas. (GIDDENS, 1978, p. 134).

Assim, as condições relevantes para a reprodução das estruturas são:

[...] as qualidades constitutivas dos atores sociais; a racionalização dessas qualidades em formas de atuação; as características não explicadas dos conjuntos de interação que provocam e permitem o exercício de tais

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capacidades, que podem ser analisadas em termos de elementos de motivação, e o que eu chamarei de ‘dualidade da estrutura’. (GIDDENS, 1978, p.109).

A dualidade estrutural apresentada pelo autor é, portanto, indicada por duas estruturas que são resultados de ações anteriores e condições para ações posteriores e por isso podem ser consideradas condições e produtos da ação. Dessa maneira, a estrutura passa a ser um sistema composto por regras, recursos, limites e possibilidades e, portanto, a estrutura é o resultado de uma ação anterior. A estrutura é condição e consequência da ação. No caso deste trabalho, entender a agência dos jovens é entender como a própria estrutura funciona, já que a própria instituição (estrutura) não é exterior ao indivíduo, mas sim faz parte de sua capacidade de agir. Assim,

‘Agência’ não se refere às intenções que as pessoas têm ao fazer as coisas, mas a capacidade delas para realizar essas coisas em primeiro lugar (sendo por isso que ‘agência’ subentende poder: cf. uma definição de agente do Oxford English Dicitionary como ‘alguém que exerce poder ou produz um efeito’). ‘Agência’ diz respeito a eventos dos quais um indivíduo é o perpetuador, no sentido de que ele poderia, em qualquer fase de uma dada sequencia de conduta, ter atuado de modo diferente. O que quer que tenha acontecido não o teria se esse indivíduo não tivesse interferido. A ação é um processo contínuo, um fluxo, em que a monitoração reflexiva que o indivíduo mantém é fundamental para o controle do corpo que os atores ordinariamente sustentam até o fim de suas vidas no dia a dia. Sou o autor de muitas coisas que não tenho a intenção de fazer e que posso não querer realizar, mas que, não obstante, faço. Inversamente, pode haver circunstâncias em eu pretendo realizar alguma coisa, e a realizo, embora não diretamente através de minha agência. (GIDDENS, 2013, p. 10-11).

O autor explica que a agência não diz respeito às intenções em si, ou seja, aquilo que os sujeitos têm que fazer para produzir determinadas condutas, “mas primeiramente à sua capacidade de fazer essas coisas. [...] A ação depende da capacidade do indivíduo de ‘causar uma mudança’ em relação a um estado de coisas ou curso de eventos preexistente” (GIDDENS, 2013, p. 34). Isso implica, de acordo com Giddens, que todos os indivíduos exercem um determinado tipo de poder, mesmo aqueles em posições de extrema subordinação – como poderiam ser caracterizados os adolescentes em confinamento na França e no Brasil. Poder, nesta tese, não reflete aquilo que Foucault determinou há muito como a tríplice vertente de poder, direito e verdade, mas sim a própria agência do sujeito individual imbricado em determinado contexto.

Pensar as instituições de cumprimento de restrição de liberdade como locais em que as relações são imóveis, é não compreender, a priori, o que ocorre lá dentro, pois como pensado através da teoria da estruturação, esses espaços se transformam

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cotidianamente através das próprias ações dos atores lá envolvidos (dualidade da estrutura), que podem agir ou não dentro das regras e normas daquele local.

Podemos pensar que em todas as formas de dependência existem recursos em que aqueles que estão em uma condição de opressão podem influenciar de alguma forma aquela situação, participando ativamente na construção de saídas daquela condição (GIDDENS, 2013). Quando o adolescente, por exemplo, enxerga a possibilidade de submissão como forma de resistir à internação (aceitar as atividades e considerar a escola importante), ele o faz para ter a possibilidade de receber uma progressão de regime. É importante enfatizar que a agência, de acordo com Giddens, não é simplesmente um atributo do ator individual ou do sujeito naquela condição. A agência, que se manifesta quando ações particulares causam uma mudança em relação a um estado de coisas ou curso de eventos preexistentes, acarreta relações sociais e somente pode ser efetivada através delas. Nesse sentido, a agência requer algum tipo de capacidade de organização, e não é simplesmente o resultado de certas capacidades cognitivas, de poderes persuasivos ou de formas de carisma que um indivíduo possa ter.

Dessa forma, a agência requer estratégia de uma rede de relações sociais e o encaminhamento de itens específicos (como reivindicações, ordens e desordens, bens, instrumentos e informação) através de certos pontos fundamentais de interação. Para isso, torna-se essencial que os atores sociais travem e vençam batalhas que ocorrem sobre a atribuição de significados sociais específicos a determinados acontecimentos, ações e ideias.

Na sociologia, não há dados ou observações isentos de teoria. A sociologia posiciona-se no seu campo de estudos a um nível de relação sujeito/sujeito, lida com um mundo pré-interpretado em que os significados desenvolvidos pelos sujeitos ativos entram de fato na constituição ou produção desse mesmo mundo. A construção da teoria social envolve desta forma uma hermenêutica dupla que não tem paralelo em lado algum. (GIDDENS, 1978, p. 167). Ou seja, entender a resistência dos jovens significa assumir os significados que eles dão a elas. Vistos a partir dessa perspectiva, os modelos específicos de intervenção tornam-se armas estratégicas nas mãos das instituições e das pessoas encarregadas da promoção do desenvolvimento daquele local e, também, em razão da estruturação, daqueles adolescentes, pois eles também usam os modelos a seu favor no processo de resistência e existência dentro da instituição. Exemplo disso é quando eles usam o “já se sabe” para se beneficiar: saber que os técnicos enviarão um relatório bom ao juiz,

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explicando que o adolescente participa ativamente das atividades e que vai à escola, que se interessa pelo que é proposto e o próprio juiz, ao ver aquele relatório vai ter a opção de pensar em alguma forma de abrandar a execução de sua medida, seja progredindo o adolescente ou mesmo extinguindo aquele cumprimento de sanção. Assim, há um ação proposta pelos e para os adolescentes de maneira ao autofavorecimento dentro daquele contexto.

É importante perceber aqui que o reconhecimento de discursos alternativos usados por ou à disposição dos atores desafiam tanto, por um lado, a noção de que a racionalidade é uma propriedade intrínseca do ator individual como, por outro, a ideia de que esse reconhecimento simplesmente reflete a posição estrutural do ator na sociedade. Todas as sociedades contêm um repertório de estilos de vida, formas culturais e racionalidades diferentes, que seus membros utilizam em sua busca por ordem e significado e de cuja afirmação ou reestruturação eles mesmos participam (intencionalmente ou não). Para Giddens, portanto, toda ação está dentro de algum contexto e a estrutura torna-se importante não para impor uma forma de agir, mas para dar sentido ao agir.

Consequentemente, as estratégias e construções culturais aplicadas pelos indivíduos não surgem do nada, mas são, sim, retiradas de um estoque de discursos disponíveis (verbais e não verbais) que são, até certo ponto, partilhados com outros indivíduos que podem estar nas mesmas condições ou passado por aquelas condições. É nesse momento que o indivíduo é, de certa forma, metaforicamente transformado no ator social, o que significa que o ator social é socialmente construído.

A construção social dos atores é, então, suportada pela noção de agência. Mas embora possamos considerar o que entendemos por conhecimento e capacidade, esses conceitos devem ser traduzidos no contexto em que estão inseridos para que sejam significativos na sua totalidade. Assim, “cada indivíduo é um teórico social prático” (GIDDENS, 1978, p. 30), que usa de recursos (e conhecimento) para realizar a sua ação. Não devemos, então, presumir que existe uma interpretação constante e universal de agência em todas as culturas. Essa interpretação varia na sua racionalidade e construção. Contudo, é importante ressaltar que isso é importante especialmente quando se trata de um grupo de adolescentes mais ou menos homogêneo em relação a sua origem social, relações familiares e perfil socioeconômico, conforme veremos adiante, mas com características sociais bem próprias (embora sempre em interlocução

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com aquelas da instituição), que precisam ser levadas em conta no momento de analisar as racionalidades existentes.

Tais diferenças demonstram a importância de examinar como as noções de agência são constituídas culturalmente de forma distinta e afetam o gerenciamento das relações interpessoais e os tipos de controle que os atores podem desenvolver uns com os outros. No campo da Sociologia da violência e/ou punição, isso significa analisar como as concepções diferenciadas de poder, influência, conhecimento e eficácia podem modelar as respostas e estratégias dos diferentes atores (por exemplo, adolescentes em cumprimento de medida, técnicos do saber-poder, agentes socioeducativos, direções dos centros, etc.).

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PARTE 2 – AS INSTITUIÇÕES DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE