• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 O CAMPO DA PESQUISA

3.1 OS LOCAIS DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE

3.1.3 Centro A* e seus adolescentes com “perfil de maior comprometimento”

O primeiro lugar que visitamos em Porto Alegre foi uma das casas que tem espaço para privar de liberdade um total de 120 (cento e vinte) adolescentes. Essa casa foi escolhida por nós em razão de acolher aqueles adolescentes acusados de crimes mais graves e que apresentam, de acordo com o discurso oficial da instituição, um perfil mais comprometido com a criminalidade71.

O estado do Rio Grande do Sul possui 14 (quatorze) casas de internação, divididas em casas de execução e execução provisória. Nas casas em que há o cumprimento da privação de liberdade enquanto medida socioeducativa também podem ser encontrados adolescentes que estejam cumprindo internação-sanção72. É importante que se ressalte que, diferente da França, que tem um governo centralizado, sendo o Executivo e seus Ministérios responsáveis pela administração do Estado, no Brasil o Poder Judiciário e a própria execução das medidas socioeducativas73 de internação são de responsabilidade dos estados, já que é um país federativo. Isso faz com que a estrutura e o desenvolvimento das atividades que existem dentro da instituição sejam de responsabilidade da Secretaria de Desenvolvimento Social, Trabalho, Justiça e Direitos Humanos74.

O Centro A* é dividido em 5 (cinco) unidades independentes, dividas em alas. Cada subunidade tem uma característica peculiar, recebendo e segregando adolescentes

71 Isso foi referido em todas as entrevistas realizadas com os profissionais da Casa A* e, de acordo com a

interpretação que foi feita, dizia respeito aos tipos e à quantidade de crimes realizados e às diversas passagens pelos sistema socioeducativo, o que justificaria o “perfil criminoso” encontrado dentro daquela casa.

72 O artigo 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) explica que a medida de internação pode

ser aplicada, também, em caso de reiterados descumprimentos de medidas anteriormente impostas. O prazo para essa medida é, de no máximo, três meses, conforme dispõe o §1º daquele artigo.

73 É importante notar, contudo, que existe a chamada municipalização da execução das medidas

socioeducativas em meio aberto. Tais medidas não são objetos de estudo deste trabalho, entretanto é importante referir que cada município é responsável pela execução dessas medidas, quais sejam: liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade. No caso de Porto Alegre, isso fica a cargo da Fundação de Assistência Social e Cidadania do município.

74 Esse é o caso do Rio Grande do Sul. No estado de São Paulo, por exemplo, a Fundação CASA é ligada

à Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania. Já no Rio de Janeiro, o Departamento Geral de Ações Socioeducativas é vinculado à Secretaria de Estado da Educação.

126

de acordo com sua proveniência, idade e tipo de delito. Cada ala é disposta de forma que os adolescentes não tenham contato entre si. Uma dessas unidades atende jovens adultos (18 a 21 anos) que ainda estejam em cumprimento de medida. Outra das alas é direcionada a adolescentes que não tenham passado anteriormente pela Fundação de Atendimento Socioeducativo, ou seja, aqueles primários, duas outras são voltadas para adolescentes chamados reincidentes, isto é, que já foram condenados em um ou outros procedimentos de apuração de ato infracional, e a última é destinada àqueles adolescentes que têm a possibilidade de realizar alguma atividade externa75.

Conforme expusemos anteriormente, a escolha dessa casa se deu, primordialmente, pela possibilidade de traçar linhas de comparação com o Quartier Mineur M*, que abriga, também, adolescentes tidos pelo Judiciário e pela própria instituição como “perigosos” e como autores de crimes mais graves. O Centro A* é a unidade com o maior controle de segurança de todas as instituições do estado, principalmente em razão de conter, em seu bojo, adolescentes "especialmente perigosos”. Recentemente foram realizadas algumas mudanças no local, como pintura nas partes internas e reforma da biblioteca, sendo que esta última constituí um importante espaço para atividades.

Quando chegamos ao Complexo onde fica o Centro A* e outros 4 (quatro) centros, que já conhecíamos, deparamo-nos com o velho portão de ferro e com a presença de guardas e cachorros, também velhos conhecidos. Para iniciar a pesquisa, tivemos contato com um dos técnicos que atendia uma das alas (a ala X*) e que se dispôs a nos ajudar a compreender um pouco como era o funcionamento dessa casa76.

Esse técnico, que chamaremos de H*, seria o nosso contato diário na casa.

Uma das coisas que chamou a atenção, desde a entrada na casa, foi o fato de o ambiente ser bastante precário. Havia uma recepção envidraçada que dava acesso a funcionários – que pareciam terceirizados – e com os quais nos comunicamos em um

75 A respeito disso é importante mencionar que diferentemente do que ocorre em outros lugares do País, a

Justiça gaúcha divide a internação em dois tipos: Internação Com Possibilidade de Atividade Externa (ICPAE) e Internação Sem Possibilidade de Atividade Externa (Ispae). Isso acontece porque os magistrados compreendem que toda a internação deve ser composta por atividades que podem ser realizadas de forma externa ao ambiente de internação, como estágios em empresas. E somente em casos de exceção é que o adolescente deve ser totalmente privado de liberdade. O ECA é claro quando explica a medida de internação, conforme se depreende do §1º do art. 121, in verbis: “será permitida a realização de atividades externas, a critério da equipe técnica da entidade, salvo expressa determinação judicial em contrário”.

76 É importante mencionar que foi solicitado à pesquisadora que guardasse sigilo em relação aos nomes

dos locais em que a pesquisa foi realizada. Contudo, após bastante tempo de reflexão, achou-se por bem preservar o nome dos locais para ficar semelhante ao que apresentamos das instituições francesas.

127

primeiro momento, mas que aparentemente tinham poucas informações do que era feito ali dentro. Logo chegou H*, que nos recebeu e passou a nos explicar algumas regras a respeito do funcionamento e de como se daria o trabalho de campo naquele local. Isso porque essa era a Casa mais singular do complexo, que fica em um bairro central da cidade de Porto Alegre, e por esse motivo havia um cuidado peculiar a tudo que se ocorria ali dentro – inclusive pessoas vindo de fora para realizar pesquisas ou alguma outra atividade77.

No andar térreo, ficava a sala da direção com um anexo para o vice-diretor. Ficamos lá por algum tempo, considerando o fato de a diretora estar bastante interessada no que faríamos ali e repetir, incessantemente, sobre a necessidade de não atrapalhar a rotina dos adolescentes que iríamos conhecer. Saindo do térreo, fomos em direção ao primeiro andar daquele prédio, onde ficava a sala dos técnicos (assistentes sociais, psicólogos e pedagogos, além da presença de alguns/mas oficineiros(as) que poderiam estar prestando serviço). Era uma sala bastante ampla, com várias mesas e cadeiras, que lembrava pequenos postos de trabalho. Isso é importante de ser ressaltado uma vez que esse local era o único espaço possível de realização de atividades daqueles profissionais. Não existia, ademais, um espaço para atendimento em sigilo, ou seja, os técnicos, especialmente os psicólogos e assistentes sociais, não tinham um espaço próprio para fazer o atendimento dos adolescentes em cumprimento de medida. O que foi objeto, aliás, de diversas ponderações a respeito da estrutura da própria Casa A* durante as entrevistas com os profissionais. Passada, então, a sala dos técnicos, era possível se dirigir a uma escada que dava acesso às alas já mencionadas.

Em conversa com H* ficou decidido que entrevistaríamos adolescentes que estavam internados na ala X*. Primeiro porque ele era o responsável pelo acompanhamento daqueles meninos e, segundo, porque como ele era a pessoa competente por aqueles adolescentes e havia, como descobriríamos depois, uma relação de bastante confiança entre eles, seria melhor termos acesso a eles após a exaustiva explicação que H* lhes dera.

Além disso, foi explicado para nós que a escola, diferente do que já havíamos conhecido na Casa de Atendimento Feminino do Rio Grande do Sul (Casef) durante pesquisa realizada em 2014 (CNJ, 2015), existiam espaços, dentro de cada ala, destinados à escola, como forma, também, de não deixar que os adolescentes se

77 Os adolescentes referem, durante as entrevistas, que existem algumas instituições de finalidades

128

encontrassem. Isso significa dizer que nas cinco alas estudadas havia espaço escolar distinto, sendo que os/as professores/as vinculados à escola do complexo78 iam lá em

dias específicos para lecionar aos adolescentes.

Uma das coisas que mais chamou nossa atenção quando chegamos ao local que dá acesso a todas as alas foram quadros pendurados na parede e um espaço constituído por divisórias e cheio de livros – e, mais tarde, compreenderíamos que se tratava da biblioteca do Centro A*. Isso porque, diferente dos outros espaços que tínhamos conhecido ali dentro, esse era mais colorido e tinha um toque de infantilidade saudável.

A respeito da biblioteca, como atividade integrante da rotina dos adolescentes, é importante destacar que se tratava de um trabalho voluntário desenvolvido por agentes socioeducativos que tinham competência técnica para e queriam realizá-las, e o faziam em conjunto com os adolescentes. Note-se que a falta de orçamento do estado implicava a não contratação de serviços lúdicos – mas também de aprendizado – aos adolescentes. Além disso, é importante ressaltar que a única atividade que os adolescentes (de todas as alas) realizavam em conjunto era a Escola de MC’s – um grupo de música em que “os adolescentes poderiam se expressar enquanto sujeitos”79.

Uma questão que foi importante para entender a estrutura do centro foi o fato de que cada adolescente contava com um quarto individual, como no Quartier Mineur M* e no EPM G*, contudo esses espaços não contavam com banheiro, tampouco com pia, motivo pelo qual o adolescente, quando em necessidade, precisava pedir ao agente socioeducativo de plantão o direcionamento – sempre vigiado – ao banheiro (para toda e qualquer necessidade). Além disso, naquele momento, o Centro A* não estava com problemas de superlotação, mas nos foi explicado que muitas vezes eles “duplicam” o quarto, ou seja, colocam dois adolescentes – que acabam por dormir como valete80 – no mesmo local. Isso, conforme nos foi dito, é bastante comum.

Durante a pesquisa no Centro A* realizamos oito entrevistas, sendo quatro com adolescentes da Ala X* e quatro com técnicos responsáveis pelos adolescentes (psicólogo, assistente social e duas pedagogas).

78 O Complexo da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Estado do Rio Grande do Sul conta com

uma escola, que atende as quatro unidades existentes ali dentro.

79 Isso foi referido por H* durante a entrevista.

80 É quando duas pessoas dividem a mesma cama ou colchão e dormem um com a cabeça virada para os

pés do outro.

129