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CAPÍTULO 3 O CAMPO DA PESQUISA

3.2 ENTREVISTAS EPISÓDICAS E SUAS FUNCIONALIDADES

A escolha em utilizar entrevistas, desde o início da elaboração do projeto de pesquisa, deu-se muito em razão de acreditarmos ser um dos instrumentos de pesquisa que mais dá liberdade ao interlocutor. Ademais, a funcionalidade da própria técnica de entrevista é bastante visível quando vamos a campo, já que nos possibilita uma conversa dialógica com o outro. Contudo, algumas ponderações são necessárias.

Diversas críticas podem ser dispensadas ao uso da técnica de entrevista (de qualquer tipo) para a produção de um trabalho científico de cunho qualitativo. Há uma preponderância das críticas no sentido de tal técnica não ter o “rigor” científico necessário (MACEDO et al., 2009). Contudo, filiamo-nos àquela abordagem que se utiliza da entrevista como técnica válida, desde que demonstrados de forma clara os pressupostos teórico-metodológicos da pesquisa que está sendo realizada (BAUER; GASKELL, 2002; FLICK, 2006), o que demonstra, então, a necessária confiabilidade científica da metodologia do trabalho.

Assim, considerando o que já adiantamos na introdução desta tese, apresentaremos de forma minuciosa os procedimentos adotados para a possibilidade de uso dessa técnica e por qual razão foi a entrevista episódica a escolhida para a realização da parte empírica desta tese de doutorado.

A primeira questão que surgiu foi a de como apreender a vida dos adolescentes em privação de liberdade a partir deles mesmos. Isso porque esse seria o primeiro passo a ser dado para chegar a uma possível resposta ao problema de pesquisa apresentado. De início, então, mapeamos as possíveis técnicas utilizadas no seio da pesquisa qualitativa em Sociologia. A partir disso, chegamos à conclusão que era necessário conversar com esses adolescentes. Isso poderia, contudo, ser feito de diversas formas. Poderíamos nos encontrar com eles na presença de outras pessoas (profissionais que trabalham nos locais de internação ou criar um grupo para fazer um trabalho focalizado) ou poderíamos, simplesmente, falar diretamente com eles. A partir da análise de algumas das técnicas existentes que davam conta do encontro entre pesquisador e pesquisado, chegamos a uma possível saída86: a realização de entrevistas.

86 Várias ideias passaram pela nossa cabeça: desde a entrega de um questionário fechado até a leitura dos

relatórios produzidos pelos técnicos, passando pela leitura dos autos judiciais. Contudo, entendemos que todas essas possibilidades nos privariam de (1) contato direto com o adolescente de forma mais ou menos aprofundada e (2) estaríamos apreendendo o adolescente a partir de representações de outras pessoas (relatórios e autos judiciais). Essas ideias, portanto, foram descartadas.

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Como já havíamos, durante a elaboração do projeto que originou esta tese, tido algumas experiências com adolescentes em privação de liberdade (CNJ, 2015) e também em outros trabalhos desenvolvidos (CHIES-SANTOS, 2012), pareceu-nos que existiam duas possíveis modalidades de entrevistas a serem utilizadas: entrevistas episódicas ou entrevistas narrativas. Foi necessário, então, antes de mais nada, um aprofundamento nas pesquisas feitas com adolescentes, para compreender as dinâmicas que poderíamos observar e apreender a partir do tipo de entrevista a ser utilizada com aqueles sujeitos, dentro das instituições visitadas.

Durante a imersão nesses trabalhos, uma nova questão se impôs: se buscamos compreender como se dão os processos de resistência nas instituições privativas de liberdade para adolescentes, então estamos procurando compreender as resistências em um momento específico. Assim, pareceu-nos evidente que essas resistências estão (se colocadas) dentro de um episódio/momento específico da vida do adolescente, que é a privação de liberdade. Notadamente, então, a partir da própria construção do problema de pesquisa desta tese, a técnica de entrevista episódica seria a mais adequada a ser utilizada para fins da coleta de dados.

As entrevistas episódicas deram mais do que a opção, ao adolescente, de falar livremente sobre o tema da pesquisa e possibilitou que tivesse uma liberdade de falar a respeito de sua vivência dentro do contexto de internação a que estava submetido, conforme explicado com base na análise de Flick (2006) na Introdução deste trabalho.

Claro que não descartamos que a subjetividade do pesquisador era importante para a concepção, inclusive, do guia de entrevista. Por isso, além da necessidade de levar em conta essa subjetividade, era necessário trabalhá-la, para que ao final da análise dos dados coletados não existisse uma tentativa de comprovação das hipóteses apresentadas. Esta tese, aliás, diz muito sobre isso, já que expõe três categorias não exaustivas de adolescentes em privação de liberdade: os rebeldes, os conformados e os oscilantes. Ou seja, parece-nos que houve um cuidado necessário para a análise dos dados.

Além disso, conforme se verá adiante, existiu um cuidado para não realizarmos “superinterpretações” (ECO, 1993) a respeito do dito e não dito pelos adolescentes e profissionais, já que o resultado das entrevistas nada mais é do que um texto composto pela fala dos sujeitos entrevistados e a fala do próprio pesquisador, inclusive, muitas

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vezes, com a combinação simultânea de vozes87. A entrevista episódica se justifica,

então, por acolher as circunstâncias concretas do confinamento, além de fornecer um importante instrumento para o conhecimento cotidiano do adolescente e sua representação sobre esse momento vivido.

A partir da escolha da técnica, era necessário saber como construir nosso corpus de pesquisa (BAUER; AARTS, 2012). Como seria concebido o Guia de Entrevista? Quem seriam esses adolescentes? Com quantos deles precisaríamos falar para ter um material robusto para análise?

Como o campo se iniciou na França e não havia experiência, por parte da pesquisadora, em realizar pesquisa de campo em outra língua, tampouco em outro país, e considerando que o trabalho visava a compreender, também, os conflitos não declarados entre a instituição e os adolescentes, foi necessário conceber um Guia de Entrevista (APÊNDICE A) que desse conta da realidade brasileira e da francesa, já que o intuito deste trabalho era o de comparar duas realidades diferentes.

Assim, dividimos nosso guia de entrevistas para adolescentes em dois momentos principais. O primeiro deles deu conta de especificar quem era aquele adolescente, ou seja, contava com identificação pessoal, idade, perfil socioeconômico e familiar. O segundo tratava da medida em si e dava conta, a priori, da privação de liberdade e do significado que o adolescente dá àquele momento de sua vida.

A ideia era que a entrevista seguisse um fluxo lógico, em que uma resposta daria espaço para outra pergunta que ainda fizesse parte de um mesmo bloco de tópicos. Exemplo disso era o bloco do contexto familiar, no qual constava com quem o adolescente morava antes de ser privado de liberdade, de como era sua casa, quantas pessoas moravam lá e assim por diante.

Importa ressaltar, ademais, que foi feito um guia de entrevistas para a equipe profissional (APÊNDICE B), já que muito embora a tese trata do adolescente e de sua produção de resistência dentro da unidade, mas foi solicitado quando da qualificação desse projeto que algumas entrevistas fossem realizadas com os técnicos para também compreender como eles enxergam (se existem) essas resistências. Nesse ponto, o guia também era dividido em duas partes: uma sobre o contexto do local e outra sobre o

87 É necessário que se assuma o papel de pesquisador, ou seja, que planejamos e dirigimos o que será

produzido e, por isso mesmo, precisamos entender a nossa diferença em relação ao pesquisado. Podemos até ser sensíveis à realidade que cerca aquele sujeito e, partindo da escolha de falar com ele e de incorporar suas representações ao trabalho, precisamos antes de mais nada entender o contexto teórico- metodológico que nos conduz. É um paradoxo, portanto.

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trabalho desenvolvido, questões que eram aplicadas de maneira diferente aos entrevistados, a depender de sua formação profissional. Ou seja, existiam perguntas específicas para psicólogos, pedagogos e assistentes sociais, que eram respondidas pelas categorias específicas.

Em relação ao processo de escolha dos adolescentes, isso foi feito em parceria com os profissionais das instituições pesquisadas. Primeiro porque não tínhamos acesso a nada que pudesse diferenciar um adolescente do outro e, segundo, porque não importava muito, para este trabalho, alguma característica especial que um ou outro pudesse ter. A única coisa que pedimos, nos dois países, foi que os adolescentes tivessem entre 15 e 18 anos de idade, para que a faixa etária de todos ficasse entre essas idades. Nem sempre isso ocorreu. Todos eram muito diferentes entre si e a riqueza que cada um deles proporcionou a esta tese foi, de fato, singular.

Por fim, em relação ao número de adolescentes entrevistados, isso variou muito conforme o momento em que a localidade era visitada e o tempo que a instituição disponibilizava para que o trabalho fosse realizado. Como se tratava de um trabalho qualitativo, sem ambições de travar generalizações a respeito dos adolescentes em contexto de internação no Brasil e na França, foram entrevistados um total de 18 (dezoito) adolescentes e 15 (quinze) profissionais, totalizando 33 entrevistas e 727 (setecentas e vinte e sete) páginas de transcrição.